“A difusão da palavra escrita, jornais, livros, cartazes, foram e são ferramentas fortes nas mãos dxs anarquistas para trocar idéias, refletir, expandir a crítica ao sistema de dominação, se posicionando, trazendo propostas de agitação e auto-organização, sendo elo entre redes para além da palavra escrita…”
A cada momento na longa trilha da história a sede de dominação e sua institucionalização, quando firma a mordida, desenha leis e constituições para defender sua existência e dar guerra legalizada contra os que se oporem ao seu passo. A Lei de Segurança Nacional criada para defender a ditadura de Getúlio Vargas na década de 30 e que, com mudanças, segue em vigor, é um instrumento de controle e punição nas mãos do estado que criminaliza o próprio instinto natural de se auto determinar, resistir e não aceitar as opressões, garantindo severas condenações aos que não abaixem a cabeça.
No Brasil dos anos 60 dentro da disputa pelo poder as forças armadas associadas as outras forças reacionárias: políticos, igrejas, empresários, magnatas, fiéis, beatas, donos de meios de comunicação, e claro, cidadãos de bem, animados na defesa da tradição, da família e da propriedade, tomaram o poder de assalto, e chamaram de Revolução, é lembrada mesmo como Ditadura. O governo militarista instaurado no Brasil fincou raízes por vinte e um anos de dono do estado (1964-85), se assanhando em se assenhorear das terras e gentes, se adonou de terras expulsando povos indígenas e comunidades de posseiros, facilitou para as multinacionais todos os caminhos para sua proliferação e solidificação dentro do Brasil, produziu momento de euforia econômica e protagonizou um continuo terrorismo estatal organizado para conter os dissidentes, “Brasil ame-o ou deixe-o”.
Os anos 60 foram anos cheios de agitações que questionavam as faces do poder, do domínio, suas misérias e opressões. O ano de 1968 é um ícone desta revolta para muito além de Paris. No México, a Praça de Tlatelolco, tomada por gigantesco protesto questionando as Olimpíadas sediadas na cidade do México e os abusos do governo de plantão, foi banhada de sangue pelas balas do exército e da polícia. No Vietnam o exército estadunidense pulverizava a região com agente laranja da Monsanto, bombas e bala recebendo resistência, armadilhas, derrotas. No continente africano a luta contra a colonização se intensificava e se expandia. Na Argentina eclodia o Cordobazo em maio de 1969 uma revolta popular que toma a cidade de Córdoba. Anos agitados que marcaram memória.
Os anos de 1967-68 foram de intensa agitação social contra a ditadura sobretudo entre jovens, estudantes e trabalhadores, expressivos protestos tomaram as ruas de grandes cidades do Brasil, radicalizando os ânimos. Um rechaço a ditadura militar crescia se manifestando de distintas formas, por outro lado o apego ao poder dos militares e seus comparsas os forçava a morder mais forte, espumando, rosnaram em dezembro de 68 o AI-5 e morderam geral.
Muitos representaram um perigo para a “segurança nacional”, pedra no caminho da “ordem e progresso”. Certamente os anarquistas e suas iniciativas assim estavam cadastrados no SNI [1].
O jornal “O Protesto idéias, critica e combate” fez parte da agitação dos anos 67-68, começou a sair as ruas da cidade de Porto Alegre em outubro de 1967 e em sua capa declarava: “colaborar com aqueles que pretendem elevar a “massa” a um conjunto de individualidades livres” e “lutará contra tudo quanto representa obscurantismo, pois ele não faz outra coisa que colaborar na subjugação da vontade humana, impedindo seu livre desenvolvimento e portanto, um atentado contra à liberdade”, destacando que “O PROTESTO é uma luta e procuraremos não sermos os últimos nesses combates enunciados” [2].
Ainda neste primeiro número escreve artigo posicionando-se diante do assassinato de Manoel Raymundo Soares ocorrido um ano antes. Sargento dissidente do regime preso pela policia quando entregava panfletos rechaçando a visita do então presidente militar Castelo Branco a Porto Alegre. Apareceu boiando morto nas águas do rio Guaíba com as mãos e pés amarrados. O desafio estava posto.
O Protesto foi um jornal anarquista. Em suas páginas abria espaço para a difusão de pensadores libertários e exaltava posições anarquistas em suas análises do momento, escrevendo sobre acontecimentos urbanos e as ineficácias do estado, a situação operária e dos estudantes, estimulando sua auto organização, trazia notícias e debates do mundo de então, publicou em extratos ao longo de seus números “Doze Provas da Inexistência de Deus[3]” e ainda poesias e contribuições diversas. Teve ampla difusão local, no Brasil e internacionalmente.
O Protesto foi um jornal legalizado, para sua realização e difusão recebeu autorização de juiz segundo a lei de imprensa. Registrado no cartório de registros especiais com diretora, redator e gerente especificados com nome e sobrenome, sua periodicidade e local de impressão, sendo vendido em bancas de revista da cidade de Porto Alegre. Mesmo com todo este verniz legal não escapou de espionagens, arapongas, seguimentos, investidas policiais, violências, sequestros, criminalizações, interrogatórios, tribunais militares, prisões.
Os anarquistas agitadores de O Protesto mantinham desde 1963 uma gráfica de relevo, Gráfica Trevo, na Rua Garibaldi 1093, no bairro Bom Fim. A gráfica tinha um viés comercial e por aí se defendia para imprimir também propaganda antifranquista, os jornais O Protesto e Dealbar [4], livros de Malatesta, Juan Puig Elias e Daniel Guérin. Ali, nestas oficinas gráficas, se encontraram veteranos anarquistas da Revolução Espanhola, veteranos e resistentes anarquistas que viviam nestas bandas desde as antigas batalhas anarquistas nos anos 20 e jovens que por instinto foram se aproximando e contribuindo ativamente no jornal.
Estes jovens estabeleceram fluída interação com jovens anarquistas de São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, difundindo O Protesto, fomentando com esta interação e fruto das agitações estudantis a realização de um encontro onde vieram a formar o Movimento Estudantil Libertário, em janeiro de 1968 no Nosso Sítio, espaço anarquista no interior de São Paulo. O Protesto fermentou por suas páginas o encontro e trouxe notícias de sua realização e suas disposições [5].
Foram fortes as agitações estudantis em oposição ao acordo MEC-USAID [6]. Convenio estabelecido entre o governo norte americano com o governo brasileiro que impunha uma reforma educacional aos moldes do “estilo de vida norte americano” focada na educação técnica, formatando o “novo homem”, necessário as engrenagens do capital.
Estes jovens anarquistas difundiam propostas antiautoritárias através de suas próprias iniciativas e também propagando jornais anarquistas, pichavam as ruas com suas idéias, colavam cartazes e escreviam panfletos, contra o 7 de setembro, contra TFP [7], já o panfleto intitulado “olho por olho dente por dente” dos jovens anarquistas do Rio em resposta ao assassinato policial do jovem estudante Edson Luís Lima Souto, em março de 1968 no restaurante estudantil Calabouço no centro do Rio, provocou reação dos aparatos repressivos. O CEPJO [8], espaço anarquista que mantinha atividades diversas, biblioteca e também residências foram invadidas, bibliotecas confiscadas, 18 pessoas foram sequestradas, violentadas são obrigadas a dar longos esclarecimentos para elucidar a autoria do panfleto, sua impressão no mimeografo do CEPJO e atividades do espaço [9]. Em consequência os aparatos repressivos indicaram para suas filiais em outros estados investigarem relações constatadas entre anarquistas de outras regiões com os anarquistas do CEPJO. O Protesto estava lá [10].
As oficinas da Gráfica Trevo já eram visitadas informalmente por agentes do DOPS interessados em saber o conteúdo de suas impressões, que trabalhos realizavam e para quem, a origem do papel usado, os envolvidos nas oficinas. De esporádica passou a ostensiva somando-se ameaças permanentes de expulsão imediata dos espanhóis para a Espanha de Franco, a morte certa para um anarquista. Esta ação repressiva passa a impedir o próprio funcionamento da gráfica que muda clandestinamente parte de seu equipamento e ainda imprime ao menos até março de 1970. Manoel Fernandes [11] exilado espanhol participante da Revolução de 36, animador do projeto da gráfica e do jornal, companheiro de Maria Pinto diretora de O Protesto, foge para Buenos Aires. Maria fica com a missão de vender tudo, gráfica e casa, e ir-se [12].
A repressão bate mais duro, invade a casa de Maria e Manoel sem encontrá-los, devasta a casa. Maria é sequestrada a revelia enquanto abria a caixa postal do jornal no prédio central dos correios, na Praça da Alfândega, centro de Porto Alegre. Pedro Seelig delegado do DOPS “Fleury dos pampas” é quem a interroga e maltrata.
Saindo do cativeiro trata de evadir-se, junto com sua filhinha, no rumo de Buenos Aires, encontrando-se com seu companheiro. O prédio original onde funcionava a gráfica, na Rua Garibaldi, também foi invadido e devastado pelas forças repressivas em fevereiro de 1971. A raiz da apreensão de materiais impressos um jovem anarquista e uma jovem anarquista, identificados pelo DOPS, foram detidos e envolvidos na impressão e difusão destes materiais, julgados no Superior Tribunal Militar de Porto Alegre por atentar contra a segurança nacional com o crime de propaganda subversiva foram inocentados [13].
Mesmo as iniciativas anarquistas deste momento não serem de ataques ofensivos contra o regime como as ações que grupos realizavam contra o exército e as policias, o roubo de suas armas, a expropriação de bancos, o sequestro de embaixadores e cônsules, assim foram compreendidas, como ofensivas, na medida que a própria idéia e prática anarquista é por si a negação ao poder e seu mundo de misérias, o rechaço a obediência, ou seja, um inato desafio ao poder, subversivo, nocivo a segurança nacional. Praticar, difundir, autonomia, auto organização, livre associação, apoio mútuo, solidariedade, amor pela liberdade, desprezo pelo poder, hoje, assim como ontem, é traduzido na linguagem do estado como crime contra lei de segurança nacional.
O fogo da anarquia, do firme anseio por liberdade, jamais se extingue. Por mais bombeiros que o combatam sua brasa não se apaga. Como resultado de tormentas repressivas contra anarquistas e suas iniciativas foi possível enfraquecer e até quebrar gerações. Mas o despertar da rebeldia contra este mundo de misérias, sentindo repulsa por mandar e obedecer, volta a crescer espontaneamente no coração e na atitude de novas gerações. Assim O Protesto não morre, ressurge nas páginas de Autogestão, em O Inimigo do Rei, e numa enxurrada de fanzines e publicações punks, anárquicas, efêmeras e diversas, que passaram a circular desde os anos 80 e hoje são quase extintas, revive nas páginas de Crônica Subversiva e seguirá sabe lá onde desafiando as leis do poder procurando que viva a anarquia.
Armando Guerra
Crônica Subversiva N° 3, verão 2019
>> Notas:
[1] SNI, Serviço Nacional de Informações (1964-1990). Órgão estatal criado para vigiar, cadastrar, catalogar as pessoas, seus pensamentos e ações. Sua ambição, expandir-se por todas as esferas da sociedade. Manteve escritórios em cada universidade do Brasil. Na Universidade Federal do Ceará foram os estudantes quem desativaram o escritório do SNI, em 1986, no campus em Fortaleza, o arrombando e carregando um caminhão de documentos antes sigilosos e os entregando para as pessoas ali catalogadas. A ABIN Agência Brasileira de Inteligência é quem segue o trabalho do extinto SNI. Acabou?!
[2] O Protesto n 1 outubro de 1967
[3] Texto de Sebastien Faure um clássico do ateísmo anticlerical anarquista.
[4] Dealbar foi um jornal anarquista editado por Pedro Catallo na cidade de São Paulo circulando entre 1965 a dezembro de 1968. Carregava em seu dístico: “A idéia é como a gota d’água. Pode refletir a imensidade.”
[5] O Protesto do n 1 ao n 6 e em : Edgar Rodrigues, O Ressurgir do Anarquismo (1962-1980). Rio de Janeiro, Achiamé, 1993, pág.112.
[6] MEC Ministério da Educação e Cultura. USAID Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional.
[7] TFP Tradição Família e Propriedade. Associação reacionária de inspiração católica.
[8] CEPJO Centro de Estudos Professor José Oiticica.
[9] Edgar Rodrigues, O Anarquismo no Banco dos Réus (1969-1972). Rio de Janeiro, VJR editores associados, 1993
[10] Projeto Brasil Nunca Mais, Perfil dos Atingidos. Petrópolis, Ed. Vozes, 1988 pg.104
[11] Miguel Íñiguez, Enciclopedia Histórica del Anarquismo Español, Tomo I. Vitória, Associacion Issac Puente, 2008. Pág. 606
[12] Maria Pinto Fernandes é hoje viva e completará 90 anos em abril vindouro.
[13] O processo (BNM 111) pode ser descarregado integralmente no site do Projeto Brasil Nunca Mais Digital.
agência de notícias anarquistas-ana
Frases compostas
no sol que passeia
sob minha caneta.
Jocelyne Villeneuve
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!