por Crônica Subversiva
Desde novembro do ano passado, a França toda está sacudida pelo maior movimento social vivido no país desde 1968. Estamos frente a um movimento heterogêneo e anárquico por essência já que nenhuma representação oficial do movimento é aceita por parte do corpo do movimento. O que está acontecendo na França? Que posição tomam xs anarquistas? Podemos falar de Insurreição? De Revolução Social?Intrigadxs, alguns anarquistas realizaram um par de entrevistas com companheirxs que moram na França e que de alguma ou outra maneira, decidiram se envolver com o movimento. Uma parte dessas entrevistas foi já publicada no número 3 da da revista anarquista “Crônica Subversiva” de Porto Alegre. Entretanto, como o debate nos parece urgente enviamos uma parte das entrevistas pela internet.
A nossa intenção ao realizar essas entrevistas é antes de tudo entender quais são as posições dxs anarquistas em relação ao movimento, quais são suas formas de ação e como elas se comunicam com o movimento social. Para isso, buscamos provocar o debate trazendo aqui diferentes posicionamentos em relação à ação anarquista nos movimentos sociais, tudo isso no intuito de nos provocar, desde o lugar onde estamos para (re)pensar nossos meios e métodos de ação.
Das 4 respostas recebidas até agora, encontramos companheiros que se identificam como “Indivíduos Anarquistas que moram em Paris” que chamamos aqui de “IA”, outro companheiro “T” que chamou-se de “um anarquista de uns 40 anos, desempregado de longa data que mora na periferia de Pari”. Mais um companheiro anarquista da região metropolitana chamado aqui de “A” e por fim, umas/uns companheirxs anarquistas de Toulouse que chamaremos aqui de “AT”.
1) Primeiramente poderiam explicar como nasceu o movimento dos Coletes Amarelos? Qual foi a primeira reação do/dos movimentos anarquistas em relação ao movimento social?
IA: O movimento dos Coletes Amarelos nasce de uma petição cidadã na internet contra um novo imposto sobre o combustível. Lançada em maio de 2018, a petição circula amplamente nas redes sociais, é cada vez mais compartilhada e assinada até que chegara a mais de um milhão de assinaturas. Após, alguém postar um vídeo na web chamando a colocar um colete amarelo no para-brisa do carro como sinal de protesto. No início de outubro, uma nova chamada é lançada, convidando a uma mobilização no dia 17 de novembro de 2018. Nós (quase totalmente alheios às redes sociais), começamos a perceber a existência desse movimento uns dez dias antes dessa data porque as pessoas falavam disso e alguns diziam que ia explodir. A tensão sobe e os jornalistas midiatizam muito o evento. A mobilização é muito forte desde o início, notadamente nas zonas rurais. Essa primeira data consiste sobretudo em uma multiplicação de bloqueios, com a ocupação de trevos [rotatórias] e de pedágios de estradas. Contamos já com os primeiros mortos do movimento (agora são 12), manifestantes atropelados pelos automobilistas que forçam os bloqueios. A determinação dos manifestantes é impressionante, temos os primeiros enfrentamentos com a polícia. Muito rapidamente, a questão do preço do combustível é ultrapassada por uma raiva mais geral contra outros impostos e taxas que golpeiam sobretudo as classes mais pobres. Os estudantes secundários (que já estavam mobilizados) entram no baile, bloqueiam os colégios e se revoltam contra a polícia. É a explosão de um “saco cheio” contra a vida cara demais (“não chegamos ao fim do mês” escuta-se nas entrevistas). Pede-se a demissão (impeachment) de Macron, que nos olhos da maioria dos manifestantes representa “a oligarquia no poder”. Não tem que esquecer que o atual presidente e ex-ministro da economia nunca escondeu seu desprezo de classe e sua parceria com os patrões. O imposto no combustível foi sem dúvida a gota que transbordou o copo. Esses momentos felizes de revolta tiveram lugar em Paris, mas também em muitas cidades do país, inclusive em regiões, supostamente, pacificadas. Isso se propagou também na “França de Além Mar”, notadamente na ilha da Reunião, que, em dezembro de 2018 foi sacudida por uma verdadeira onda insurrecional.
A partir do 24 de novembro e até hoje, o movimento dos Coletes Amarelos se articulou ao redor de ocupações de trevos e pedágios de estradas assim como jornadas de mobilização semanais nomeados Atos (Atos 1, 2, etc.). Esses Atos, sobretudo durante as primeiras semanas são caraterizados por violentos enfrentamentos com a polícia, a destruição e saques de comércios, ataques a bancos e edifícios públicos. Motins de um jeito raramente visto na história recente do país. Além desses momentos públicos e coletivos, desde o início do movimento, assistimos a um grande onda de ações decentralizadas anônimas que em alguns casos são realizadas por grupos de indivíduos que se identificam como “Coletes Amarelos” e em outros, poderiam igualmente ser contribuições de companheiros anarquistas ou outras minorias revolucionarias: incêndios de pedágios e radares nas autopistas, sabotagens de infraestruturas de transporte (autopistas e trens), energéticas (postos de gasolina, transformadores, centrais eólicas ou postes elétricos), de comunicação (antena de fibra ótica), incêndio a edifícios públicos (principalmente centros de impostos mas também prefeituras e tribunais), ataques à sedes de diferentes partidos políticos, moradias de políticos e as vezes agressões contra prefeitos, deputados, e vice-prefeitos, ataques a lugares da mídia (rádio, jornais, televisão), bloqueios e as vezes saques de grandes depósitos como Amazon, Carrefour ou Geodis.
Tudo isso surgiu de uma maneira muito imprevisível e inédita. De um lado, esse movimento de revolta de tal tamanho, que rechaça os partidos e os sindicatos nos entusiasmou, por outro, não somos cegos frente a algumas tendências que emergem massivamente nos discursos dos Coletes Amarelos. Não podemos fechar os olhos frente a uma subida do nacionalismo que agita o fantasma do “povo francês contra a oligarquia” e não nos reconhecemos em um radicalismo cidadão que aspira ao “poder do povo”, quer dizer, à transformação do Estado, por exemplo através da instauração do Referendum de Iniciativa Cidadã [1].
Isso não quer dizer que não achamos que a situação atual não seja interessante, vemos que estamos em um momento em que a revolta se generaliza e isso nos alegra. Na revolta, podemos descobrir o sabor da liberdade e transformar radicalmente nossas relações com outros indivíduos.
T: Inicialmente, o movimento foi lançado em outubro de 2018 na internet, nas “redes sociais” após a uma nova subida do preço do combustível [2]. As pessoas que deram origem ao movimento não se conheciam e não vinham de âmbitos militantes.
O movimento se tornou consistente a partir das primeiras ocupações de rotatórias e do primeiro protesto agitado na avenida dos Champs-Elysés, em Paris, no dia 17 de novembro 2018. Desde então, o movimento tomou uma forma inédita mostrando uma desconfiança, até uma hostilidade em relação aos partidos políticos e os sindicatos. Desde o primeiro dia, o movimento reuniu pessoas muito diferentes politicamente e socialmente. Muito rapidamente a questão dos impostos e da subida do preço do combustível foi ultrapassada: esta reivindicação principal parecia secundária em relação à raiva generalizada. A raiva do movimento dos Coletes Amarelos é principalmente um “estar de saco cheio” das desigualdades sociais, de não conseguir chegar ao fim do mês, e do fato que os ricos (politiqueiros, burgueses de todo o tipo) “se empanturrarem nas nossas costas”, para retomar uma expressão muitas vezes utilizada neste movimento. Por fim, desde o início do movimento, um único slogan faz a unanimidade durante as grandes jornadas de manifestação (os famosos “Atos” semanais que começaram no 17 de novembro): “Macron: demissão”.
Em um primeiro momento, o movimento botou seu foco inicial na questão dos impostos e pelo fato que reunisse pessoas de frentes políticas opostas, o movimento dos Coletes Amarelos gerou nxs anarquistas tanto desconfiança quanto entusiasmo. Alguns participaram ativamente desde o primeiro dia enquanto outros até hoje rechaçam participar. Como é o próprio movimento anarquista, talvez mais do que em tempos “normais”, não existe uma posição comum reunindo todas as tendências anarquistas. E no seio mesmo de cada uma dessas tendências, temos indivíduos, grupos de afinidades, coletivos e organizações tendo posições divergentes em relação ao movimento dos Coletes Amarelos.
A: O movimento dos Coletes Amarelos nasceu após o aumento dos preços do combustível ao qual se adicionava o aumento explosivo dos radares nas estradas e as multas de trânsito cada vez mais numerosas sobretudo quando o governo Macron fez passar o limite de velocidade nas estradas de 90 a 80 km/h em julho de 2018. Nos anos 70, o Estado subvencionou a construção das estradas em uma parceria pública/privada com Vinci [3] e outros. Claramente os impostos dos franceses pagaram uma parte das obras e, uma vez essas obras rentabilizadas para esses gigantes da indústria, os pedágios iam supostamente desaparecer. Mas é tudo o contrário que aconteceu: em 1995, o governo Jospin [4] vendeu definitivamente as estradas a esses grandes grupos, inclusive escrevendo no contrato que os ligava ao Estado um aumento anual das tarifas ainda mais alto que a inflação. Para dar-lhes uma ideia, hoje um trajeto nas estradas da França custa tão caro em gasolina quanto em pedágios, que antes do último golpe petroleiro, saiam ainda mais caro que a gasolina. Não é casualidade que esse movimento nasceu nas rotatórias: foi primeiramente um movimento de pessoas que moravam fora das cidades e para quem o carro representava uma parte colossal das suas despesas. Porém, seria falso restringir o movimento a essas únicas preocupações, mesmo se claramente a grande maioria das reivindicações se focavam no poder de consumo. Muito rapidamente, a partir do 1° de dezembro (o movimento começou no dia 17 de novembro), as perspectivas se expandem: restabelecimento do ISF (Imposto sobre a Fortuna), fazer pagar os ricos, possibilidade para o povo de destituir os dirigentes, vontade de “democracia” direta e real. O que, na minha opinião, temos que perceber é que, muito rapidamente, o movimento desafiou sem concessão, e de forma generalizada todos os intermediários institucionais: políticos, imprensa, sindicatos, polícia, grandes empresas… em suma, quase todos os atores maiores de uma sociedade capitalista.
A visão dxs anarquistas é, ainda hoje, muito heterogênea. Alguns simplesmente esnobam o movimento. Acho que por desprezo às classes médias trabalhadoras, que vivem fazendo crédito para consumir, etc. e que não usam os elementos da linguagem do militante experiente. Outrxs, ficaram afastadxs por medo, sem dúvida, do seu vazio teórico, da sua aparente pobreza política. Outros ainda se jogaram dentro por amor (as vezes) cego, à insurreição, prontos para acolher a Grande Noite. Por fim, uma parte foi para ver, antes de começar a atuar.
AT: O movimento nasceu a partir de um chamado nas redes sociais em relação ao preço do combustível. Na região de Toulouse (sudoeste da França), se materializou com uma presença cotidiana nas rotatórias ao redor da cidade e nos pedágios. Depois de duas semanas, tivemos as primeiras manifestações do sábado. Por nosso lado, foi um pouco complicado em um primeiro tempo para nos posicionarmos e nos apropriarmos do movimento, vendo esse espectro político um pouco vago, abraçando também reivindicações nacionalistas (por exemplo, a favor do fechamento de fronteiras ou a denunciação de pessoas migrantes em uma rotatória no norte da França). O que começou a interessar o movimento anarquista é o caráter dos distúrbios das manifestações, o rechaço dos partidos e sindicatos e as reivindicações de classe. Porém, foi também a porta aberta para dinâmicas fascistas se desenvolverem e temos a sensação que levamos um tempo para acharmos uma maneira de nos encontrar nesse movimento (e ainda hoje continua.)
2) Aqui, temos os ecos que esse movimento se reivindica de nenhum partido político nem está relacionado com sindicatos, como se pudéssemos sentir um estado de “saco cheio” geral da miséria social e um rechaço à política tradicional. Pensam que isso é um “terreno fértil” para propagar as ideias e práticas anarquistas?
T: Com certeza. Este rechaço é levado por uma grande maioria do movimento e assumido assim desde o início. De fato, há muito em comum entre o movimento dos Coletes Amarelos e as bases anarquistas: particularmente o rechaço do governo, dos partidos políticos, dos sindicatos e outros “parceiros sociais” (esses “corpos intermediários” encarregados de acalmar a revolta e permitir gerar boas relações entre o Estado e os manifestantes), e obviamente a ação direta. O movimento existe principalmente através das ações ilegais, indo desde o bloqueio filtrantes [5] nas rotatórias até o incêndio de prefeituras. As ações realizadas desde novembro de 2018 são inúmeras e muito variadas, os meios típicos de ação de uma insurreição (bloqueios, sabotagens, distúrbios…) e os alvos são quase sempre os mesmos que os que os anarquistas costumam atacar (edifícios ou lojas capitalistas e/ou estatais).
Particularmente em novembro-dezembro 2018, vimos os bairros mais ricos de Paris inundados por revoltados que destruíam tudo no seu caminho, inclusive na famosa avenida dos Champs-Elysées, em uma espécie de ódio de classe que mostrava que tudo isso ia além de uma simples questão de imposto sobre o combustível (esse foi cancelado já em 5 de dezembro, o que não impediu que o movimento perdurasse).
Por fim, o funcionamento sem chefes e a multiplicação das assembleias para se organizar de maneira autogestionada mostram outro ponto em comum com as práticas anarquistas. Assembleias se formaram durante o movimento e existem ainda, se desfazem e reaparecem sob outras formas. Conversa-se muito também em fóruns, grupos virtuais no Facebook ou chats como Signal, Telegram, Whatsapp…
Para relativizar um pouco, temos que entender que esse movimento é muito heterogêneo, que reúne pessoas com culturas políticas muito diferentes, e que se o nojo do sistema atual é o ponto comum de todas as pessoas que participam do movimento dos Coletes Amarelos, há também várias pessoas que buscam impulsionar sua carreira nas costas do movimento: alguns antigos políticos integraram o movimento para encontrar alguns seguidores para guiar, outros buscam formar partidos políticos ou listas para as próximas eleições europeias. Porém, isso não se faz sem agitação, os que se autoqualificaram de “representantes dos Coletes Amarelos” até o ponto de considerar um encontro com ministros foram confrontados frente a raiva do movimento, recebendo um monte de críticas argumentadas, assim como também mensagens de insultos, ameaças de morte, etc.
IA: Efetivamente, o movimento expressou inicialmente um rechaço dos partidos, dos sindicatos e da grande mídia, um saco cheio da política tradicional que sempre faz o interesse dos ricos. Hoje, temos a sensação que os sindicatos e alguns partidos (principalmente de esquerda, mas não somente) estão por recuperar e enquadrar a raiva que inicialmente se expressou de maneira espontânea e selvagem. Trata-se de um “terreno fértil” para as ideias anarquistas? Difícil de dizer, e, em todo caso, não nos questionamos nesses termos. Não acreditamos que nosso objetivo seja educar “o povo” ao anarquismo nem que os anarquistas devem guiar a insurreição. Obviamente, tratam-se de momentos onde nossos discursos podem ser parcialmente entendidos e nossas práticas compreendidas, mas, temos a sensação que muita gente está experimentando formas de auto-organização, de autonomia política e de ação direta sem passar pelo anarquismo. E que bom! A difusão de nossas ideias faz parte de nossa atividade cotidiana e não é porque muita gente começa a se revoltar que isso se torna mais importante ou urgente. A questão que nos propusemos mais adiante: como contribuir para aprofundar a desordem? Como complicar a tarefa das tentativas de pacificação lideradas pelos politiqueiros de todas as cores?
AT: Em Toulouse, os vínculos entre o movimento anarquista e os Coletes Amarelos passa essencialmente pelos quadros antirrepressão e pelas modalidades de ação. Porém, vemos que é bastante complicado aportar em relação às questões de “fundo” político. Uma parte das pessoas querem manter um desfoque político para evitar a todo custo uma ruptura. Isso impede posicionamentos claros frente a questões essenciais. Por exemplo, podemos ver pessoas protegendo os gambés cantando “todo mundo odeia a polícia”. É bastante estranho. Apesar de uma relação perturbada com o político, uma grande parte do movimento segue reivindicando o movimento como apolítico. Então, por um lado a propaganda é possível e oferece quadros de discussão bastante interessantes, por outro, nos chocamos com um muro, onde nossos textos e panfletos são considerados como “radicais demais” ou querendo dividir.
Continuará…
>> Notas:
[1] RIC: Referendum de Iniciativa Cidadã foi uma proposta de “radicalização” da democracia lançada pelo partido da França Insubmissa (FI) que propõe que qualquer cidadão possa propor uma lei e que essa lei possa ser aprovada ou não através de um referendum. Mais que revolucionaria, essa proposta segue um caminho reformista e apaziguador, se bem propõe expandir o princípio democrático não questiona a própria estrutura na qual o jogo democrático está inscrito. A finalidade desse tipo de iniciativa é a pacificação da revolta e o seu controle pelos dirigentes sindicais e partidários da esquerda tradicional.
[3] Antigamente Sociedade Geral das Empresas, Vinci é um grupo empresarial presente em 16 países. Foi também o responsável por montar o projeto do aeroporto “Grand- Ouest”, tentativa falhada graças à luta dos Zadistas de Notre Dame des Landes. Entre outros, Vinci encontrou-se também com protestos na Rússia da construção da estrada de Moscou até São Petersburgo que passa pela floresta de Khimki já que mais de 75% da população se opõe ao projeto.
[4] Jospin foi primeiro Ministro do país de 1997 a 2002 durante o governo do presidente de direita J.Chirac. Foi primeiro secretário do Partido Socialista de 1981 a 1988 e de 1995 a 1997.
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