Nito Lemos Reis – Mais Um Companheiro Que Nos Deixa!

Eu acredito no anarquismo como uma solução humana. Seria uma solução para todo o problema social

por Marcolino Jeremias – Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri (NELCA) | Biblioteca Carlo Aldegheri.

Nito Lemos Reis nasceu no dia 17 de dezembro de 1927, em São Paulo, filho de José Lemos Núñez e Carmen Reig Puig, um casal espanhol. O seu pai, José Lemos Núñez, já era anarquista e um fervoroso anticlerical na Espanha. Em Andaluzia trabalhou em minas de carvão. Ele e sua família mudaram-se para Buenos Aires (Argentina) e logo em seguida para o Brasil. José Lemos Núñez chegou ao Brasil no dia 30 de setembro de 1914, com 29 anos de idade. Aqui construiu um dos primeiros fornos para produção de ácido sulfúrico. Também trabalhou na manutenção da estrada de ferro Santos-Jundiaí.

A mãe de Nito, Carmen Reig Puig, nasceu em Barcelona. Chegou ao Brasil, junto com seus pais, no dia 25 de junho de 1906, tinha apenas 3 anos de idade. Sua família trabalhou na divisa de São Paulo com Minas Gerais, próximo a Uberaba, numa fazenda de café. Depois partiram para o interior de São Paulo, para uma fazenda próxima de Ibitinga. De lá seguiram para Mato Grosso, para em seguida mudarem-se para a Argentina, onde ficaram trabalhando em vinhedos na cidade de São João de Mendoza, por aproximadamente 10 anos. Depois dessa longa jornada, a família se estabeleceu definitivamente no Brasil.

O jovem casal imigrante que buscava uma vida melhor, se conhece em São Paulo, se casam e geram cinco filhos: Franciano, Liberto[1], José , Minerva & Nito Lemos Reis.

A família fixa residência na Vila Bertioga, no distrito da Mooca. Segundo Jaime Cubero, José Lemos Núñez “chegou a construir no fundo do quintal, uma cobertura para um dos maiores militantes do Brasil, o Florentino de Carvalho (1883 – 1947), fundar uma escola dentro daquelas escolas racionalistas que os anarquistas faziam em qualquer canto. Eles tinham já um certo envolvimento com o anarquismo”…[2] 

Quando o casal matriculou os filhos na escola, no registro escolar, no campo que tinha que preencher a religião dos filhos, eles colocaram ‘Livre Pensador‘. Também não batizaram os filhos. O casal, como já era um hábito na grande família libertária, também evitou colocar nos filhos nomes bíblicos ou cristãos.

Outro hábito tradicional que José Lemos Núñez trouxe da Espanha, foi um razoável acervo de publicações anarquistas. Na época era muito comum os anarquistas organizarem sua própria biblioteca em casa, contendo além de livros, revistas, jornais e outras publicações de cunho social e libertário.

É com esse material, que José Lemos Núñez vai incentivar a leitura libertária entre seus filhos e os amigos de seus filhos. Nessa época a família Cubero era vizinho da família Lemos, e aprenderam muito com eles. Outros anarquistas mais velhos, como José Oliva Castillo, também moravam na mesma rua ou próximos, e apoiaram a iniciativa.

Dessa forma, por volta de 1942, em plena ditadura do Getúlio Vargas e sob o regime do Estado Novo, esses jovens convidam outros rapazes e meninas e acabam fundando um grupo chamado Centro Juvenil de Estudos Sociais cujo principal objetivo era ler e debater temas sociais, especialmente com base no acervo trazido por José Lemos Núñez.

É esse grupo que acaba criando uma nova geração de anarquistas na Vila Bertioga (que será essencial para a renovação do anarquismo nas próximas décadas), participavam dele cerca de 18 pessoas, entre eles: Liberto Lemos Reis, Nito Lemos Reis, José Lemos Reis, Franciano Lemos Reis, Minerva Lemos Reis, Jaime Cubero, Maria Aparecida Cubero, Aurora Cubero, Francisco Cuberos Neto, Mercedes Cuberos, Antonio Cuberos, entre outros…

Após um grande período de repressão, o Centro de Cultura Social de São Paulo reabre publicamente no dia 9 de julho de 1945. Um dia o militante espanhol Alfredo Chaves[3], que fazia parte do Centro de Cultura Social de São Paulo acabou visitando uma das reuniões do Centro Juvenil de Estudos Sociais e comunicou os outros militantes do Centro de Cultura Social, que também apareceram por lá, entre eles, Edgard Leuenroth, Rodolpho Felippe e Pedro Catallo. Dessa forma, os jovens do Centro Juvenil de Estudos Sociais são convidados a participar do Centro de Cultura Social, que nesse período chegava a reunir entre 80 e 100 pessoas por atividade e se localizava na rua José Bonifácio, número 387, no bairro da Sé.

É nesse momento que Nito Lemos Reis vai conhecer outros militantes mais antigos, entre eles: Amor Salgueiro, Antonio Salgueiro, João Rojo, Antônio Castro, Nicola D’Albenzio, Virgilio Dall’Oca, Nair Dall’Oca, João Penteado, Adelino Tavares de Pinho, Antonio Ruiz, Salvador Arrebola, Benedito Romano, Lucca Gabriel, Antônio Martinez, Cecílio Dias Lopes, Maria Valverde Dias, Antônio Valverde, Sebastião Gomes, Salvador Arrebola, entre muitos outros…

Logo em seguida, Nito será convidado a participar do Grupo Teatral do Centro de Cultura Social e participará das seguintes peças teatrais:

– O Maluco da Avenida, de Carlos Arniches (comédia em 3 atos), encenada em 10 de abril de 1954;

– Feitiço, de Oduvaldo Viana (comédia em 3 atos), encenada em 27 de novembro de 1954;

– Ciclone, de William Somerset Maugham[4] (drama em 3 atos), encenada em 19 de março de 1955.

Nito, como era solteiro, muitas vezes ficava encarregado de procurar o figurino das peças e alugar o teatro para as representações, que geralmente aconteciam no Teatro Colombo, no Largo da Concórdia. Os ensaios das performances geralmente aconteciam na residência da Nena Valverde (irmã da Maria Valverde Dias), no Tatuapé, duas vezes por semana.

É justamente nesse período que Nito vai conhecer a sua companheira para toda vida: Luz Alvarez, filha de Virginia Perez e do conhecido anarquista Gumersindo Alvarez Fernandez[5]. Luz Alvarez nasceu em Nova Iorque (EUA) em 28 de fevereiro de 1931 e posteriormente mudou-se com a família para o Brasil. Inicialmente o casal se conhece nos encontros em Nossa Chácara[6].

Luz também participou do Centro de Cultura Social e representou as peças teatrais Feitiço (1954) & Ciclone (1955), acompanhada de Nito. A união de ambos aconteceu somente depois, em 6 de abril de 1957 (obviamente não se casaram no religioso), e durou por mais de 60 anos. Tiveram uma filha: Thais Alvarez Lemos Gil.

Nito distribuía os jornais anarquistas A Plebe e Ação Direta para o público que frequentava os espetáculos teatrais. Uma curiosidade é que naqueles tempos o teatro exigia que as pessoas entrassem de gravata, e como a maior parte do público que assistia as peças era formada pela classe trabalhadora, o grupo levava várias gravatas para distribuir na entrada dos espetáculos para que as pessoas pudessem entrar.

No prontuário policial do Centro de Cultura Social do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP), de número 1914, Nito Lemos Reis é o segundo militante a ser citado pelos policiais infiltrados. Em atas de assembleias gerais do Centro de Cultura Social, entre 1953 e 1955, ele aparece, entre outros, como secretário-geral da entidade [7].

Quando surgiram os jornais O Libertário (outubro de 1960) e Dealbar(setembro de 1965), apesar de não escrever artigos, ele contribuiu financeiramente para ambos e ainda colaborava em sua distribuição.

Após a implantação da ditadura militar no dia 1º de abril de 1964, a Sociedade Naturista Amigos da Nossa Chácara (SNANC), resolveu vender sua propriedade no Itaim Paulista, para comprar um sítio, em Mogi das Cruzes, que seria mais apropriado para a continuação do projeto libertário.

A campanha pró-compra do sítio foi iniciada em 28 de agosto de 1965, e foi concluída em 31 de dezembro de 1966. Na lista de pessoas que contribuíram financeiramente para a compra do Nosso Sítio, consta o nome do nosso estimado companheiro Nito que fazia parte daquela plêiade de companheiros que eram muito mais práticos do que teóricos.

Nito trabalhou por dezoito anos como sapateiro, depois adotou a profissão de caminhoneiro. Com o seu caminhão ajudou bastante na mudança dos pertences de Nossa Chácara para Nosso Sítio e também, devido o difícil acesso na época, muitas vezes levava em seu caminhão as pessoas para os encontros em Nosso Sítio.

O Nosso Sítio em Mogi das Cruzes oferecia muita tranqüilidade pela distância dos povoados mais próximos, cercado por frondosa floresta. Ali, em tempos de extrema repressão política, podia-se falar de anarquismo à vontade: o eco das palavras perdia-se no meio da mata, no cantar dos pássaros. Foi neste silêncio da selva paulista que os componentes do Nosso Sítio construíram, pelo sistema da ajuda mútua, salão para reuniões, moradias com diversos dormitórios para famílias, uma cozinha-refeitório e um conjunto de quartos com banheiros.

 

Além das contribuições em dinheiro para comprar os materiais, alguns companheiros fizeram doações de geladeira, fogões, mesas, cadeiras, armários, estantes, ferramentas, etc… Destacando-se alguns prestadores de mão-de-obra, como: Gumersindo Alvarez Fernandez, Felix Gil Herrero, Nito Lemos Reis, João Rojo, Antonio Martinez e José Oliva Castillo“[8].

Durante encontro de antigos militantes que periodicamente se reuniam em São Paulo, no Nosso Sítio, Nito Lemos Reis falou de uma velha casa deixada pelo seu sogro, o companheiro Gumersindo Alvarez, que seria vendida por motivo de partilhas familiares, e sugeriu: ‘Como o preço era bom e eu posso ajudar por ter uma parte na divisão, se nós criássemos um grupo de companheiros dispostos a se cotizar, podíamos comprar a casa’. Ainda segundo o companheiro Nito: ‘Com uma modesta reforma instalaríamos ali um arquivo’. A ideia caiu muito bem à maioria presente. Andávamos pensando em como guardar as sobras do acervo vendido pela família do Edgard Leuenroth à Unicamp e publicações doadas por vários companheiros. O lugar era de fácil acesso e lá fomos ver a casa… Todos assumiram cotizar-se…

 

Em seqüência aprovou-se um nome para o arquivo e o grupo redigiu os estatutos e assim ‘nasceu’ o Círculo Alfa de Estudos Históricos (CAEH), do qual Nito Lemos Reis foi sócio-fundador“[9].

Após o final da ditadura militar e a reabertura do Centro de Cultura Social em 14 de abril de 1985, com o peso da idade, Nito Lemos Reis foi se afastando gradativamente das atividades públicas dos meios anarquistas. Os jovens libertários, por sua vez, também não possuem o hábito de visitar os companheiros mais velhos, muitos acabam por vezes ignorando a própria história do anarquismo. Assim os jovens perdem a oportunidade de aprender com a vasta experiência dos mais velhos. Perdem igualmente a oportunidade de atualizar os velhos companheiros, de incentivá-los a se aproximar novamente das atividades libertárias.

Mesmo sem o contato dos companheiros mais novos e bastante desanimado com os rumos sociais da atualidade, em entrevista realizada por membros do Núcleo de Estudos Libertários Carlo Aldegheri (NELCA), no dia 12 de março de 2017, Nito Lemos Reis nos falava: “Eu acredito no anarquismo como uma solução humana. Seria uma solução para todo o problema social“.

Nito Lemos Reis faleceu no dia 12 de fevereiro de 2019, aos 91 anos, devido uma insuficiência cardíaca, entre outras complicações. Sentimos muito o triste falecimento do companheiro! É mais um de nós que se vai! O mundo fica mais triste, embora ele próprio ainda não saiba!

Companheiro Nito Lemos Reis: Lutando te recordaremos!!!

>> Notas:

[1] Liberto Lemos Reis posteriormente casou-se com a irmã gêmea de Jaime Cubero, Aurora Cubero.

[2] Três Depoimentos Libertários, vários autores, Editora Achiamé, Rio de Janeiro, 2002, página 113.

[3] Berrante Acadêmico (Assis/SP), dezembro de 1992, número 1, ano 1, página 12. Entrevista com Jaime Cubero. O militante Alfredo Chaves era pai da Mercedes, que foi a primeira esposa do Francisco Cuberos. A Mercedes também participava do Centro Juvenil de Estudos Sociais.

[4] Essa peça foi escrita originalmente em 1928, pelo dramaturgo inglês, com o título de The Sacred Flame.

[5] Gumersindo Alvarez Fernandez têm uma história muito interessante: ele nasceu em 27 de setembro de 1900, na Galícia, norte da Espanha, em um povoado chamado Goyan. Aos 16 anos muda-se para Nova Iorque/EUA, lá conhece o anarquismo. E a partir de 1934 vai viver e militar no Brasil. Sendo lembrado por seus companheiros sempre como uma pessoa muito coerente e ativa. Faleceu em 15 de junho de 1981.

[6] Quando os anarquistas brasileiros perdem seu espaço de atuação nos meios sindicais, devido a repressão do Estado Novo (1937 – 1945), um grupo de anarquistas inicia a construção de uma Chácara na cidade de Itaim, no interior do estado de São Paulo, que ficará conhecida como Nossa Chácara. O grupo que vai administrar a Nossa Chácara, será registrado na data de 9 de novembro de 1939, com o nome de Sociedade Naturista Amigos de Nossa Chácara (SNANC).

[7] Prontuário do Centro de Cultura Social de São Paulo no DEOPS, número 1914.

[8] Lembranças Incompletas, de Edgar Rodrigues, Editora Opúsculo Libertário, 2007, página 229.

[9] Lembranças Incompletas, de Edgar Rodrigues, Editora Opúsculo Libertário, 2007, página 383. Ver também estatutos do Círculo Alfa de Estudos Históricos registrados em 18 de Setembro de 1986.

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Jhonathan Arruda Gouveia