Este artigo é dedicado a Soledad Barret Viedma, assassinada pela ditadura militar brasileira, neta do anarquista Rafael Barrett.
Há alguns anos atrás um conhecido editor anarquista paulista, Plínio Coelho, crítico feroz do PT, alertava que os governos de Lula e Dilma estavam a abrir caminho para um qualquer político populista de extrema-direita. Não se tratava de bruxaria, nem de ter recorrido a uma mãe-de-santo de um qualquer terreiro de candomblé, mas tão só da lucidez de alguém que estava atento ao desastre que se anunciava.
Lula e o PT foram a partir dos anos 80, com o fim da Ditadura Militar, catalisando as esperanças de milhões de brasileiros numa mudança estrutural da sociedade. Não esperavam um revolução mas tão só reformas profundas que trouxessem alguma justiça social a uma das sociedades mais perversas, injustas e desiguais do mundo. A reforma agrária, a reforma urbana, a reforma fiscal, o fim da corrupção e o combate às grandes máfias do crime organizado era o mínimo que se esperava e que se prometia nas campanhas eleitorais.
É certo que quando Lula foi eleito já tinha começado a acomodar o seu programa aos poderosos interesses dominantes na famosa “Carta ao Povo Brasileiro” [1], que mais não era que um pacto negociado com os verdadeiros donos do Poder no Brasil. No entanto, o programa reformista do PT não era ainda uma impossibilidade até porque teria, nesse momento, um grande apoio social e era o desejo da militância popular do partido e dos eleitores, num contexto em que os setores conservadores estavam acuados.
O que se viu a partir de 2003, no entanto, foi algo diferente. Impôs-se no PT a linha hegemônica “pragmática” que, em nome da “governabilidade”, estava disposta a fazer todo o tipo de acordos com os deputados e senadores conservadores e a acomodar o seu programa aos interesses do grande capital. Foi uma época de crescimento econômico, numa conjuntura favorável, em que os grandes grupos econômicos passaram a encarar o governo de Lula de forma mais complacente, esquecendo as desconfianças do passado. Cresceram os salários mas principalmente os lucros desses grupos industriais e financeiros. Simultaneamente, o governo de Lula teve a possibilidade de implementar alguns dos seus programas sociais que tinham por base uma velha tradição latino-americana, no caso brasileiro getulista, de subsídios e apoios estatais aos grupos sociais mais pobres. Este assistencialismo permitia também dar o acesso ao consumo, embora mínimo, aos grupos excluídos e aos trabalhadores com salários mais baixos [2].
Os mandatos foram avançando e nada de reformas de fundo, pelo contrário, a velha política do “toma lá dá cá” foi-se consolidando como a tática de negociação parlamentar com os setores mais conservadores e reacionários da câmara dos deputados e do senado. Foi a época em que vimos Lula abraçado a Sarney, Collor, Maluf, Eduardo Cunha, Sérgio Cabral e tantos outros sinistros personagens.
Quando Lula, após oito anos de governo, em 2011, conseguiu transferir o apoio que ainda tinha, em função de uma situação econômica expansiva e das suas políticas sociais, para uma figura apagada da burocracia, Dilma Rousseff, não se esperava a tormenta que já se podia adivinhar com o chamado “mensalão”, esquema de corrupção na Câmara de Deputados que começava a chamuscar o PT. Como não tinha ainda chegado a crise brava, os eleitores, na velha tradição do “rouba mas faz” de Ademar de Barros e Paulo Maluf, ainda aceitaram que a corrupção fosse obra de uns quantos dirigentes e que Lula nada soubesse do assunto. Mesmo que esses dirigentes do PT acusados, José Genoíno e José Dirceu, fossem dois dos mais importantes estrategas do partido, muito próximos a Lula.
Com Dilma os problemas não pararam de se avolumar, a crise econômica e social foi crescendo ameaçadora, nas ruas as manifestações de descontentamento começaram a ser cada vez mais ruidosas. As obras faraônicas para o Mundial de Futebol de 2014 e para as Olimpíadas de 2016 causaram indignação, tanto mais que para a educação e para o sistema de saúde, que nunca deixou de ser um desastre, faltavam verbas. No seu governo aprovaram-se leis especiais de repressão social tendo em vista esses grandes eventos e um esquema de segurança máxima foi montado para garantir que a habitual violência das grandes cidades brasileiras, com milhares de mortos por ano, não incomodasse os visitantes estrangeiros. Mas as manifestações ainda eram de movimentos sociais de esquerda, embora começassem a agregar muitos descontentes influenciados pelo discurso conservador.
A partir de 2014 tudo se complicou. A Operação Lava Jato seguiu todo um conjunto de pistas que incriminam um grande esquema montado pelo governo do PT para distribuir dinheiro entre si e os partidos aliados a partir das grandes obras públicas e da Petrobras. Num momento em que a recessão econômica começava a apertar os brasileiros, com desemprego, falência de pequenos negócios e inflação crescentes, ver os dirigentes políticos do país a desviarem milhões e milhões dos recursos públicos despoletou a raiva de muitos dos eleitores que haviam apoiado Lula, Dilma e PT, sentindo-se traídos pelo partido. Essa raiva iria convergir com o ressentimento latente de setores conservadores da chamada classe média, que perderam de forma significativa poder de compra e que, no seu profundo reacionarismo, nunca aceitaram o discurso socializante do PT, mesmo que este fosse mais simbólico do que real, e as mudanças sociais e culturais que estavam ocorrendo no Brasil, muitas das quais até à margem do PT [3].
A partir daí, a base social que sustentava o governo foi-se fragmentando e a reação arrogante do PT contra todos os que saíam à rua, apelidados de coxinhas, acompanhada da vitimização do partido e de Lula, só fizeram crescer ainda mais a raiva. Não se podia mais tapar o sol com a peneira, nem ocultar que a esquerda geriu um grande esquema de locupletação com os recursos públicos.
Dilma Rousseff foi afastada do poder, em 2016, em pleno pique da crise econômica [4], após grandes manifestações de rua anti-governamentais, numa das típicas manobras maquiavélicas dos parlamentares brasileiros, mas que se resumiu para o PT e para a esquerda a um “golpe”, mesmo que esse golpe tenha sido dado pelos aliados da véspera do PT, muitos dos quais integrados nos governos de Lula e Dilma e que haviam sido sócios nos esquemas de corrupção na última década.
Aquilo que os grandes estrategas do partido imaginaram ser a forma de cooptar apoio aos seus governos para garantir a “governabilidade”, a corrupção, saía-lhes como um tiro pela culatra. Não só políticos aliados, como empresários, decidiram falar, como até dirigentes do próprio PT vieram confirmar os esquemas corruptos desses governos.
Da ideia de um partido vítima e de dirigentes inocentes passou-se então ao discurso “todos fazem isso”, naturalizando assim a prática corrupta do partido que usou os mesmos instrumentos dos velhos partidos. Só que o problema era, por um lado, que o PT desde a sua fundação defendia um discurso ético de combate à corrupção e à velha política brasileira. Por outro, o esquema que começava a ser exposto pela polícia e justiça mostrava-se o mais elaborado, complexo e bem gerido sistema de corrupção montado a partir do poder central. Não era já a prática da corrupção avulsa e amadora de cada partido e político meterem no bolso o que podiam, mas um sistema articulado, e centralizado, de distribuição de recursos públicos pelos partidos no poder, PT e seus aliados conservadores.
A raiva e o ressentimento passaram a ser imparáveis. Por razões de oportunidade foi um deputado ex-capitão, boçal e autoritário, Jair Bolsonaro, um Duterte à brasileira, que assumiu a frente desse combate anti-petista. Os políticos e dirigentes partidários mais importantes estavam na quase totalidade envolvidos nos vários esquemas que começavam a ser revelados e à esquerda nenhum dos partidos conseguiu, ou teve coragem, de entrar em confronto aberto com o PT. A direita começava a ganhar a disputa, uma direita autoritária, reacionária e inorgânica, em alguns casos de tipo fascizante, cimentada pelos pastores conservadores das igrejas pentecostais, mas que arrastou no seu avanço muitos dos desiludidos ex-eleitores apoiantes de Lula e do PT.
Chegados às eleições presidenciais de novembro, ao se extremar o confronto, a disputa passou a ser entre dois messias: Jair Bolsonaro e Fernando Lula Haddad. O que muitos imaginaram ser a solução milagrosa, o apoio de Lula, e a apresentação de Haddad como um homem de confiança de Lula, tornou-se no segundo turno o veneno. A maioria dos eleitores não votariam no que Haddad representava, mesmo que do outro lado estivesse o candidato mais boçal e reacionário que alguma vez se apresentou a eleições. Numas eleições radicalizadas sob o signo de “Haddad ou fascismo”, um terço dos eleitores, os abstencionistas, brancos e nulos, recusou-se a dar o seu voto ao candidato do PT.
A possibilidade de derrotar Bolsonaro, dentro da lógica política partidária, só poderia ter existido se Haddad tivesse assumido uma autocrítica em relação às práticas governamentais desastrosas do PT e negociado com o PDT, PSDB, PV, Rede e PPS uma frente contra a ameaça autoritária. No entanto, o PT, partido que em nome do “pragmatismo” fez todo o tipo de acordos espúrios com os partidos conservadores e os parlamentares mais reacionários ao longo de mais de uma década, usando a corrupção como instrumento de cooptação, não foi capaz de fazer um simples acordo político com os potenciais aliados do segundo turno.
A chantagem de “Haddad ou o fascismo”, com tudo o que significa de manipulação política, num contexto dramático, não funcionou.
Como escreveu o poeta: “E agora José?”
A situação é complexa e imprevisível. No mínimo vai crescer a partir de 2019 o caráter autoritário do estado brasileiro, vão ser desenvolvidas políticas conservadoras de restrição de direitos e uma guerra ideológica contra os valores de uma cultura progressista e cosmopolita, para lá de uma agenda econômica ultra-liberal que é o ponto fundamental para o grande capital. Uma coisa é certa: Jair Bolsonaro não dispõe de uma maioria social, a sua vitória embora significativa, resultando de 55,13% dos votos, está longe de recolher esse apoio [5]. No entanto, parece ser claro que o confronto e a oposição às políticas conservadoras, principalmente de uma perspectiva libertária da autonomia e auto-organização, passará mais pela sociedade, pelas ruas e pelos locais de trabalho, do que pelas disputas institucionais e partidárias em Brasília. A menos que os sindicatos, movimentos sociais, MST, ecologistas, feministas e nações indígenas rompam os laços de dependência e subserviência em relação ao Estado e aos partidos, no caso do Brasil em relação ao PT, não sairemos desta lógica contaminada da alternância dos grupos dirigentes que vão ocupando o Poder do Estado sem que nada mude de fundamental na sociedade brasileira. Que os anti-capitalistas se tornassem nesta fase, em nome de um frentismo, a ingênua tropa de choque de defesa do PT, ao lado do PSOL, seria o último desastre, tanto mais que os treze anos de lulismo nos demonstraram que as questões centrais na sociedade continuam a ser o Estado e o Capitalismo. Desta realidade não há como escapar. Se há uma coisa que a história recente do Brasil nos volta também a recordar é que nada se pode esperar de qualquer vanguarda iluminada e menos ainda de qualquer messias, chame-se António Conselheiro, Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Luís Inácio ou Jair Bolsonaro.
A esquerda e a autofagia
A propósito das eleições brasileiras muitos respeitáveis comentadores, sociólogos e políticos vieram explicar-nos, a nós e aos brasileiros, que um dia em Portugal Álvaro Cunhal apelou a que os militantes do PCP votassem em Mário Soares, mesmo que para isso tivessem de tapar o nariz ou a cara do candidato. Este gastronômico ato de engolir sapos era dado como o exemplo pedagógico a ser seguido pelos eleitores brasileiros descontentes com o PT se quisessem impedir a vitória de Jair Bolsonaro, reacionário hardcore. Esqueceram no entanto que o melhor exemplo da submissão ao pragmatismo realista está no Brasil onde o histórico dirigente comunista Luiz Carlos Prestes apoiou Getúlio Vargas, e pediu votos a seu favor, depois deste ditador ter mandado prender, torturar e matar comunistas e anarquistas, e ser o responsável direto pela deportação de Olga Benário, a comunista companheira de Carlos Prestes, para a Alemanha nazi onde morreu num campo de concentração.
Prestes foi pois o melhor exemplo da disposição dos comunistas e da esquerda para devorar as próprias vísceras em nome do partido, da nação e do povo.
Texto de M. Ricardo de Sousa
Ilustração de Daniela Rodrigues
Notas:
[1] Carta divulgada em 2002 por Lula ainda candidato a presidente para acalmar os empresários e o mercado financeiro. A redação deste documento é atribuída a António Palocci que foi ministro da Fazenda do primeiro governo do PT e é hoje um dos delatores nos processos da Lava Jato.
[2] Os principais programas sociais foram o Bolsa Família e o Fome Zero que tiveram um forte impacto nos setores mais pobres da sociedade brasileira.
[3] Mas não podemos esquecer que uma parte dessa pequena e média burguesia urbana, principalmente a intelectualizada, foi nos últimos anos apoiante do lulismo.
[4] Neste período da pior crise desde os anos 90 o desemprego já havia superado os 12% e o PIB caído mais de 3%.
[5] Fernando Haddad teve 44,87% dos votos e a soma dos brancos, nulos e abstenções foi de 30,87%.
Fonte: http://www.jornalmapa.pt/2019/03/28/brasil/
agência de notícias anarquistas-ana
o vento lambe teu corpo,
ainda morno o bebo:
parece vapor de licor
Alaor Chaves
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!