Pura Sánchez, investigadora granadina, conta uma história inédita: a de uma menina guerrilheira, Enriqueta Trujillo, que foi julgada por um conselho de guerra com apenas 15 anos. Os fatos ocorreram quando a menor tinha 12 anos, no povoado de Pedro Martínez (Granada). Mais um retrato da ilegalidade do regime franquista que julgou menores em tribunais militares. Enriqueta está viva, tem 95 anos e sua vida está no livro, ‘A Luz da Inocência’ (editora Bellaterra).
por María Serrano | 28/04/2019
“O testemunho de Enriqueta é de uma vida singular, marcada pela violência que aqueles que foram derrotados tiveram que sofrer. Uma vida na qual a condição de mulher resistente acabará sobrepondo-se à de vitima” Enriqueta Trujillo nunca foi educada na religião católica, seu padrasto Eduardo quis educá-la na escola racionalista, promovida pela CNT no povoado de Sallent, em Barcelona, onde lia a Revista Branca anarquista, editada pelos pais de Federica Montseny, filha de María Gallardo, com a qual emigrou sozinha à Catalunha no final da ditadura de Primo de Rivera. Enriqueta nunca teve uma vida fácil; “Antes de seus 21 anos já tinha vivido os maiores dramas de sua vida: cárcere, julgamento militar, e a perda de sua mãe. Foi uma autêntica sobrevivente”, revela Pura Sánchez, pesquisadora e autora do livro “A Luz da Inocência”.
Com sua nítida memória, Enriqueta se recorda de um dia de sua infância na década de 1920: “Um dia quando voltava da escola, vi que haviam colocado algumas mesas na praça do povoado, nas quais se formava uma fila de gente. No meio da praça um homem se dirigia aos que ali estavam: ‘Não fiquem aqui, vendo como seus filhos passam fome e necessidade!'”. Quando chegou em casa, sua mãe já havia tomado uma decisão: “Nós vamos para a Catalunha! Não sei onde é, mas não fico aqui recolhendo essas folhas cheias de barro, jogadas pelas ruas e me matando de implorar por comida e um pouco mais”.
Maria partiu com Enriqueta ainda criança rumo à Catalunha. Sua mãe começou a namorar Eduardo, um homem anarquista, que a ajudou a ter alguma estabilidade em uma época com tantas incertezas. Eduardo, o filho desse, Eduardico, María e Enriqueta formaram uma família livre em Barcelona nos anos de 1930. Esse homem, afiliado à CNT, era do município de Pedro Martínez, um povoado da província de Granada, que agora tem somente mil habitantes por conta da forte emigração sofrida nos anos de 1950 e 1960. Mas logo aqueles dias de paz começariam a perturbar a família; “Eduardo não queria enganar Maria. Sua militância na CNT poderia trazer problemas”. O padrasto anarquista de Enriqueta, voltaria novamente ao seu povoado para começar ali uma vida com todos eles.
Apesar de tantos anos vividos, na memória de Enriqueta – já com noventa anos – ainda estão presentes os dias em que seu “pai”, Eduardo, a levava aos comícios do Cinema Condal de Barcelona, onde aprendeu o espírito da solidariedade que a acompanhou durante toda sua vida. “Nunca se esqueceu daquele tempo em que a luta foi crucial, e cuja ideologia a marcaria pelo resto de sua vida”.
Ingresso à Brigada Maroto aos 12 anos de idade
Pura Sánchez conta ao Público como aquela jovem, de apenas 12 anos, fez parte da República das Juventudes Libertárias de Pedro Martínez; Já iniciada a guerra, passa a fazer parte da 147ª Brigada Maroto: “No ano de 1937 Enriqueta tinha treze anos e já entendia muito sobre o que era a frente que se organizava perto de O Molinillo”, uma aldeia perto de Tocón de Quéntar, em plena serra. O “pai” de Enriqueta escreveu uma carta como civil ao miliciano Maroto, que pede a Eduardo que ele e sua família se ocupem da intendência. Começa assim o treinamento da pequena Enriqueta como membro da brigada; ele a ensina a montar a cavalo e o caminho habitual que deveria percorrer. “É cada história curiosa…”, pontualiza Pura Sánchez. “Nas entrevistas que fiz com ela, Enriqueta não fazia ideia que aquilo era um coletivo do exército republicano, uma brigada mista. Sendo criança, acreditava que aqueles envelopes eram correspondências familiares, e o que tinham, na verdade, eram importantes instruções militares. O guarda civil que a acusaria anos depois, nunca soube daquela época no coletivo, o que certamente a teria levado ao fuzilamento”.
A guerra continuava, havia pânico pelas ruas de Pedro Martínez, onde Enriqueta, quase adolescente, vivia junto a sua mãe e seu meio-irmão. “Naqueles tempos de guerras, ser da família Tiburcios e enteada de Eduardo era motivo suficiente para que a jovem Enriqueta estivesse designada a ficar na mira” daqueles guardas civis.
“É uma menina. Matou alguém? Você a conhece de algum lugar?”
No dia 5 de abril de 1939, após o fim da guerra, Enriqueta foi colocada em uma fileira junto às mulheres do povoado. “A menina se aproximou do novo edifício do ajuntamento com cautela. Da última esquina da rua, pode observar como havia se formado uma fila de homens, que iam entrando um a um conforme seus nomes fossem chamados”. O guarda Molinero, que levaria Enriqueta à prisão “estava armado com um chicote com o qual ia batendo com fúria em cada um que entrava”. Estavam também as camaradas de Enriqueta da Associação de Mulheres Antifascistas, a maioria jovens; uma mulher casada e também Virginia, uma senhora que acabaria morrendo na prisão. Pura Sánchez conta como Enriqueta entrou assustada e encolhida na sala na qual, atrás de uma mesa, havia dois militares, que dirigiam o interrogatório. Um dos oficiais pareceu se compadecer com ela. “É uma menina. Matou alguém? A conhece de algum lugar?” “Não. Veio de Barcelona, mas está envolvida com o sindicato e está na lista que lhe dei”. Pura conta como os “soldados lhe disseram que fosse a sua casa, preparasse a mala, e esperasse que fossem buscá-la para levá-la à prisão”.
O périplo carcerário de Enriqueta Trujillo começou em uma prisão totalmente improvisada em Pedro Martínez, mudou-se em pouco tempo para a prisão de mulheres de Guadix, onde permaneceu por quase 4 meses. Sua mãe não podia suportar o sofrimento, era muito doloroso ver a pequena Enriqueta atrás das grades, e suplicou dia após dia no quartel para que a prendessem junto à sua filha. Naquele tempo, seu marido Eduardo também estava preso em um campo de concentração. “Maria fez o impossível para que o impiedoso guarda Molinero a levasse com ela”. E assim foi, María e Enriqueta permaneceram alguns meses na prisão de Guadix. Mas aos seus 45 anos, María Gallardo se encontrava bastante mal. “Vomitava toda a comida que ingeria na prisão. Estava em mal estado e seu pesar era muito grande”.
Acusada aos 15 anos de aderir à rebelião.
Em janeiro de 1940, Enriqueta é transferida à prisão de mulheres de Granada. Sua mãe permanece na outra prisão e não faz ideia de que sua filha de quinze anos seria julgada sozinha em um Conselho de Guerra.
Pura Sánchez conseguiu há alguns meses o documento do julgamento sumaríssimo que finalmente foi apresentado a Enriqueta e sua família. Jamais haviam conseguido acessar aqueles papéis que se encontravam no arquivo histórico provincial de Almería. “Enriqueta foi considerada culpada dos atos que lhes foram atribuídos pelo guarda Molinero em sua denúncia: ‘Interveio no assalto e destruição do Quartel da Guarda Civíil desse povoado, incitando as massas. Também teve participação na destruição da Igreja Paroquial e arrecadou fundos para o Socorro Vermelho Internacional’. Foi acusada de delito e de adesão à rebelião. Segundo afirma a sentença ‘as testemunhas confirmaram suas ações, declarando que agiu, não por iniciativa própria, senão incitada por seus pais, que eram marxistas da pior classe.'”. Enriqueta só admitiu ter sido presidenta das Juventudes Libertárias de seu povoado.
No expediente do conselho de guerra se indica que em 25 de junho de 1939 Enriqueta ficará à disposição do Tribunal Tutelar de Menores. “Não consta no expediente judicial a data em que lhe foi concedida a liberdade. No entanto, em uma agenda guardada por Enriqueta, ela mesma anotou que saiu da prisão em 8 de dezembro de 1943 para ingressar, logo em seguida, no convento das Adoradoras” – por ainda ser menor de idade na época.
“Ai, mamãezinha… mamãezinha, já não te verei mais. Não me esperarás em nenhum lugar.”
Aqueles cinco anos marcaram para sempre a vida desta jovem granadina. E lhe fizeram viver um dos piores momentos de sua vida dentro de uma prisão. Enriqueta viu que sua mãe entrou com uma maca na prisão de Granada quase morrendo. É o único momento da entrevista em que Enriqueta não consegue conter as lágrimas.
A própria autora se estremece ao recordar o testemunho de Enriqueta, quando as monjas da enfermaria da prisão lhe deixaram sozinha com sua mãe depois de seu falecimento: “Prepararam o corpo de María para velá-la e trancaram mãe e filha”. Assim Enriqueta passou a sua última noite com sua mãe: “María, coberta no solo, e ela, para ficar perto, se aconchegou junto à sua mãe morta”. Pela manhã, logo cedo, vieram quatro homens e colocaram María em um caixão de tabaco para enterrá-la. “Ai, mamãezinha… mamãezinha, já não te verei mais. Não não me esperará em nenhum lugar.”, gritava Enriqueta no pobre cortejo até a porta da prisão. María Gallardo Vergara foi enterrada em um poço comum. Ninguém disse a Enriqueta onde estavam seus restos, nem mesmo nos dias de hoje ela teve conhecimento deles.
A tentativa de reeducação de Enriqueta
Quando a jovem saiu da prisão ainda era menor de idade. “Seguia sendo uma pessoa perigosa, que pouco poderia contribuir como “vermelha” à sociedade, então a levaram a um convento para reeducá-la”. Enriqueta conta que passou dias piores no convento do que na própria prisão, onde estava com camponesas que ao menos lhe brindavam com seu carinho e solidariedade.
Anunciação foi seu novo nome, mas Enriqueta se rebelaria a cada momento para fazer com que aquelas monjas entendessem que ela não ia servir a Deus. “Queria sair e se casar. Ter sua própria vida”.
Levou muito tempo para que pudesse voltar a Pedro Martínez , onde tinha feito uma promessa. Um jovem de sua idade, Antônio o Loiro, lhe disse umas palavras antes dela ser levada à prisão: “Não chore Enriqueta, ainda que volte com sessenta anos de idade, eu hei de me casar contigo”. Já em 1948 Enriqueta pode se casar com Antônio e ter nove filhos, ainda que a vida nunca tenha deixado de dar-lhe momentos difíceis.
Nos anos de 1960, Enriqueta perdeu seu marido e há poucos anos, dois de seus filhos. Mas ela segue forte e a publicação de sua história proporcionou uma grande alegria a ela e sua família. A história dessa menor de idade nas prisões do franquismo é um acontecimento “mais normal do que pensamos” na historiografia recente. Quantos relatórios de comportamento, quantas menores de 21 anos eram consideradas “Sujeitos perigosíssimos” como ocorreu com a jovem Enriqueta. O número é incalculável, mas os tribunais militares não paravam de acusar meninas inocentes e de encarcerá-las ao considerá-las “perigosíssimas para a causa nacional’ ou “individuas de moral duvidosa”.
Fonte: https://www.publico.es/culturas/joven-enriqueta-juzgada-tribunal-franquista-15-anos.html
Tradução > Daitoshi
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Anibal Beça
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!