Foi o pior acidente nuclear da história. Mas também uma dos maiores esforços de um governo para ocultar uma tragédia. Historiadores e jornalistas contam como isso aconteceu.
Por Lucía Blasco | 31/05/2019
É difícil imaginar uma tragédia pior que a de Chernobyl. Mas é ainda mais difícil compreender a ideia de como o alto escalão da União Soviética tentou evitar de todas as formas que o maior acidente nuclear da história viesse à tona.
Quando o reator número quatro explodiu, espalhando nuvens radioativas no hemisfério norte da Terra, da Checoslováquia ao Japão, e liberando na atmosfera o equivalente a 500 bombas de Hiroshima, o Partido Comunista da União Soviética tentou controlar informações para criar sua própria versão dos fatos.
“Esconderam a gravidade do acidente desde o início e se recusaram a evacuar Kiev (capital da Ucrânia)”, diz a jornalista Irena Taranyuk, do serviço ucraniano da BBC.
Irena era uma estudante e vivia na época na parte ocidental da antiga URSS. Ela se lembra do medo e da confusão que sentiu quando a notícia foi divulgada.
“Nós nos informávamos por meio do ‘inimigo’ – a mídia ocidental, como a BBC – sobre o que estava acontecendo. Enquanto isso, muitos jovens e colegas universitários foram enviados para trabalhar na zona como voluntários, sendo expostos à radiação.”
A URSS não conseguiu conter as notícias por muito tempo. “Não foi possível encobrir algo tão grande quanto isso. Os rumores começaram a se espalhar como a água”, diz Taranyuk.
Três décadas depois, ainda não sabemos a extensão total da tragédia ou quantas pessoas exatamente morreram de câncer ou de outras doenças decorrentes – estima-se que sejam cerca de 4 mil, mas este número pode ser maior.
Testemunhos, dados e histórias de sobreviventes, juntamente com o trabalho de pesquisadores, nos contam hoje como tudo aconteceu. Também permitiram recriar na televisão o drama de Chernobyl em uma aclamada minissérie de ficção de mesmo nome que acaba de estrear na HBO.
Mas vamos voltar aos fatos. O que exatamente aconteceu em 26 de abril de 1986 e como a antiga União Soviética tentou impedir que o mundo soubesse desse desastre?
Da negação à irresponsabilidade
Eram 5h da manhã quando Mikhail Gorbachev, o último líder da URSS, recebeu um telefonema. Ele foi informado de que havia ocorrido uma explosão na usina nuclear de Chernobyl, mas, aparentemente, o reator estava intacto.
“Nas primeiras horas e até mesmo no dia seguinte ao acidente, não se sabia que o reator havia explodido e que havia acontecido uma enorme emissão de material nuclear na atmosfera”, disse o próprio Gorbachev mais tarde.
O homem mais poderoso da URSS naquela época não viu necessidade de acordar outros líderes políticos ou interromper seu fim de semana para realizar uma reunião de emergência, explica o historiador ucraniano Serhii Plokhii no livro Chernobyl: the History of a Nuclear Catastrophe (Chernobyl: a História de uma Catástrofe Nuclear, 2018).
Em vez disso, ele criou uma comissão do governo liderada por Boris Shcherbina, vice-presidente do conselho de ministros, para investigar as causas da explosão. Enquanto isso, os cidadãos corriam perigo. Mas ninguém se atreveu a ordenar uma evacuação.
A primeira aproximação de helicóptero, cerca de 24 horas após a explosão, mostrou a magnitude da catástrofe. “Quando eles desembarcaram, ainda não estavam prontos para aceitar o que havia ocorrido”, diz o historiador.
O próprio Shcherbina escreveu em suas memórias que teve de se forçar a assimilar o que seus olhos viam.
“No começo, eles estavam em estado de choque e negação, não queriam aceitar o que havia acontecido, não queriam se responsabilizar pelo que aconteceu”, diz Plokhii, que também é diretor do Instituto Ucraniano de Pesquisa da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
“Houve uma negação por parte daqueles que trabalhavam em Chernobyl e, além disso, era muito difícil dizer o que estava acontecendo sem se colocar em uma situação ainda mais perigosa.”
Plokhii escreve em seu livro que “à medida que os níveis de radiação aumentavam, as autoridades ficavam cada vez mais nervosas, mas não tinham o poder de decidir pela evacuação”. “O país levou 18 dias para falar sobre isso na televisão”, acrescenta.
“A reação imediata foi esconder a tragédia e, em seguida, tentar minimizar a quantidade de informação publicada”, diz Adam Higginbotham, autor de Midnight in Chernobyl (Meia-noite em Chernobyl, 2019), que reúne testemunhos sobre o desastre.
O escritor aponta que havia uma “dimensão psicológica” nessa negação inicial. “O evento foi tão catastrófico e a escala do desastre foi tal que nem mesmo especialistas bem treinados, que entendiam exatamente a energia nuclear, conseguiram assimilar o que estavam vendo”, diz Higginbotham.
“É preciso entender que a escala do acidente era muito grande até mesmo para os soviéticos para não se deixar levar por estereótipos típicos sobre como funcionava a URSS. A história é mais complexa e complicada do que isso.”
Armen Abagian, na época diretor de um instituto de pesquisa em energia nuclear, disse a Shcherbina que a cidade tinha de ser evacuada. “Falei para ele que havia crianças correndo pelas ruas, gente colocando a roupa para secar no varal. E a atmosfera estava radioativa”, teria afirmado Abagian, segundo o historiador Serhii Plokhii.
Mas a URSS avaliou que a retirada não era necessária. Ninguém queria assumir a responsabilidade de ordenar uma evacuação e, assim, fazer um mea culpa. Mas, enquanto a comissão pensava sobre o que fazer, as pessoas começavam a deixar a cidade.
O governo soviético não queria que as más notícias se espalhassem tão rapidamente quanto a radiação. Por isso, cortou as redes de telefonia, e os engenheiros e funcionários da usina nuclear foram proibidos de compartilhar informações sobre o que aconteceu com seus amigos e familiares, explica Plokhii.
Não era a primeira vez que os soviéticos enfrentavam uma situação assim. “Houve um outro desastre nuclear (muito menor) em setembro de 1957, em Kyshtym, nos Montes Urais, mas não havia nenhuma informação sobre isso”, diz Plokhii. “Manter o silêncio era um protocolo padrão na URSS.”
“Os americanos encontraram alguns sinais de que houve uma explosão e contaminação no primeiro desastre, mas não disseram nada porque eles próprios desenvolviam grandes planos nucleares e não queriam criar alarde.”
Higginbotham também cita o acidente em Kyshtym, que os soviéticos conseguiram esconder com sucesso “Simplesmente adotaram a mesma abordagem em Chernobyl, mas, neste caso, a fronteira era mais próxima do Ocidente e a contaminação e seu alcance foram muito maiores.”
Como o mundo descobriu?
“Foram os suecos que detectaram primeiro que algo estava errado e, em seguida, alguns britânicos que trabalhavam em outra usina nuclear”, diz Plokhii.
Higginbotham diz que os suecos começaram a perguntar às autoridades soviéticas se houve um acidente nuclear, “mas, mesmo naquele momento, eles continuaram negando que algo tivesse acontecido.”
Na Suécia, altos níveis de radiação foram detectados nos dias após o acidente cuja origem não tinha explicação.
“Autoridades europeias alertaram sobre o que estava acontecendo, e a URSS teve de divulgar informações. Revelaram mais e mais coisas, mas apenas pela pressão do Ocidente”, concorda Plokhii, que acrescenta que o contexto da Guerra Fria é essencial para entender como os fatos se desenrolaram.
O historiador diz que a “insatisfação” daqueles que viviam na URSS naquela época também desempenhou um papel fundamental. As pessoas estavam se informando sobre os fatos por meio da mídia estrangeira e de rumores – alguns corretos e outros não – e não por seu próprio governo.
“Levou semanas, meses e até mesmo anos até que, gradualmente, a verdade emergisse, em parte porque eles capturaram correspondentes estrangeiros baseados em Moscou e os impediram de sair da cidade e se aproximar da zona do acidente”, diz Higginbotham.
“Muitos desses jornalistas começaram a publicar qualquer informação que recebiam, mesmo que fossem rumores.” Nos Estados Unidos, o jornal New York Post chegou a dizer que 15 mil pessoas haviam morrido, exatamente o oposto do que o governo queria.
“Eles não queriam que a população tomasse precauções”, diz Irena. “Foi irônico que nos informarmos pela mídia estrangeira.”
Mas Higginbotham diz que a história contada sobre Chernobyl no Ocidente é muitas vezes incompleta e que “muitas coisas que foram escritas são baseadas em ideias pré-concebidas sobre como era a vida na URSS”, deixando de lado a dimensão psicológica e humana daqueles que tomaram as decisões.
A queda de um império
“Chernobyl está frequentemente ligado a mudanças estratégicas na União Soviética e aos primórdios da sua abertura política, o princípio de tudo está em Chernobyl”, explica Plokhii.
O historiador diz que queria escrever sobre a tragédia que fez parte de sua história pessoal. “Lembro-me do horror daqueles dias, não sabia o que ia acontecer e tentei reconstruir os fatos da melhor forma possível”, diz Plokhii.
“A reconstituição me fez concluir que houve realmente uma ligação direta entre Chernobyl e a queda da URSS.”
“A maneira como a União Soviética entrou em colapso não pode ser realmente entendida sem a história de Chernobyl”.
Higginbotham considera que este foi um momento-chave “na desintegração da URSS, não só pelo custo econômico ou pela crescente desconfiança das instituições pelos soviéticos, mas também por causa de como isso mudou o próprio Gorbachev”.
“O acidente revelou que Gorbachev corrompeu o império que havia herdado”, diz ele.
“Mas a lição mais importante que Chernobyl nos deixa é o problema de confiar demais na tecnologia – as pessoas acreditavam que um acidente daquela escala era impossível mesmo após ter ocorrido – e também que uma cultura que nega evidências científicas e é baseada em mentiras e sigilo não é segura para ninguém.”
agência de notícias anarquistas-ana
canta bem-te-vi
sol por todo o lado
natureza sorri
Carlos Seabra
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!