“Faz falta uma literatura antipatriótica”, escreveu, sem que seu pulso tremesse a vigiada pela polícia, pacifista em plena guerra, antinacionalista, feminista, defensora do amor livre e do controle de natalidade, Emma Goldman, que sacudiu o mundo com suas palavras valentes, hoje mais necessárias do que nunca.
Por Julián Sorel | 30/06/2019
“O patriotismo é uma superstição artificial criada e mantida com mentiras e falsidades, uma superstição que rouba dos homens sua dignidade e alimenta sua arrogância e presunção”. De fato, presunção, arrogância e egoísmo são a essência do patriotismo”, escrevia em La palabra como arma (Buenos Aires, Libros de Anarres, 2010), uma coletânea de artigos originalmente impressos como título Anarchism and Other Essays[Anarquismo e Outros Ensaios] (Mother Earth Publishing Association, 1911), Emma Goldman, que migrou muito jovem para os Estados Unidos, começou a trabalhar em uma fábrica, onde, em um café nova-iorquino de Suffolh Street, conheceu Johan Most e Alexander Berkman. Most a empurrou para tomar a palavra em atos públicos, fato que a ajudou a descobrir-se como uma potente oradora. Emma nasceu em 27 de junho de 1869 na Lituânia, parte do então Império Russo, e completaria 150 anos nesta quinta-feira [27 de junho].
Por coincidência, também nesta quinta o jornal espanhol El País publicava uma entrevista (1) do professor do Yale Jason Stanley sobre seu livro,Facha, que relata como funciona o fascismo e como entrou em sua vida, e que fala do nacionalismo que enfrentamos hoje no mundo. Nas mesmas páginas, faz um mês, trazia uma reportagem (2) do historiador e ativista do Occupy Wall Street, Marc Bray sobre seu livro Antifa, o manual do antifascista, que alerta sobre o auge de uma ultradireita global, fenômeno que chama a atenção dos investigadores e que se observa em vários países – incluindo o Paraguai que está saindo ultimamente à luz –, ao ponto que Fundéu lançou uma alternativa para “alt-right”: “nacional populismo”, “um movimento político de forte liderança, apelação radical à identidade nacional e grande hostilidade contra a imigração, à globalização e às minorias”. Quanta falta faz, por tudo isso, mentes como a de Goldman, capazes de desmascarar – e de denunciar – a farsa das superstições patrióticas e nacionalistas sem temor em tempos difíceis como os seus e, agora, também como os nossos, quando fazê-lo pressupõe riscos.
Goldman já era companheira de Berkman quando ele decidiu atentar contra Henry Clay Frich, presidente da companhia Carnegie, por sua conduta miserável com os operários. Berkman foi preso e condenado a 22 anos de trabalhos forçados e domiciliar na casa de “Emma, la Roja”, como a polícia a chamava, e foi submetido a estrita vigilância. Quando ele saiu em liberdade 14 anos depois, juntos começaram a publicar a revista Mother Earth (Mãe Terra). Com o estourar da guerra em 1914, ela foi detida, acusada – estava em um movimento contra o recrutamento forçado de homens para a guerra – de “antipatriota”. E, por uma calúnia, de receber fundos alemães. Em 1919 o serviço de imigração limitou sua liberdade de circular e tiveram que pagar quinze mil dólares, que foram reunidos por seus companheiros, para reverterem o processo. Nenhum dos dois havia conseguido obter a nacionalidade estadunidense, e em dezembro foram deportados para a Europa. Na Rússia conheceram a decepção. A revolta de Kronstadt e o movimento makhnovista na Ucrânia os levaram a escrever ao Comitê de Defesa dos Trabalhadores de São Petersburgo uma carta na qual diziam, entre outras coisas que: “Combater os revolucionários de Kronstadt é provocar a contrarrevolução no país”. E a vida fez com que fosse impossível, logicamente, mas conseguiram sair da Rússia e levaram, escondido, o manuscrito de Piotr Archinov “História do movimento makhnovista”, que foi publicado na França e lido em todo o mundo. Esta é uma historia grande e bela, mas temos que fazê-la ser curta e grossa. Emma amou muito vários homens. Com o tempo, Berkman se uniu a outra mulher e teve uma filha, que recebeu o nome de Emma. E quando Emma “la Roja” tinha 67 anos, seu companheiro de vida e de ideias, Berkman, se suicidou. Resta-nos a maravilhosa foto de ambos no arquivo do Departamento de Guerra dos Estados Unidos com o título: “Atividades dos inimigos” e a legenda: “Emma Goldman, anarquista e subversiva, e seu ajudante, Alexander Berkman, socialista, anarquista, e causador de problemas gerais, juntos foram presos e condenados por obstruir o projeto”. Pouco depois estourou a Guerra Civil, e Emma foi à Espanha, logo começou a fazer campanha pelos refugiados em Toronto; ali, uma súbita hemorragia cerebral lhe causou a perda da fala, e outra, horas mais tarde, a matou no dia 13 de maio de 1940. Foi enterrada em Chicago, no cemitério alemão, chamado Waldheim, onde também se encontram os restos dos mártires de Chicago e de Voltairine de Cleyre.
“Os homens e as mulheres pensantes de todo o mundo começaram a notar que o patriotismo é intolerante e limitado…”. A centralização do poder trouxe um sentimento de solidariedade entre os oprimidos do mundo; solidariedade que traz uma maior harmonia de interesses entre os trabalhadores da América do Norte e seus irmãos estrangeiros que entre os mineiros norte-americanos e seu compatriota explorador; solidariedade que não teme as invasões estrangeiras, porque sabe que está chegando o momento em que todos os operários dirão aos seus patrões: “Vá e faça sua própria matança. Nós já fizemos o bastante para vocês”. Esta solidariedade está despertando as consciências, inclusive, dos soldados, que também são carne da carne da grande família humana. Esta solidariedade, que já se mostrou infalível mais de uma vez em lutas passadas, foi o ímpeto que, na Comuna de 1871, permitiu aos soldados parisienses se negarem a obedecer quando foram ordenados a disparar contra seus irmãos; esta solidariedade foi a que deu coragem aos amotinados nos navios de guerra nos últimos tempos; e será ela que trará no futuro o levantar de todos os oprimidos e pisoteados contra seus exploradores internacionais. O proletariado da Europa compreendeu o grande potencial da solidariedade e iniciou, em consequência, uma guerra contra o patriotismo e seu sangrento espectro, o militarismo. Milhares de homens encheram as prisões na França, na Alemanha, na Rússia e nos países escandinavos porque se atreveram a desafiar essa velha superstição. E os norte-americanos deverão seguir essa tendência. O espírito do militarismo penetrou todos os aspectos da vida. O primeiro passo se dá na escola. Está claro que o governo adere às concepções jesuítas: “Domine a mente da criança e moldará o homem”. Faz falta uma literatura antipatriótica que possa iluminar os soldados sobre os verdadeiros horrores de seu ofício e despertar sua consciência sobre a relação com aqueles cujo trabalho é sua própria forma de subsistência. Isso é precisamente o que as autoridades mais temem. Provavelmente seja ainda mais importante levar a verdade aos quarteis do que às fábricas. “Quando nós minarmos a mentira patriótica, vamos ter limpado o caminho para que todas as nacionalidades se unam na irmandade universal de uma sociedade livre.”
Emma Goldman escreveu no capítulo 6, do livro La palabra como arma: “Patriotismo, ameaça para a liberdade”. A palavra foi a arma de Goldman, que nunca empunhou outra. Arma fecunda em sua voz, eloquente e apaixonada a que muitos devem o favor de abrir suas mentes. Arma temível, porque Emma Goldman não retrocedia ante as consequências de questionar o que era inquestionável. Arma poderosa, porque Goldman sabia que a verdade já é por si só revolucionária. Era uma mulher muito culta, mas capaz de falar das coisas que vivia e das coisas que todos viviam. “Maldita cadela anarquista, desejaria poder atacar-te! Te arrancaria o coração e o jogaria ao meu cachorro”, dizia uma das mensagens menos obscenas que Goldman recebeu durante uma de suas estâncias na prisão. Uma mente sem medo, uma mente sem freios, aterrorizantemente livre e, por isso, “a mulher mais perigosa da América” (“the most danger ous woman in America”), segundo J. Edgar Hoover, o primeiro diretor do FBI. Que maravilhoso receber essas duras palavras.
Notas
[1] “Jason Stanley: “Aos brancos de classe baixa dos EUA: sua brancura está lhes matando””, El País, quinta-feira, 27 de junho de 2019 (disponível em: https://elpais.com/elpais/2019/06/26/ideas/1561565581_344138.html
[2] “Mark Bray: “Não podemos ignorar a extrema direita nem banalizá-la””,El País, 11/05/19 (disponível em:https://elpais.com/cultura/2019/05/10/actualidad/1557508588_410154.html
Tradução > Daitoshi
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!