Morre na Argentina Alicia Zárate

É com grande tristeza que comunicamos o falecimento em Buenos Aires da companheira Alicia Zárate. Não temos mais detalhes da recente morte desta querida amiga. Em sua memória, reproduzimos abaixo uma entrevista que realizamos com ela há mais ou menos 20 anos. Gratidão. Saudades. Que a terra lhe seja leve.

Argentina + Arte + Anarquia + Alicia

Alicia Zárate é portenha, na verdade do mundo. Fala, além do idioma pátrio, alemão, francês, inglês, e ainda, despretensiosamente, italiano, árabe, russo. É fascinada pelos idiomas, as letras…

Alicia é um arquipélago humano. Uma ilha de sabedoria, que acredita na Arte, na Anarquia, na Poesia, na Música, na Natureza, no Amor, na Emoção, nos Sonhos, mas de olhos abertos. Alicia é um coração livre!

Com clareza, modéstia e bom humor, Alicia Zárate concedeu à ANA a entrevista a seguir, onde fala de arte, da sua história, da crise na Argentina e muitas coisas mais. Tenha a sensação, por um instante, de estar nas barricadas do país vizinho, a Argentina.

Agência de Notícias Anarquistas > Podemos começar essa conversa com você falando da sua infância, de como chegou ao anarquismo…

Alicia Zárate < A expressão através da arte nasceu em mim da mesma maneira que em todos os seres humanos. Não foi sufocada, nem estimulada pelos meus pais, me deixaram fazer as coisas. A arte foi meu refúgio num mundo de fortes contrastes.

É possível desenhar com elementos que estão ao alcance de qualquer pessoa, e não é necessário dispor de um grande espaço. Podia expressar “meus pensamentos secretos”, minha opinião sobre o que me afetava e não mostrá-la a ninguém. Soltava meus fantasmas, meus medos… e logo transformava essas imagens. Também conservava na memória um instante, algo do cotidiano, que queria pegar, como se pode fazer com a fotografia.

Aos 12 anos, e diante do “talento” manifestado, fui aprender técnicas de desenho e pintura numa escola do bairro de “Arroyito”, em Rosário. E música. Pese as boas intenções de meus pais e meu interesse, foi o pior ano que passei. Era uma tortura, os “professores” haviam tirado o sensível, o valor da comunicação sem palavras; ali se preparava as pessoas para concorrer, ganhar prêmios, apresentar-se em salões, seguir clonando artistas… Fiquei aborrecida, me sentia prisioneira e decidi não ir mais.

Fiz a mesma coisa com a escola secundária. Aos 14 anos peguei pneumonia, fiquei livre e não quis voltar. Não agüentava mais o sistema opressor e o autoritarismo em que estava mergulhada. Assistia uma escola de freiras! Drama familiar. As professoras não entendiam minha decisão, se era brilhante. Sim, brilhante, porque cumpria com os programas impostos.

O mundo era grande, queria dar a volta no mundo e me comunicar diretamente com quem cruzasse pela frente. Passava horas olhando o mapa, lendo histórias e geografia desses lugares e imaginando o que iria encontrar. Então comecei a estudar francês, alemão, inglês – nessa ordem – e com respeito à arte, fui entrando em contato com o que tinha afinidades, ainda que minhas amigas e o resto do pessoal não se interessasse. Os textos de Rousseau me apaixonavam, igualmente os de Thoreau.

Já em Buenos Aires, em 1981, encontrei com Mireya Baglietto e sua Nube, fiz oficinas com ela, que atuaram como detonador e de afirmação de minhas buscas. Depois com Juan Doffo, que respeitava o que cada ser humano trazia, aí terminou dando-me o caminho que buscava. E ali fui conhecendo artistas que, com sua própria estética e idéias, fazíamos um caminho no mesmo sentido, entre eles Viviana. Assim cheguei à arte, na realidade sempre estivemos juntas.

O anarquismo? Creio que sempre fui anarquista, sem ter consciência disso, até 1994. Nesse ano comecei a manipular a série “Laminas de História”, então senti a necessidade de me aprofundar um pouco mais. Numa oficina de história na União de Trabalhadores de Prensa de Buenos Aires (UTPBA) com o professor Felipe Pigna, que não é anarquista, tive a oportunidade de conhecer alguns fatos e a essência do anarquismo que ele resgatou. Para mim foi uma revelação a afinidade que sentia com esses ideais.

Lamentei que não houvesse anarquistas vivos. Pensei que todo esse pensamento havia ficado sepultado em 1936. Mas não me atrevia a perguntar. Em 1999, pela iniciativa de Alejandro – esposo da minha amiga Viviana – que tem um forte compromisso com o bairro aonde vive, “Parque Patrícios”, decidimos recuperar a memória e os fatos acontecidos durante a “Semana de Janeiro de 1919”, aos quais pareciam umas repetições do que estava ocorrendo. Ao entrarmos em contato com diferentes organizações de bairro, descobri que existiam anarquistas. Não acreditei! Existia a Federação Libertária Argentina (FLA), tinham uma biblioteca e arquivo, e militantes.

Quando digo que sempre fui libertária, em parte é por que agora reconheço os ideais, formas de vida, contradições… experimentadas durante minha infância. Muitos livros que haviam em minha casa e na casa de meu avô paterno, eram de autores anarquistas. A militância sindical de meu pai, a criação de cooperativas, sua oposição ao governo peronista – a todos os governos na realidade – sua perseguição e o amor pela liberdade ficaram impressos em mim e no meu irmão.

Sempre fui curiosa, e não me satisfazia com respostas que fechavam a possibilidade de seguir revelando os mistérios. Agora, com a perspectiva que o tempo dá, vejo que meu pai apoiou minha liberdade e minha independência, ainda que não se manifestasse expressamente, mas em fatos. Afortunadamente pude agradecê-lo antes que morresse.

ANA > Que técnica você usa no seu trabalho?

AZ < De forma individual, quando solto meus fantasmas para passear, prefiro desenhar e trabalhar com aquarela ou com tinta chinesa (técnica do sumi-e). Desfruto da interação da água, do papel, minha intervenção… e o azar. Também trabalho com fotografias, acrílico, mas já estou me questionando por uma razão de preservação e cuidado com o meio ambiente, não sei se estou contribuindo para a sua deteriorização.

Nas ações de rua, uso qualquer coisa que considero capaz para encontrar o efeito desejado. Tudo é apto! A sociedade de consumo tem contribuído com muitos materiais (“lixo” de todo tipo), que muitos de nós temos reciclado. Alguns artistas temos nos conhecido olhando containeres, ou quando fechavam os negócios da “Zona Once” para encontrar nossos “tesouros”. Há algum tempo deixamos de fazer isso, porque os catadores de papelão ganham seu magro sustento diário dessa maneira.

ANA > Quando foi sua estréia profissional?

AZ < Com “Laminas de História”, na “Casa do Artista Plástico de Rosário”, em 1999. Até esse momento só havia participado de mostras coletivas, me haviam comprado obras na França, na realidade, arrancado. Vivo em conflito com o culto ao objeto. Resisto a ingressar no circuito mercantil. A arte não é mercadoria, é vida!

ANA > Que corrente artística mais te influenciou?

AZ < O aspecto menos conhecido de Bauhaus, o sensível, que foi pesquisado por Klee; Kandinsky, pela sua busca na relação som-cor; o dadaísmo, o manifesto de Tzara me impressionou muito, e os trabalhos de Amsel Kieffer dos anos 80.

ANA > O que marca mais seu trabalho: o cotidiano, a política, a poesia…

AZ < Não sei realmente. Estes três aspectos estão inter-relacionados. Um é o que faz o outro, porque reflete o lugar em que um está parado na vida, que é o que o privilegia. Destaco mais o fato estético, a metáfora como ferramenta para pôr em evidência eufemismos, mentiras, jaulas em que estamos trancados.

Creio que no projeto de arte postal: “Água: Ouro Azul”, iniciado no ano passado, é feita essa síntese. O cotidiano: sem água potável morreremos em 72 horas; a política: as próximas guerras serão pela água potável – se é que não já começou -; a poesia: foram feitos muitos trabalhos visuais e sonoros de grande sensibilidade estética que refletem a relação do ser humano com este elemento.

ANA > Nos seus trabalhos, sua relação com a natureza e a poesia são muito fortes, e isso fica cada vez mais acentuado. É curioso, mas quando você falou que gostava de Thoreau, que é um cara extremamente poético, que amava a natureza, e depois de conhecer alguns dos seus trabalhos, me veio à cabeça rapidinho os Hai Kais. Alguém já fez essa relação?

AZ < Parece que você se somou ao pequeno grupo que conhece muito de perto minhas buscas. A natureza, o silvestre, são elementos muito fortes em mim, é a minha infância em Rosário e nas ilhas do rio Paraná, quando sugar o néctar das plantas, compartir o ar com os vaga-lumes e as borboletas no verão eram um ato cotidiano, quando podíamos mergulhar no rio e beber sua água sem colocar em risco nossa saúde.

Minha professora de sumi-e, uma japonesa que apenas sabe meu idioma, advertiu dessa conexão entre meus trabalhos e os ideogramas mais antigos do idioma japonês.

Isso me leva a pensar que quando nos colocamos em contato com o mais profundo e puro de nós mesmos, nos relaciona fortemente com a natureza e com os demais seres humanos, independentes do lugar e época em que vivemos.

Quando descobri o valor da metáfora, o olhar poético, esse jogo entre sons, formas, cor, significados, comecei a tentar desenvolver uma síntese, trabalhando com aquarela a partir de poemas, e de traduções de Hai Kais tendo a mão alguns de seus ideogramas. Não tento ilustrá-los, mas refletir sensações, reflexões. E sigo nessa busca.

ANA > Ao meu ver, toda arte é libertária. Mas há algum pintor anarquista que te atraia?

AZ < Concordo que a arte é libertária. Não concebo a idéia de que um artista não se autorize a ser livre, que não confie nas suas próprias forças, no seu próprio conceito acerca da verdade e da beleza.

Não sei se algum dos pintores que eu gosto foram ou são anarquistas. Ademais, pela experiência vivida na Argentina e no resto do mundo “civilizado”, é perigoso autodenominar-se dessa forma.

ANA > Por quê?

AZ < Para não irmos tão longe no tempo, nas movidas antiglobalização, os anarquistas são tidos como alvos e lhes é atribuído qualquer tipo de violência. Revisemos os diários e veremos que os conceitos da palavra anarquia são associados a caos, violência, destruição, insegurança. Nós, anarquistas, somos os jogadores de bombas, e no melhor dos casos, heróis românticos aptos para os diretores de cinema. Não se associa anarquia com a vida, a liberdade, a solidariedade. Deveríamos fazer “marketing anarquista”. Isto, por favor, é uma piada. Quero dizer que, deveríamos articular melhor as ações entre nós para que sejam mais eficazes. À esquerda, como sempre, termina entrando num jogo perverso com a direita, demonizando os anarquistas.

Por isso confesso que muitas vezes sinto muito medo de dizer abertamente que adiro aos ideais e valores do anarquismo.

ANA > Herbert Read, anarquista, crítico e historiador de arte, em seu livro “Al Diablo La Cultura”, diz que “todo ser humano tem faculdades estéticas, portanto todo ser humano é um artista em potencial”, também fala “que o dia em que o trabalho for mais humano, deixará de ser trabalho, e será arte”. O que você pensa sobre isso?

AZ < A associação entre arte e trabalho induz a enganos. Porque aqui o terceiro elemento implícito é o capital. O artista não é um trabalhador da cultura, como pretendem os capitalistas da economia de mercado e os capitalistas de Estado, com ênfase nessa idéia copulativa, eterno jogo de autoritarismo.

Minha idéia aproximada de artista é de quem segue sua intuição, respeita o pensamento lateral, e indica ou gera fatos estéticos que apontam para a “destruição dos cânones do cérebro”, de quem tem “a arte como base de entendimento”. De todos os modos, este tema dá lugar a grandes discussões.

Todos podemos viver de forma criativa. Se nos atrevemos a perceber – com diferentes graus de intensidade – o tempo pelo que transcorre nossa própria vida, se aceitarmos o risco de enfrentarmos a falta de certezas, superando medos que nos imobilizam, viveremos criativamente.

ANA > Você para trabalhar precisa de isolamento? Isolamento que eu falo é não estar seguindo regras desse mundinho das artes plásticas, dos esquemas…

AZ < Necessito conhecer as regras básicas e os esquemas para poder destruí-lo, modificá-lo. É uma interação, uma busca dos pontos de conflito para forçar e gerar outra coisa, cujo nome ignoro.

ANA > Vamos mudar um pouquinho de assunto agora. Ouvi dizer que vocês organizaram recentemente um “merdaço”. O que foi isso?

AZ < Foi uma ação que a “Assembléia de Artistas” fez em fevereiro deste ano, uma das mais polêmicas e enriquecedoras pelo debate suscitado internamente entre nós, e com o resto da sociedade, cara a cara, pela TV, rádio, troca de e-mails. A idéia foi apresentada pelos ETC. Muitos se retiraram indignados acusando-nos de que éramos uns imundos, que nosso dever era criar beleza. Meus amigos não podiam acreditar que eu participava dessa movimentação. Na Argentina, falar naturalmente de evacuações intestinais faz parte de algo muito privado, muitos nem falam com seus médicos por vergonha. Só se fala de forma grosseira e superficial.

A metáfora do nojo, a relação “merda-instituições” foi um desafio. Não se tratava de esparramar a merda, mas sim depositar fezes envasadas em seu lugar: o Congresso da Nação.

Somente a idéia de que essa gente, durante mais de 15 dias, estiveram temendo um grupo de artistas e vizinhos, e organizando medidas de segurança, me divertia bastante. Pela primeira vez, senti o paradoxo de que o supostamente inocente, fraco, desprezado; pode ser muito forte, temível, transformador.

ANA > Genial! Aqui no Brasil devíamos fazer algo parecido também. O humor, o sarcasmo, o ridículo… são uma grande arma, não? Não tenho certeza, mas parece que nas últimas eleições legislativas de 2001 em seu país, foi recorde o número de votos em branco e nulos. E que o candidato mais votado foi um tal de pato Clemente, que não tinha a mão para roubar. Essa história é real? O que vocês estão preparando para as eleições de março, para presidente?

AZ < Sim, são elementos transformadores poderosos, quando são genuínos, porque colocam em evidência o falso, nos tira da rotina que nos imobiliza. Digo genuíno, porque fiquei sabendo que há “escolas e oficinas” para aprender a rir!

É saudável rir de nós mesmos, surpreender-nos em situação ou gestos insuportáveis ou ridículos. Também é um grito desesperado. É Dada: liberdade, vida!

Sim, o pato Clemente, um personagem do desenhista Caloi, foi um dos candidatos mais votados. Nas cédulas se colocaram elementos absurdos. Nas eleições presidenciais de 1999, houveram muitos grupos em Rosário, Córdoba, Buenos Aires, que fizeram ações muito engenhosas, alegres e divertidas. O “Grupo Olho de Vidro” apresentou em um bar “Tudo por um voto”, que representava um político que fazia qualquer coisa para que votassem nele, até strip-tease! Foi divertidíssimo! Para as próximas eleições, ainda estamos em projetos.

Participo de diferentes grupos e a situação de crise nos oferece muito material. Acho que através do humor deveríamos apontar o que nos querem para que nada mude, encorajar a desarticulação da violência e do medo. Se o medo ocupa nossos espaços mentais e emocionais, nos separa das coisas e dos seres que amamos, nos imobiliza; assim morremos, apesar de biologicamente darmos sinais de vida. O medo é um de meus fantasmas, já te disse, não? Alarma-me permanecer com medo.

ANA > É que você é uma eterna criança. Muitos anarquistas serão eternas crianças. Você sabe por que as crianças temem a escuridão? Porque elas são muito sensíveis. À noite elas acordam e vêem mil fantasmas. E os fantasmas existem, porque elas sonham, sentem, acreditam num reino encantado. Você não acredita no “reino” da Anarquia? Você é hiper-sensível, por isso que se afeta tanto.

AZ < Pode ser que seja uma eterna criança, uma eterna adolescente e hiper-sensível para quem vive narcotizada pela lógica, as certezas, o conformismo, a rotina. Vivo sem anestesia, com meus pés bem apoiados no chão, tentando ampliar o nível de consciência. Gostei do que disse como metáfora do “reino encantado”, mas os “fantasmas”, são presenças, forças e ações concretas. A Anarquia não é um sonho, é algo muito tangível, é uma atitude, um estilo de vida.

ANA > A assembléia de artistas é formada por quem?

AZ < Somos, na maioria, artistas plásticos e performances. Artistas empurrados pela necessidade de vincular-se de outra maneira, de nos encontrar com humildade e respeito. Muitos de nós se conhecem há muito tempo, outros conhecemos recentemente. Há pessoas de 83 anos até 18 anos. A crise política e econômica colocou todos em crise, nos obrigou a revisar todos os aspectos de nossas vidas. Essa assembléia se reúne em algum lugar acordado de último momento, pelos diferentes coletivos de artistas, ou artistas individuais, quando nos sentimos convocados por um tema especial, ou quando temos vontade. É muito louco, “anárquico” diriam os meios oficiais. Para nós não é. Possivelmente ali se encontra a força vital, pelo imprevisível, de algumas ações realizadas em comum.

ANA > E quantos as mulheres? Elas têm participado ativamente dos saques, não?

AZ < A participação das mulheres é ativa. Parece que a crise impulsiona as mulheres para encontrar soluções imediatas e cotidianas para poder sobreviver. É uma resposta perseverante, diferente dos homens, não quero dizer que seja melhor, mas distinto.

O desespero ante a fome, a depressão dos homens provocados pelo desemprego. Fizeram com que as mulheres concretizassem ações imprevistas até este momento. Mas não só participaram dos saques. Em Rosário, em 1997, as mulheres dos desempregados ocuparam a Dicsa e a autogestionaram, fizeram o mesmo com a Brukman, aqui em Buenos Aires.

ANA > A igreja…

AZ < A igreja e todas as suas facções são fatores de poder desmobilizante, isso não é novo para os anarquistas. Muitas organizações civis são relacionadas e financiadas pela igreja, há sacerdotes e freiras que são líderes políticos. “Nada é alheio ao reino de deus”.

ANA > Agora fale um pouco da participação dos anarquistas. Se esse movimento está dando fôlego para os grupos e organizações libertárias.

AZ < Só posso falar do que observo em Buenos Aires, cidade e província. Os vizinhos começaram a perguntar-se o que é a comuna, a autogestão, economias alternativas, a ter curiosidade em saber que história é essa de anarquia, e exigir-nos respostas. Superam-me, porque não tenho construção teórica. Por isso, muitas vezes peço que se forme uma espécie de “consultoria anarquista”, um “Anarchism Consulting & Co”. Acho graça só de imaginar a fisionomia de quem lê o que acabo de dizer.

ANA > Que experiências você destacaria nessas mobilizações populares? Também aponte alguma coisa que te desagrada.

AZ < Os excluídos demonstraram que eles sabem, intuitivamente, que seu destino está ligado ao apoio recíproco e horizontal. Foram tratados com desprezo, molestados, agora surgiram movimentos que “resgatam” seu valor. Também apareceram candidatos a líderes, organizadores da espontaneidade, que desvirtuam e destroem as tentativas de autogestão. Por exemplo, os líderes “piqueteiros”, que agora são deputados.

Desagrada-me que se tente institucionalizar tudo o que nasce rebelde, autoconvocado, anarquista. Por exemplo: os trabalhadores das fábricas Zanón e Brukman querem que elas sejam estatizadas. É uma pena que não confiem em suas próprias forças, ainda mais quando estão obtendo bons resultados.

A repulsa ao político partidário é forte e dá-se o paradoxo de que muitos queiram que surjam líderes em suas assembléias. Por outro lado, os políticos temem os vizinhos e tentam desmobilizá-los de diferentes maneiras.

A esquerda busca mártires. A direita aspira “homens que nos tirem da corrupção”, e já começou a apropriar-se do tema ambiental, da água. Que nojo!

Apesar de ser incômodo para os companheiros – essa é a função dada – muitos libertários não perceberam que haviam começado a gestar-se diversos grupos ou movimentos autoconvocados, organizados ao estilo anarquista, em diferentes faculdades da Universidade de Buenos Aires (UBA), em bairros da Zona Sul (a mais pobre), entre eles os artistas, que elegemos a rua como espaço de ação. A crise atual forçou os libertários a participar, a realizar uma forte autocrítica e a restabelecer as relações entre companheiros.

ANA > Como você vê a postura da imprensa em relação à cobertura dos “cacerolazos”?

AZ < Os meios de comunicação respondem a interesses empresárias, ignoram ou só apresentaram o que convinha a seus interesses, manipulam a informação. Não há meios independentes, nem um. Por isso, surgiram formas de comunicação alternativas, como “Argentina Arde”, a qual lamentavelmente perdeu sua independência ao ser incorporado à esquerda, que administra os fundos.

Algumas assembléias fazem suas próprias publicações, seus próprios programas radiofônicos, tentam armar redes de contra-informação. É um grande esforço, muito vivo, muito rico, pessoas a quem jamais lhes havia ocorrido algo assim, e estão concretizando isso.

ANA > Uma boa experiência de contra-informação foi a TV Utopia, não?

AZ < O trabalho da TV Utopia foi muito interessante. Pessoas simples, trabalhadoras, criativas e rebeldes. Não sei porque o público não se apropriou, nem se apropria dessa experiência, tampouco as assembléias. Haveria que buscar os motivos. As autoridades seqüestraram 4 vezes seus equipamentos, e agora tem um juízo na justiça federal, desde 1999.

ANA > Com a crise, o número de suicídio aumentou bastante por aí, não?

AZ < A partir dos “cacerolazos” e das mobilizações populares diminuiu notoriamente. A crise não é somente política-econômica, é muito mais profunda. Exige tomar buscar outros caminhos, não há mais certezas. E o fato de encontrar-se com outro que está passando pela mesma situação, de apoiar-se mutuamente, de organizar ações comuns, fortalece o desejo de viver.

ANA > Não gostaria de fazer essa pergunta, pois o futuro é agora, mas… num exercício de futurologia, que olhar você tem para o futuro da Argentina?

AZ < Se é o que imagino, prefiro que não venha. Como em todo o mundo, vamos seguir sofrendo as conseqüências mais sutis e perversos genocídios e destruição do ecossistema, da devastação aprofundada nesses últimos 30 anos.

ANA > Alicia, obrigado pela entrevista, a paciência, a generosidade. Força para vocês, de alguma forma estamos juntos, nas ruas, nos corpos, nas almas, nos corações, nos sonhos, em Anarquia! Agora, fale o que quiser…

AZ < Obrigado a ANA pelo interesse, é muito reconfortante saber que estamos juntos. Pessoalmente a entrevista me serviu para refletir acerca da relação entre a Arte e a Anarquia, elucidar e valorizar minha própria participação, de tantos companheiros com quem sustento fortes debates, daqueles cuja existência ignoro, mas que cotidianamente tentam conseguir uma sintonia entre sentimento, pensamento e ação, e que souberam manter acesa a chaminha da Anarquia.

Seria muito feliz, se este efêmero protagonismo que dá uma entrevista, servisse para sacar do isolamento quem vive sem utopias, nos relacionarmos melhor com quem compartimos estes ideais, e assim sentirmo-nos fortalecidos e celebrar a VIDA que é a ARTE, a ANARQUIA!

agência de notícias anarquistas-ana

Canto no jardim…
Entre folhas grandes viçosas
Flores do antúrio.

Iraí Verdan