por Justin Calderon | 10/08/2019
Vista de um barco flutuando ao longo dos largos canais de Copenhagen, os arredores de Christiania são uma enclave verdejante escondida sob a espessa copa das árvores. Meio século após ter sido fundada como uma divergente comuna anarquista, parece ter se tornado um paraíso.
Mas nem tudo está bem em Christiania. Embora a comunidade hippie ainda cresça atualmente, está cercada por problemas que ameaçam sua identidade e futuro – uma crise existencial variadamente causada por autoridades locais intolerantes, polícia, gentrificação e, inevitavelmente, turistas.
A Dinamarca é frequentemente listada como um dos países mais felizes do mundo, mas em 1971 havia descontentamento o suficiente para inspirar um grupo de hippies, viciados, excêntricos e párias a estabelecer uma ocupação permanente em um antigo complexo militar na capital do país.
Com o passar dos anos, o experimento social progrediu para uma sociedade autônoma que, embora rejeitasse o controle do Estado, vivia em razoável harmonia com o restante da cidade. Ainda no cerne uma comunidade anarquista, Christiania permanece como um lugar onde drogas são livremente vendidas e consumidas sem interferência notória da polícia – uma Disneylândia pra fumar maconha.
Os “cristianitas”, como os habitantes são chamados, toleram o tráfico de drogas, mas não lucram com ele. Toda a venda de cannabis é limitada à comunidade da infame Pusher Stret, uma área generosamente decorada com o vermelho e o amarelo da bandeira de Christiania, onde até uma dúzia de traficantes normalmente trabalham em tendas, vendendo drogas rotuladas com nomes como Aurora Boreal, Abacaxi Express ou AK-47.
Aumento dos preços
Em um dia de verão escandinavo em julho, as pessoas estão fumando baseados em cima de velhas muralhas militares, ignorando a vizinhança de Nemoland Café, ou fazendo nada no Woodstock Bar. Enquanto isso, famílias com crianças estão curtindo o horário de almoço no Grøntsagen (Mercearia Verde), um icônico restaurante vegano/vegetariano.
Descendo a rua, uma sessão de improvisação está em andamento. Pessoas sentadas em círculo, algumas empoleiradas em toras de madeira, cantam The Doors juntas em frente ao armazém “old school” da comuna, Indkøbscentralen.
Seria fácil afirmar que o espírito livre aqui e em Christiania Cidade Livre – como o movimento por trás disso é conhecido – teve sucesso em seus esforços de criar uma “utopia” hippie.
Mas Christiania se tornou uma vítima de seu próprio sucesso. O turismo em massa chegou simultaneamente à gentrificação, e alguns moradores escolheram abandonar a comuna depois de quatro décadas de residência para escapar do aumento de preços. É simplesmente caro demais ser um hippie christianita hoje em dia.
Jorgen Jensen viveu em Christiania desde o começo, quando a comuna era uma vila invasora e remendada de hippies borbulhando do festival Thylejren no verão de 1970 – Woodstock da Dinamarca – e ele tinha apenas 17 anos.
“Eu era um sonhador e um ativista em defesa do meio ambiente”, recorda Jensen, que hoje é aposentado e tem 65 anos. “Eu me manifestei contra a Guerra do Vietnam e o encontro de negócios do Banco Mundial”.
Mas depois de viver em Christiania por 48 anos, Jensen se mudou no último mês de junho, alegando problemas econômicos. O dramático aumento de seu aluguel precipitou esse movimento.
Negociações amargas
A casa de Jensen por décadas foi de 300 dólares para cerca de 1300 dólares por mês, assim que Christiania foi “normalizada” sob a lei dinamarquesa.
Antes desse período de normalização, christianitas pagaram um “aluguel” num tesouro comunitário. Sua economia era auto-suficiente e apoiada pelas atividades econômicas não relacionadas às drogas da Cidade Livre – como bares, restaurantes, atividades culturais (como teatro e grupos de yoga) e manufatura, o que inclui a produção da bicicleta de Chistiania, conhecida mundialmente, e outras invenções inspiradas na Cidade Livre.
Em junho de 2011, depois de vários anos de negociações amargas com o governo, o advogado de Chistiania, Knud Foldschack, decidiu tomar uma decisão para estabelecer a Fundação de Chistiania, um instrumento que compraria coletivamente terras do Estado a preços abaixo do mercado, efetivamente tornando christianitas de invasores para proprietários de terra – 40 anos depois do estabelecimento da comuna.
O tesouro de Chistiania agora é responsável pela Fundação, que é administrado por um conselho de diretores ao invés de reuniões comunitárias e aumentou os aluguéis de Christiania para cobrir reparos e reconstruções de infraestrutura da era militar e construções históricas, como quartéis e depósitos de armazenamento de energia para armas, para abrir espaço para novos negócios.
Atualmente, Christiania é o lar de alguns restaurantes sofisticados e uma parada popular no trajeto turístico de Copenhagen, anunciada aos visitantes através de propagandas em ônibus como uma atração imperdível, assim como a estátua da Pequena Sereia. A gentrificação aumentou ainda mais o preço do aluguel.
Alguns dos 900 moradores de Christiania são identificados como classe média. Uma espiada em suas casas revela caravanas em madeira com extensões, mobiliadas com bom gosto. A propriedade é bem cuidada. A área que eles cobrem é tão luxuosa e tranquila que caminhar entre eles pode às vezes despertar devaneios mais bucólicos que boêmios.
‘Guerra contra os hippies’
Esta é a situação com o caminho que leva à caravana caiada, lar de Ole Lykke, morador de Christiania, historiador e autoproclamado “hippie” e “anarquista”, que se abre para um gramado verde coberto de brinquedos de crianças e uma rede amarrada na árvore. Pássaros cantam acima de uma árvore, enquanto tocadores de bongo tocam músicas pulsantes nas proximidades.
Parado aqui, é fácil esquecer que isso existe dentro de uma capital. A coleção improvável de vagões e casas de madeira onde Lykke e seus vizinhos vivem são, de fato, urbanas e rurais ao mesmo tempo.
“Christiania começou como uma ocupação”, recorda Lykke, sentado sobre um cobertor de pele de carneiro em sua casa. “Nós originalmente construímos tudo aqui por nossa conta, inclusive esta casa; nós não pedimos a ninguém [por ajuda].”
Essa atitude do “faça você mesmo” está no coração do caráter de Christiania. Durante as primeiras décadas, decisões importantes foram feitas durante reuniões comunais, que eram – todas as partes agora ironicamente concordam – jogos de gritos gratuitos para todos.
Muito à ira dos moradores inerentemente anarquistas, essas reuniões desde então abriram caminho para a Fundação sancionada pelo Estado e, desde 2004, a comunidade tem sido submetida à regulamentação dinamarquesa da qual tentou escapar por tanto tempo.
“Eu precisei pedir por uma autorização simplesmente para parar uma bicicleta em frente à minha casa”, diz Jensen. Além disso, todas as atividades de construção agora requerem autorização.
Jensen chama essa mudança de “guerra contra a geração hippie”, desenvolvida para colocar christianitas uns contra os outros. No entanto, “isso não funcionou”, ele afirma.
“Socialmente e culturalmente nós não somos muito afetados”, Lykke atesta. “Politicamente e economicamente, é uma situação completamente diferente”.
Hulder Mader, a secretária da Fundação, diz que o órgão não está envolvido em controlar o que as pessoas podem fazer com suas casas – o que fica sob as normas do Estado – embora a Fundação defina, sim, aluguéis baseados no tamanho da propriedade.
“O preço para se viver aqui é definitivamente um dos mais baixos no país, mas é claro que você precisa pagar se escolher renovar sua casa ou apartamento”, ela diz.
“Autorizações de estacionamento para bicicletas também não são um problema”, Mader acrescenta. “Eu não sei de nenhum indivíduo que não é autorizado a colocar sua bicicleta no exterior de sua casa, mas eu sei de vários que colocaram um bom número de bicicletas não no exterior de casa, mas no aterro histórico. Eles foram solicitados a tirar.”
Uma constante em Christiania tem sido o apreensivo cabo-de-guerra que é o relacionamento entre a polícia, traficantes e christianitas, o qual Lykke diz ter se intensificado ao longo do ano passado com os aplicadores da lei fazendo visitas diárias regulares.
“A polícia está aqui três vezes por dia. Eles aparecem entre 9h e 11h da manhã e têm feito isso por um ano”, confirma Lykke.
Ataques da polícia
Aparentemente, os traficantes têm estabelecido um sistema de vigilância sofisticada para evitar detenções. Quando dispositivos posicionados fazem uma chamada de aviso, as tendas de maconha e haxixe sucumbem e desaparecem antes que a bota de um único policial pise na Pusher Street.
“Policiais, na superfície, sempre odiaram Christiania, mas alguns dos policiais amam Christiania porque eles têm uma área de treinamento que é tão única”, diz Lykke com um sorriso. “Eles precisam experimentar todas as suas novas estratégias, como por exemplo, com os drones, que agora é uma coisa e tanto.”
Lykke, que diz que só foi preso pela polícia uma vez por tráfico, recorda uma ocasião na qual a polícia jogou fora a cerveja dos bares locais, resultando em confronto com os christianitas donos de negócios e uma grande instalação posterior de policiais.
“Eles enviaram a p**** da polícia toda aqui com esses escudos enormes de plástico”, ele diz. “Eles ficaram lutando na rua por 5, 6 horas. A polícia teria, então, aprendido a fazer como os romanos para proteger a si mesmos [usando seus novos escudos].
O delegado chefe superintendente da polícia de Copenhagen, Lars-Ole Karlsen conta que mantém a presença em Christiania para “assegurar a contínua segurança dos moradores e visitantes da área, que são muitos”. Ele diz que “a polícia conduz uma ação contínua e focada” contra o crime organizado do tráfico com muitas batidas por semana, atingindo usuários de drogas, compradores e estoques.
“Isso, às vezes, é respondido com atos de violência atingindo os policiais”, ele acrescenta.
Mesmo com as batidas e prisões, Christiania poderia ser vista como um estudo de caso em tolerância escandinava e o estilo de vida dinamarquês idealizado por muitos por suas atitudes libertárias e características como “hygge” [do dinamarquês], o prazer do aconchego e de coisas simples.
O simples fato de Christiania existir reflete que nem todos estão felizes com o Estado nórdico.
Christiania foi criada como o resultado da “liberação de energia criativa que aconteceu quando pessoas que foram tratadas com indulgência e submetidas a rígidas normas foram libertadas”, diz Per Smidl, que se mudou para a comuna em 1978, aos 25 anos, depois de comprar um vagão de madeira de um traficante.
Smidl é autor do romance “Vagão 537 Christiania”, uma crônica de ficção sobre sua vida e a comunidade hippie.
“Ao contrário do que muitos podem pensar, a Cidade Livre de Chistiania não veio a existir como uma expressão de uma sociedade livre, mas, ao invés disso, foi uma rebelião contra uma burocracia autoritária”, Smidl observa. “Quando políticos democráticos progressistas dos EUA referem-se aos Estados escandinavos como uma fonte de inspiração, eles não vêem seu lado negativo: a castração e o controle total de cada alma viva”.
Apesar de o espírito de rebelião viver aqui, está claro que as coisas não são mais o que costumavam ser. Muitos christianitas – antigos ou atuais – agora são aposentados e os dias de se juntar a cabeludos rebeldes em protestos e dançar pelados sob o sol são memórias que vão se desvanecendo.
Lykke recentemente teve sua joelheira substituída, e muitos christianitas tem filhos em crescimento para cuidar.
Os christianitas que restaram podem ter sobrevivido ao aumento de preços apenas para pagar até a última consequência de tentar construir uma utopia.
Pessoas demais querendo visitar
“O turismo está matando Christiania”, diz Emmerik Warburg, um morador de 44 anos, que dirige a pesquisa em projeto residencial. “O mero turismo e não querer aprender, mas, ao invés disso, apenas precisar ter um plano de fundo diferente para suas selfies mata o ambiente.”
Ninguém gosta de se sentir como um espetáculo de 5 centavos no zoológico, mesmo hippies idosos.
Tradução > Beatriz Helena
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