Entre o 2016 e 2017, muitos estudantes ocuparam desde escolas até reitorias de universidades como estratégia de luta contra os cortes, contra os custos do transporte, e noutras batalhas. As motivações e as posições dessas ocupações, não jogam dentro de nosso rechaço absoluto ao sistema, apesar do qual vemos nelas a terra fértil do broto de alguns rebeldes. As ocupações de prédios e locais “educativos” congregaram inconformados e abriram as possibilidades de luta para aqueles que não se adaptam à vida civilizada que os quer domesticar.
Um inadaptado…
Nessas ocupações, no meio dos estudantes, brotaram rebeldes, solidariedades, bandos, e se tatearam decisões, as firmezas e as vontades, talvez poucos, talvez um só, mas brotaram, isso já move a boca para um sorriso… E Guilherme Irish, que estava em meio a essa efervescência deixou de ser apenas um estudante, mas uma pessoa com decisão e convicção, que marcou a diferença com suas ações, decisões e com as consequências delas, sua morte.
O dia do seu assassinato, Guilherme saia da casa, onde morava com os pais, desobedecendo abertamente a proibição do pai de participar dos protestos, das ocupações, e de ir pra rua nos dias em que isso acontecia.
No dia 15 de novembro em uma terça-feira pela tarde Guilherme Irish foi perseguido, baleado e executado pelo seu pai na cidade de Goiânia, por sua desobediência, sua insubmissão, na esquina da Rua 25A e Avenida República Líbano o sopro da vida abandonou seu corpo. Em seguida seu pai se suicida[1].
A policia, relatou depois, que na mochila do Guilherme estavam uma máscara, uma chave de roda e uma machadinha, em alguns jornais diziam que havia roupas pretas, óculos de proteção [2]. São detalhes e pouco sabemos deles.
“Ele era anarquista, adepto da tática black bloc e participante ativo das ocupações de escolas e faculdades em Goiânia. Querido por todos nos mais diferentes fronts de batalha, nos sarais e rodas de conversa, o camarada soube pelo o que lutar, com convicção e determinação. Anarquista nato. Enfrentou o fascismo do estado e seu braço armado, além de lidar com a estrutura repressiva e hierárquica da família.[3]”
O que fica na memória é que ele morreu no caminho de um protesto, que ele morreu desobedecendo a autoridade (a do pai, a primeira das autoridades contra as quais nos rebelamos os que amamos o vôo livre), e sabemos que, na hora da sua morte, ele não tinha uma bandeira branca na mochila, mas ferramentas para o combate nas ruas e que, ainda ferido pelos primeiros tiros, correu para salvar sua vida, e Isso já nos diz muito.
Primeiro que não se conformou com ser apenas um estudante, um futuro trabalhador, nem com enxergar apenas de longe os protestos, foi neles; logo, que tal qual comentam que ele escrevia na sua rede social “Não reconheço governo nenhum”, não reconheceu o mandato do pai e, finalmente, que morreu num momento em que o fedor do autoritarismo começava a vazar dos seus esconderijos habituais e se instalava em cada rua, em cada casa, em cada cidadão idealizado.
O pai assassino…
Porque Guilherme foi assassinado com vários tiros no corpo por um desses cidadãos idealizados. Guilherme Foi assassinado por um patriarca, um pai que se acreditava dono da vida do filho e seguramente do resto dos que habitavam com ele, que sob a justificativa de querer que seu filho fosse apenas um estudante, e jamais um desordeiro freqüentador de protestos, ocupações e blocos negros, se sentia dono da vida dele e com o poder de punir-lo.
Guilherme foi assassinado por um dos tantos policiais voluntários, quem se sentia guardião do ordeiro, da obediência, daquilo que ditam os que governam, as igrejas e a mídia. Ele era mais um dos tantos policiais sem uniforme nem salário que abundam em cada cidade, onde vigiam, questionam, denunciam e até atacam os outros, incapazes de viver sem controlar.
Foi assassinado por um conservador, defensor da propriedade, da obediência, da passividade.
O pai, um engenheiro civil de boas condições financeiras de 60 anos, não aceitava que o filho participasse do movimento, já havia ameaçando entregá-lo para a polícia e até mesmo de morte. O homem que não tinha posse de arma, chegou a ir armado em duas manifestações contra a privatização do ensino público em Goiás e a PEC 241 (55), perseguir Guilherme e ameaçar outros militantes.”[4]
O pai de Guilherme, carregava consigo todos os valores, defendidos pelos tiranos de turno e pela grande aliada que arrebanha gente para eles: a Igreja Evangélica. Esses valores, Propriedade, Família, Patriarcado, Obediência, Policiamento, Controle, conservadorismo, são os pilares da cidadania atual, ideal, oficial; e esse sentido, Guilherme foi assassinado por um cidadão de bem, e armado. Cabe apenas lembrar que uma das reformas do novo tirano foram as facilidades para o armamento daqueles cidadãos de bem.
Olhando para além…
Se hoje trouxemos a morte de Guilherme, numa insistente lembrança não é apenas porque fazem dois anos do seu assassinato e algo tem que se dizer sobre isso numa revista, à titulo de efeméride. Se hoje quero falar de Guilherme também não é porque ele tenha sido um companheiro, ou um amigo (ele nem teve a oportunidade de mostrar mais do que ele poderia ter feito), mas, porque as mortes em mãos daqueles cidadãos de bem, daqueles proprietários, donos, patriarcas, burgueses, conservadores, armados e protegidos pelos poderes de deus, do estado e da policia assassina, precisam nos provocar nojo e raiva.
Porque se eles vem que ninguém se importa com as mortes, seguiram nos matando por filhos, por pobres, por índios, por negros, por diferentes.
Porque se eles (esses cidadãos de bem) se acostumam a matar seus filhos porque são deles e porque querem que façam o que eles querem, não teremos novos companheiros, mas estaremos rodeados de pessoas medrosas.
No entanto, o que realmente impulsiona a falar de Guilherme e o que faz a maior diferença é que se eles matam por desobedecer, por ser rebeldes, por não tolerar a dominação, por gritar que viva a liberdade, que viva a anarquia e contra toda autoridade, como é o caso da morte de Guilherme, não choramos os mortos, os sentimos fundo porque simplesmente em quanto essa pessoa jogava a vida, havia centenas de milhares de pessoas passivas que com seu silêncio e apatia tornam se, cada dia, cúmplices das tiranias. Ao final uma morte nas ruas, uma morte por protestar ainda que nos protestos reformistas é uma morte digna.
A pesar de que os muitos protestos que haviam nesses tempos tinham chamados reformistas, esses protestos foram o cenário certeiro para que os inadaptados, os marginais, os encapuzados e os anárquicos consigam atacar a materialidade da dominação e propagar a revolta violenta. Nada podemos fazer contra a miopia de quem não enxerga, em cada protesto, a possibilidade do caos e da revolta. Só quem ia neles com barras de ferro na mochila sabe disso.
Guilherme foi assassinado pelo que era, pelo que buscava, por desejar que ninguém seja seu senhor se não seus próprios anseios e necessidades. Reconhecemos esta fortaleza em Guilherme Irish que se manterá vivo, pois não será esquecido.[5]
Guilherme foi assassinado pelo fascismo.
Pela expansão…
Durante o velório de Guilherme Irish, um grupo de companheiros da UFG, que ocupa a Universidade neste momento, efetuou uma homenagem entoando a versão portuguesa da canção anarquista “A las barricadas”[6].
No 2016, logo após saber do assassinato de Guilherme, nas ruas, da mão de encapuzados, Guilherme se fez presente nos protestos invadindo muros e paredes:
Só morre quem é esquecido Guilherme Irish Presente,
Guilherme Irish Presente na luta
Guilherme Irish Vive nas ações e nos corações
Em goiana, as homenagens se fizeram sentir na universidade, com atos, barricadas e ocupações. No Rio de Janeiro, os estudantes, cansados das supra organizações partidaristas no meio dos protestos, criaram o CIGI Coletivo Independente Guilherme Irish e realizam desde protestos, até apresentações de vídeos debate e mais.
5. Os mortos que não deixam em paz os vivos que dominam
Há mortos que nem estando embaixo da terra deixam em paz aos que dominam. Alguns deles por ter morto nas ruas são parte daqueles que hoje trazemos nestas palavras para avivar os desejos de sentir o capuz no rosto e protestar com todas as forças contra a miséria que dizem é a vida, contra os tiranos que nos dizem serem representantes.
Claudia Lopez, anarquista assassinada pela polícia chilena em 1998, com um tiro nas costas durante os protestos do 11 de setembro (aniversário do golpe de estado), revoltas que mantém vivo e atualizado o rechaço ao governo dos militares. Ano a ano, desde sua morte, brotam fanzines, bibliotecas, espaços okupados, publicações, barricadas e ações de sabotagem e destruição em memória da companheira. Um ano depois de seu assassinato, um policial sofreu severas queimaduras durante enfrentamentos na mesma data [7].
Alexander Grigolopoulos, anarquista assassinado pela policia grega no bairro de Exarchia em 6 de dezembro de 2008. A partir do seu assassinato desencadeou-se uma onda de revolta que marcou a Grécia nesse dezembro e ano após ano, como marca constante da memória rebelde que volta as ruas em cada dezembro negro.
Punky Mauri, Companheiro anarquista que morreu em 22 de maio de 2009 pela explosão de uma mochila/bomba que transportava nas proximidades da escola de carcereiros em Santiago, Chile. A quantidade de ações nessa data, converteu o 22 de maio no dia do caos, um chamado á beleza da ação destruidora.
Pelao Angry, companheiro anarquista assassinado por um segurança de banco na manhã de 11 de dezembro de 2013 durante uma tentativa de expropriação dum banco em Pudahuel, Santiago de Chile. Sua morte também chama à ação no dezembro negro.
Javier Recabarren. No dia 18 de março de 2015 um ônibus do transantiago terminou com os sonhos de liberdade de Javier, então com 11 anos, todo um guerreiro pela liberação animal e combatente das ruas. Sua morte provocou uma série de ações que gritaram seu nome contra o domínio[8].
Santiago Maldonado. Companheiro anarquista desaparecido pela Gendarmeria Argentina, durante um bloqueio de estrada no território Mapuche, em 1º de agosto de 2017. Devido a quantidade de protestos pela sua desaparição, a polícia teve que entregar o corpo de Santiago. Nesse tempo, as revoltas se multiplicaram em quantidade e violência no território em disputa com o estado argentino. Fora dessa região os consulados e embaixadas desse pais, assim como as lojas da Benettom, (usurpadoras do território Mapuche) em vários, muitos, lugares do planeta, foram atacados em vingança pelo sumiço e morte do companheiro.
Rafael Nahuel. Guerreiro Mapuche, assassinado pela polícia em 2017, durante uma reintegração de posse na Lof Lafken Winkul Mapu, localizada na Villa Mascardi, em Bariloche, no sul da Argentina, território Mapuche. Assassinato que foi respondido com varias marchas no Chile e na Argentina, e continua presente nas agitações dos compas dessa região.
Há mortos que são lembrados. Por todos eles, que estiveram nas ruas juntos dos que lutamos… Por Guilherme Irish, que decidiu sair nas ruas e assim transitar pelas trilhas do protesto, da desobediência, e que escreveu e morreu sem reconhecer governo nenhum.
Há coletividades que usam a memória como arma, que constroem dia a dia, a revolta, a insubmissão, que desobedecem e procuram a vida em liberdade. Está em nós fazer da anarquia uma prática diária, e fazer da tensão da vida autônoma e livre nossa ação permanente. Cada um constrói a trilha que transita na confrontação contra os que dominam, que cada trilha possa se encontrar com muitas outras, abre os caminhos da revolta sem lideranças nem chefias.
Quando essas trilhas se constroem, a memória a morte cotidiana não deixam de nos indignar, muito pelo contrário, nos animam a nos revoltar, como as feras, que feridas, não abaixam a cabeça, mas agridem a seu agressor. Quando um que luta cai, é mais um motivo de ódio à dominação, é mais um chamado à ação.
Para que a morte não nos pegue rendidos, mas no combate e na beleza da anarquia!
Da CRÔNICA SUBVERSIVA, N° 5, primavera-verão 2019
[1] Mensageirxs da Revolta. https://abordaxe.wordpress.com/2016/12/05/guilherme-irish-esta-vivo/
[3] Mensageirxs da Revolta. https://abordaxe.wordpress.com/2016/12/05/guilherme-irish-esta-vivo/
[4] Mensageirxs da Revolta. https://abordaxe.wordpress.com/2016/12/05/guilherme-irish-esta-vivo/
[5] Mensageirxs da Revolta. https://abordaxe.wordpress.com/2016/12/05/guilherme-irish-esta-vivo/
[7] https://publicacionmadretierra.noblogs.org/
[8] Un anarquista afín al Javier https://es-contrainfo.espiv.net/2019/03/19/desde-algun-lugar-recordando-a-un-companero/ https://contramadriz.espivblogs.net/tag/javier-recabarren/
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Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!