por Pankaj Mishra | 18/12/2019
A Índia explodiu em protestos contra uma lei de cidadania que discrimina explicitamente sua população muçulmana de 200 milhões de habitantes. O governo nacionalista hindu de Narendra Modi respondeu com disparos policiais contra manifestantes e ataques a campi universitários.
A deflagração global de protestos de rua, do Sudão ao Chile, do Líbano a Hong Kong, finalmente chegou ao país cuja população de 1,3 bilhão de habitantes está abaixo dos 25 anos. As implicações sociais, políticas e econômicas não poderiam ser mais sérias.
Foi no mês passado que estudantes do campus da Universidade Politécnica de Hong Kong jogaram bombas de gasolina na polícia e jogaram de volta bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e canhões de água direcionados a eles.
Essa violenta resistência a um estado autoritário é novidade para Hong Kong. O Movimento Umbrella, que em 2014 expressou pela primeira vez um sentimento de massa por maior autonomia de Pequim, foi surpreendentemente pacífico. Os ativistas pela democracia em Hong Kong hoje também foram para muito longe dos estudantes chineses que ocuparam a Praça da Paz Celestial em 1989, e com quem foram comparados incorretamente.
Os estudantes de 1989 respeitavam profundamente seu estado: as fotografias de peticionários de estudantes ajoelhados nos degraus do Grande Salão do Povo não são menos eloquentes do que a imagem icônica de um manifestante diante de um tanque.
Esse reconhecimento da autoridade do Estado como árbitro supremo agora está desaparecendo rapidamente, não apenas em Hong Kong, mas também na Índia e em muitos outros países. Está sendo substituído pela convicção de que o Estado perdeu sua legitimidade por meio de ações cruéis e malignas.
Os manifestantes de hoje, que são esmagadoramente jovens, são úteis em comparação com os manifestantes estudantis franceses em Paris em 1968. Estes ocupavam locais de trabalho e estudo, ruas e praças. Eles também responderam à repressão policial com barricadas improvisadas e coquetéis molotov.
Como os manifestantes de hoje, os estudantes franceses explodiram em violência em meio a uma escalada global de brigas de rua; eles alegaram rejeitar os valores e as perspectivas de uma geração mais velha. E eles também não podiam ser simplesmente classificados como de esquerda, direita ou centristas.
De fato, os radicais franceses confundiram muitas pessoas na época porque detestavam o partido comunista francês quase tanto quanto os partidos da direita. Os comunistas franceses, por sua vez, repeliram os estudantes que protestavam como sendo “anarquistas”.
Esse tom pejorativo comum confunde anarquismo com desorganização. Deve-se lembrar que a política anarquista é uma das tradições políticas e intelectuais mais antigas do mundo moderno, embora pouco lembradas. Hoje, descreve melhor a nova virada radical dos protestos em todo o mundo.
A política anarquista começou a emergir a partir de meados do século XIX, originalmente em sociedades onde os autocratas cruéis estavam no poder – França, Rússia, Itália, Espanha e até China – e onde as esperanças de mudança nas urnas pareciam totalmente irreais.
Os anarquistas – um dos quais assassinou o presidente dos EUA, McKinley, em 1901 – buscaram liberdade em relação àquilo que viam como modos cada vez mais exploradores da produção econômica. Mas, diferentemente dos críticos socialistas do capitalismo industrial, eles direcionavam a maior parte de suas energias para a libertação daquilo que viam como formas tirânicas de organização coletiva – a saber, o Estado e sua burocracia, que na sua opinião poderiam ser tanto comunistas quanto capitalistas.
Como Pierre-Joseph Proudhon, o pensador pioneiro do anarquismo (e crítico robusto de Marx), declarou: “Ser GOVERNADO é ser mantido à vista, inspecionado, espionado, dirigido, orientado pela lei, numerado, matriculado, doutrinado, pregado, controlado, calculado, valorado, censurado, comandado por criaturas que não têm o direito, nem a sabedoria, nem a virtude de fazê-lo.”
Para muitos anarquistas, o Estado, a burocracia e as forças de segurança foram a afronta mais profunda à dignidade e à liberdade humanas. Eles procuraram alcançar as liberdades democráticas através de uma redução drástica no poder do estado da cabeça da hidra e uma intensificação simultânea do poder dos indivíduos de baixo através de ações coordenadas.
A democracia para os anarquistas não era uma meta distante, a ser alcançada por meio de partidos políticos verticalmente integrados, instituições impessoais e longos processos eleitorais. Era uma experiência existencial, instantaneamente disponível para os indivíduos, desafiando conjuntamente a autoridade e a hierarquia opressivas.
Eles viam a democracia como um estado permanente de revolta contra o Estado super-centralizado e seus representantes e executores, incluindo burocratas e polícia. O sucesso nesse empreendimento foi medido pela escala e intensidade da revolta e pela força da solidariedade alcançada, e não por qualquer concessão (sempre improvável) das autoridades desprezadas.
É também assim que os manifestantes hoje parecem perceber a democracia enquanto lutam, sem muita esperança de uma vitória convencional, contra governos que são tão ideologicamente dirigidos quanto cruéis.
Que não haja dúvida: é provável que conflitos mais abertos e insolúveis entre cidadãos e autoridades comuns se tornem a norma global e não a exceção. Certamente, hoje o descontentamento militante não é apenas maior do que era no final dos anos 1960. Também denota um colapso político mais profundo.
Negociações e compromissos entre diferentes grupos de pressão e interesses que definem a sociedade política há muito tempo parecem subitamente suspeitos. Os partidos e movimentos políticos à moda antiga estão em desordem; sociedades, mais polarizadas do que nunca; e os jovens nunca enfrentaram um futuro mais incerto. Enquanto indivíduos revoltados e sem líderes se revoltam contra estados e burocracias cada vez mais autoritários, de Santiago a Nova Délhi, a política anarquista parece uma ideia cuja hora chegou.
Para entrar em contato com o autor desta história:
Pankaj Mishra em pmishra24@bloomberg.net
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Pankaj Mishra é colunista da Bloomberg Opinion. Seus livros incluem “Age of Anger: A History of the Present” (em tradução livre, “Era da Raiva: Uma História do Presente”), “From the Ruins of Empire: The Intellectuals Who Remade Asia” (em traduçao livre, “Das Ruínas do Império: Os Intelectuais que Reformaram a Ásia”) e “Temptations of the West: How to Be Modern in India, Pakistan, Tibet and Beyond” (em tradução livre, “Tentações do Ocidente: Como Ser Moderno na Índia, Paquistão, Tibete e Além”).
Tradução > abobrinha
agência de notícias anarquistas-ana
O rio de verão —
Que alegria atravessá-lo
De sandálias à mão.
Buson
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!