Por Carlos Taibo | 29/01/2020
Eu mal podia imaginar que seria minha sorte escrever o prólogo de um livro que se interessa na relação entre anarquismo e futebol. Ambos me foram apresentados quase sempre como dois mundos separados, quando não enfrentados. Se o primeiro faz parte de minhas adesões conscientes e perseverantes, e me aconselhou a entregar meia dúzia de livros à imprensa, quando tive que justificar a atração que o segundo me produzia sempre invocava o direito, que ajuda a todos nós, a manter um campo de irracionalidade que nos permite escapar da loucura dominante. Esse desejo de aprofundar o irracional explica, talvez, que há três anos tenha publicado um livreto, em galego-português, sobre a melhor equipe do mundo: o Deportivo de A Corunha. E que o fiz – creio – com cintura e com senso de humor, não será que a irracionalidade escape de nossas mãos.
No caso, improvável, de alguém se perguntar, mesmo assim, se os caminhos do anarquismo e do futebol nunca me cruzaram, responderei que – acho que a memória não me falhou – eles fizeram isso duas vezes, e de forma bastante leve. O primeiro me convida a lembrar que anos atrás, e aqui em Madrid, um grupo de fanáticos teve uma boa chance de estabelecer, com minha colaboração ativa, um clube esportivo que, bastante virtual, recebeu o nome de Curuxás, apelido de um famoso maqui (nome dados aos guerrilheiros que, geralmente nas montanhas, após a Guerra Civil continuaram a combater Franco) anarcossindicalista que acampou para seus respeitos, no interior da Galiza, até a década de 1960. O segundo enfatiza que em um livro que publiquei recentemente, intitulado Anarquist@s e Libertári@s, aqui e agora, com o objetivo de tramar um balanço do cenário atual de nossos movimentos anarquistas/libertários/autogeridos, onde incluí um comentário que, para chamar a atenção para o desejo de estimular visões heterodoxas nos mais diversos campos, investigou a possibilidade de conceber esportes em geral e futebol em particular, de acordo com regras e valores diferentes daqueles que marcam suas manifestações modernas.
Embora semelhantes antecedentes de encontro sejam – repito – leves, eles me colocam próximo ao conteúdo deste trabalho que o leitor tem em suas mãos. Suas páginas mostram muitos assuntos interessantes. Menciono-os brevemente, sem outro objetivo senão abrir o apetite daquele leitor que acabei de invocar: a sobreposição, embora relativa, no que diz respeito à origem cronológica do anarquismo e do futebol; a tendência popular, a proletarização, de uma invenção burguesa que permitia uma prática barata e, portanto, acessível; a relação do esporte rei e o sindicalismo e, ainda mais, com anarcossindicalismo; as críticas, muitas vezes azedas, contra o futebol – homologado, em seu incentivo ao vício, a bares e bordéis – provenientes de certas torres de vigia anarquistas ou, e, por deixá-lo ali, a defesa, de outras partes, do esporte. Com esse panorama de fundo, uma equipe chilena passa por essas páginas que levaram o nome de um almirante, a experiência única de Júpiter de Barcelona, os espasmos de futebol do zapatismo de Chiapas ou a condição atual e passada de clubes como Sant Pauli, Argentinos Juniors ou Corinthians, pela mão da casuística que nos força a viajar da Argentina ao Chile, da Espanha ao México, da Inglaterra à Itália, da Croácia à França ou do Brasil ao Uruguai. Revelando, em suma, compromissos fortes e ativos com lutas que se referem ao antifascismo, antirracismo, a contestação ao machismo, a defesa de refugiados, greves de natureza muito diversa, o repúdio à repressão ou a solidariedade internacionalista.
Na terceira parte deste trabalho, o leitor encontrará, além disso, explicações completas sobre uma questão importante: quando pertence a um clube, ou a seus torcedores, uma condição anarquista e quando o que aparece em esse clube ou torcedores são práticas libertárias que, ligadas principalmente à autogestão, não necessariamente implicam uma identidade ou adesão doutrinária ao anarquismo. Acredito que em ambos os casos a inclusão dessas instâncias neste livro seja justificada de qualquer maneira. A própria invocação das categorias de futebol alternativo e futebol popular contribui – me parece – para delinear o argumento correspondente com arestas mais complexas e refinadas.
Em resumo, compreendo que o trabalho de Miguel Fernández Ubiría fornece ferramentas sólidas para delinear qual deve ser a opção esportiva promovida pelos movimentos anarquistas e, de maneira mais geral, pelos movimentos de vocação emancipatória. Nele devem reunir-se, à força, a desmercantilização do esporte, a busca de fórmulas que não tornem a competição e o triunfo o elemento principal da atividade correspondente, o compromisso com a dimensão coletiva e cooperativa do jogo, a rejeição dos elementos de alienação interclassista e sexista que possam surgir, o desdobramento de práticas de natureza autogeridas, o vínculo com a realidade cotidiana de bairros e cidades e, em suma, a crítica, inflexível, do que as instituições esportivas envolvem e, com eles, o chamado futebol moderno.
Resta determinar, isso sim, que futuro tem as regras, e o projeto que acabo de invocar. Oswaldo Bayer não estava certo quando disse que os anarquistas argentinos não demoraram a perceber que mudar o futebol é mais difícil do que fazer a revolução. Nesse caso, devemos inventar – suponho – outro jogo que é jogado com os pés e a cabeça. E com uma bola.
Fonte: https://www.carlostaibo.com/articulos/texto/?id=632
Tradução > Liberto
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