[Espanha] Entrevista ao professor de História Emili Cortavitarte, autor de “Movimiento libertario e educación en España (1901-1939)”

Que diferença a pedagogia libertária, promovida pelas escolas racionalistas no primeiro terço do século XX, do ensino convencional nos dias de hoje? “Não tanto os conhecimentos como os valores que se transmitiam e a importância das relações pessoais na aprendizagem”, resume o professor de História aposentado e militante da CGT, Emili Cortavitarte. Atualmente se trata de que os professores sejam “muito profissionais”, os processos de aprendizagem “muito técnicos” e as matérias se ministram de maneira parcial e especializada. “Se explica Língua ou Matemáticas a alunos com os quais não se tem especial interesse em manter uma relação de pessoa a pessoa”, acrescenta o autor do livro “Movimiento Libertario e educación en España (1901-1939)”, editado em 2019 por Calumnia.

Investiga atualmente sobre o trabalho das professoras e professores libertários durante a revolução de 1936 na Catalunha, na etapa do Comitê Nacional da Escola Unificada (CENU). Emili Cortavitarte trabalhou durante mais de 30 anos como professor de Geografia e História em institutos catalães, teve responsabilidades nas federações de ensino da Catalunha e estatal da CGT e é membro da Fundação Salvador Seguí. Também colabora como analista em Rádio Klara, emissora comunitária de Valência. A entrevista acontece no Centre Cultural Octubre de Valência, antes de sua intervenção nas XXI Jornades Llibertàries da CGT.

Por que é importante a educação para o movimento libertário?

É uma das chaves para a liberação do proletariado e das classes populares. O livro se centra no período 1901-1939 na Espanha, mas esta é uma questão muito presente desde 1868, e que continuou depois (assinalo 1868 porque é quando Bakunin fundou a Aliança Internacional da Democracia Socialista e se celebrou um dos Congressos da AIT). Podemos encontrar textos sobre a importância da educação não só nos que logo foram pedagogos e mestres, mas de outros anarquistas como Joan Peiró, Salvador Seguí, Kropotkin e Bakunin. Começo o livro referindo-me a um Comitê Pró-Ensino Anarquista constituído em 1898, do qual fizeram parte Kropotkin, Reclus, Louise Michel, Charles Malato, J. Ardouin, Jean Grave e Tolstoi, que se opunha à educação burguesa e religiosa dominantes. Se tratava de promover uma educação paralela, que adotasse os conceitos científicos modernos e a liberdade na aprendizagem.

Ressaltas a figura de Francesc Ferrer i Guàrdia. Inaugurou a Escola Moderna na rua Bailén de Barcelona, em setembro de 1901, com 30 alunos (12 meninas e 18 meninos) e o seguinte Programa: “Fazer com que os meninos e as meninas que lhe são confiados cheguem a ser pessoas instruídas, verdadeiras, justas e livres de todo preconceito”. Morreu fuzilado em 1909, após a condenação de um Tribunal Militar, por ser um dos supostos instigadores da Semana Trágica. Que avalias especialmente do pedagogo catalão?

Tudo é importante. Quando estudamos Ferrer, temos muita sorte. Primeiro, porque se conservaram os Boletins da Escola Moderna; nestas revistas não só encontramos suas teses, também a correspondência que trocou com o mestre belga Ovide Decroly, escritos de Reclus, Kropotkin ou Anselmo Lorenzo e trabalhos dos alunos. Ferrer i Guàrdia tinha muito claros os eixos de seu modelo educativo: racional, não dogmático, científico, laico, integral, baseado na coeducação de sexos e das classes sociais (a partir de um sistema de quotas que ia desde a gratuidade nas famílias pobres, até a contribuição máxima nas mais acomodadas). Propunha uma educação sem prêmios, castigos nem exames. É relevante, ademais, porque introduz na Catalunha e no estado espanhol modelos que estavam sendo experimentados na Europa.

Antes de fundar a Escola Moderna, Científica e Racional, ministrou aulas de língua castelhana na França. Ferrer teve influências, além de libertárias, da maçonaria, republicanas e do cientificismo da época. Entre outras atividades, a Escola Moderna traduziu e publicou livros – por exemplo, de Reclus sobre Geografia – e novos materiais de divulgação. Contribuiria, com esta tarefa editorial, a criação de uma rede de escolas modernas, livres e integrais que utilizariam as metodologias renovadoras; a inaugurada por Ferrer i Guàrdia foi fechada em 1906, quando se produziu a tentativa de regicídio de Alfonso XIII. Fecharam a Escola Moderna, e Ferrer foi encarcerado – depois absolvido – sob a acusação de instigar o atentado; o autor, Mateo Morral, havia trabalhado como bibliotecário na Escola Moderna. Qualquer desculpa era boa para que a autoridade governamental fechasse os centros educativos racionalistas.

Se estuda atualmente Ferrer i Guàrdia e seus métodos de aprendizagem nas escolas de Magistério e nas faculdades de Ciências da Educação?

Em geral não encontramos estas referências. Há sim alguns casos, como o do historiador Pere Solà durante o tempo que esteve no departamento de Pedagogia da Universidade Autônoma de Barcelona; este catedrático é autor, entre outros livros, de Francesc Ferrer i Guàrdia i l’Escola Moderna e de Las escuelas racionalistas en Cataluña (1909-1939). Durante os 20 anos que estou explicando o conteúdo do livro e recopilando informação, muitas pessoas – especialmente no campo da Pedagogia – me disseram que não se inclui nos programas Ferrer e a Escola Moderna. É possível, no entanto, que o tenham explicado a outros educadores – contemporâneos – como Decroly, Montessori ou Freinet. Ferrer e Decroly foram amigos e fizeram parte da Liga de Livre pensadores europeus; resulta um tanto estranho que te expliquem na Espanha o pedagogo belga e não a Ferrer. Creio que isto foi bastante intencionado…

Que outros exemplos ressaltarias de educadores sobre os quais pesa o esquecimento ou inclusive o menosprezo?

Por conversações com companheiros, em muito poucas faculdades de Pedagogia se ensina a um mestre gaditano, José Sánchez Rosa, assassinado pelas tropas franquistas em 1936. Não só promoveu – com a colaboração de sua companheira, Ana Villalobos – escolas racionalistas nas províncias de Cádiz (Los Barrios), Sevilha (Aznalcóllar, Dos Hermanas e o bairro de Triana) e o norte da África (Tánger); foi também autor de La gramática del obrero (1929), El abogado del obrero (1932) e La aritmética del obrero (1933). Trata-se de livros nos quais propõe, de maneira simples, questões muito práticas: como um trabalhador do campo pode escrever reclamações ante o patrão, fazer cálculos econômicos ou sobre cobranças; e realizar os trabalhos de matemáticas a partir de fatos reais. São livros muito avançados; de fato, estas técnicas foram utilizadas – muitos anos depois – na educação para adultos. Apesar de ser um pedagogo muito pouco conhecido, faz mais de uma década saiu uma biografia interessante, La tiza, la tinta e la palabra. José Sánchez Rosa, mestre e anarquista andaluz (1864-1936), do historiador José Luis Gutiérrez Molina.

Em umas jornadas de Pedagogia Libertária, celebradas em 2012 em Granada, destacaste o conceito de “educação integral”, com antecedentes nos primeiros congressos da AIT; e em Bakunin, Proudhon, Kropotkin ou o pedagogo francês Paul Robin. Em que consiste? Por outro lado, que relevância tinha a brincadeira?

A educação integral me parece a ideia mais brilhante, da qual se extraem as demais. Tem o sentido de que a educação abarque todos os aspectos da pessoa, não só o conhecimento; também a afetividade, a sexualidade, a natureza, a paixão pelas artes ou romper a dicotomia entre o trabalho manual e intelectual. Bakunin, além de outros anarquistas com um posicionamento mais político, defenderam que a educação se dirigisse às pessoas, e não à formação específica de obreiros, intelectuais ou elites, como pode ocorrer hoje.

Atualmente se utiliza a brincadeira na educação, mas tampouco se faz referência às escolas racionalistas, mas a outras mais externas, como Montessori ou as escolas italianas dos anos 70 do século XX. No município valenciano de Alginet há uma experiência genial, a do professor anarquista Higinio Noja; impulsionou uma escola chamada La Armonía, em 1923, que durou vários meses e se situava no campo. Viviam em comunidade. O professor foi ao acampamento com os alunos, de modo que já não davam as aulas nos locais do sindicato (“A brincadeira é indispensável às crianças (…). Não nos pesa dizer que é de absoluta necessidade que se vá introduzindo substância da brincadeira pelo interior das aulas”, apontava um artigo reproduzido no Boletim da Escola Moderna. Nota do entrevistador).

Que propôs a pedagogia não autoritária a respeito do professor?

Mudar a ideia de que eram uns profissionais que se encontravam com meninos e meninas praticamente virgens, e que o objetivo era encher-lhes a cabeça de conhecimentos. Ademais desempenharam o papel de acompanhar no processo de aprendizagem, já que se considerava muito importante a iniciativa do aluno; tratavam de ser plurais, não impor seus critérios e deixar várias opções – se estas existiam – para que os meninos e meninas pensassem. As pessoas ficariam hoje surpreendidas de que nos anos 20 e 30 (do século XX) já trabalhavam por projetos, nos quais os alunos afirmavam seus interesses. Hoje se considera este método muito inovador. No livro cito a José de Tapia, professor nos anos 20 na província de Lleida; militante da FAI, introduziu as técnicas de Freinet e foi um grande defensor – na Catalunha, durante a guerra de 1936 – da Escola Nacional Unificada. José de Tapia considerava chave a autogestão e os projetos de trabalho; defendeu ademais uma aprendizagem integral: intelectual, manual e produtivo.

E quanto ao alunado?

Não se tratava de que os alunos fizessem tudo o que quisessem, mas os professores tinham uma coisa muito clara: não tinha que cortar a busca daquilo que agradava a cada menina e cada menino, foram matérias, ofícios ou interesses. Se potencializava sua inclinação natural. A um aluno que se interessasse pela Astronomia, não se dizia – como ocorre hoje, se o docente segue a norma: agora não cabe, espere o quarto curso ou isto já se viu no trimestre passado… Tampouco lhes preocupava que houvesse um número concreto de médicos, açougueiros ou professores; nem era uma educação tão midiatizada como a atual pela profissão, o que serei quando for maior; pelo contrário, se tinha uma concepção mais holística e global da pessoa. O aluno devia desfrutar do que fazia no momento.

Mas a História avançava e se propuseram novos objetivos. Chegada a hora das coletivizações, escreves, “era necessária a participação do pessoal técnico nas novas tarefas produtivas e a formação técnica dos e das trabalhadoras da coletividade agrária ou industrial”. Há iniciativas concretas?

No estado espanhol, durante a revolução social de 1936, se desenvolveram na Escola Politécnica Confederal de Madrid, a Indústria Coletivizada da Madeira de Barcelona, a Escola Profissional de Artes e Ofícios de Elda (CNT-UGT) e a oficina escola da Indústria Metalúrgica Socializada de Alicante, entre outras experiências; e no campo, na Escola de Militantes de Monzón (Huesca), do professor racionalista Félix Carrasquer (que também promoveu a Escola Eliseo Reclus de Barcelona); a Escola de Secretários de Coletividades de Valência ou a Universidade Agrícola de Montcada (Valência).

A III República Francesa estabeleceu no último quarto do século XIX o modelo de escola gratuita, obrigatória e laica, a partir das leis promovidas por Jules Ferry a frente do Ministério de Instrução Pública; Ferrer i Guàrdia definiu deste modo o outro patrão educativo da época: “Como tipo de ensino religioso existe a que se dá nas congregações monásticas de todos os países, consistente na menor quantidade possível de conhecimentos úteis e carregada de doutrina cristã e história sagrada”. Em que ponto ficava a pedagogia libertária, corria o risco de converter-se em uma reserva para minorias?

No exemplo francês, a República assumiu a educação do conjunto da cidadania; mas desde a perspectiva dos docentes libertários, este modelo substituía a Deus pela pátria e os dogmas católicos pela Constituição, as leis e as normas. Os professores racionalistas assinalaram que, em estados como o francês, onde sim havia uma certa preocupação por instruir a cidadania, se davam os mesmos defeitos que na Espanha, onde o Estado nem se preocupava; e onde a igreja cumpria fundamentalmente este papel. Lhes parecia que os dois modelos eram muito parecidos, e tinham que romper com eles.

Os professores racionalistas não pretendiam ser minoritários nem que as escolas fossem elitistas. A CGT francesa, que então era uma organização sindicalista revolucionária, chegou a criar na primeira década do século XX 200 universidades populares; no estado espanhol, temos cerca de 160 escolas racionalistas documentadas – delas, umas 120 na Catalunha – e pode ser que a cifra fosse maior; a isto há que somar o trabalho de centenas de docentes. Primeiro Solidaridad Obrera; a CNT a partir de 1910 (ano da fundação) e nos congressos seguintes (1918, 1919 ou 1936) se assumiu esta pedagogia alternativa, estendida pelos locais do sindicato, ateneus e bibliotecas populares. Os militantes decidiram pagar quotas especiais para ter uma série de professores e escolas com estes princípios; e há outro ponto importante: as pessoas cujos filhos já haviam passado por estes centros, continuava pagando as quotas.

Em “Movimiento libertario y educación en España”, concluis: “Boa parte dos objetivos pedagógicos libertários estavam no programa e nas realizações do CENU”, durante a guerra e o processo revolucionário na Catalunha. O Comitê implantou um novo sistema público de ensino…

Em 27 de julho de 1936 o presidente da Generalitat, Lluís Companys, assinou o Decreto de constituição do CENU, em cuja introdução se afirmava: “A vontade revolucionária do povo suprimiu a escola de tendência confessional. É a hora de uma nova escola, inspirada nos princípios racionalistas do trabalho e da fraternidade humana”. Não é que Companys, de ERC, tivesse se convertido, de golpe, ao racionalismo como metodologia pedagógica, mas que lhe ditaram o conteúdo do Decreto; isto é o que há, vieram dizer-lhe, e o que aplicaremos.

O Comitê estava integrado por representantes da CNT, da UGT e dos designados pela Generalitat em representação das universidades. Entre julho e setembro de 1936, o CENU exerceu uma autoridade absoluta no âmbito cultural e docente na Catalunha: as teses pedagógicas libertárias triunfaram, durante a primeira etapa, sobre as defendidas pela UGT; a partir dos enfrentamentos armados em maio de 1937, os princípios racionalistas e da fraternidade humana já não serão os hegemônicos dentro do CENU, que passou a ser um organismo assessor.

Além de uma rede pública de ensino “revolucionário”, entre as conquistas do CENU destacas a aprovação do Plano Geral (de inspiração libertária); a criação de 128.000 praças escolares, a nomeação de 2.000 docentes interinos em outubro de 1936, a coeducação de sexos pela primeira vez na Espanha ou o fomento da escola rural. Que debates se suscitaram na CNT?

Em outubro de 1936 se organizou um Pleno de Catalunha da CNT no âmbito cultural. Os representantes de sindicatos e coletivos anarquistas debateram que fazer: se participar na Escola Nacional Unificada e mesclar-se com outros professores, alunos e programa de conhecimentos; ou, pelo contrário, manter e intensificar as escolas racionalistas e o projeto educativo anarquista. Uma maioria da CNT e os professores libertários decidiram contribuir com sua experiência na Escola Nacional Unificada, para construir a escola de todas e todos (ademais o CENU contou com quatro membros da CNT); durante um tempo as escolas racionalistas foram de resistência, mas no momento em que puderam intervir na sociedade, o fizeram; quer dizer, não tinham intenção de ser minoritárias. Ademais, aquelas escolas racionalistas que não quisessem integrar-se na rede pública, não tiveram que fazê-lo; se respeitou sua decisão.

Por último, destacas a pedagogos como Puig i Elias, militante da CNT…

Me parece um personagem chave, Joan Puig i Elias foi presidente do CENU e conselheiro de Cultura no Ajuntamento de Barcelona em 1936; mas começou já nos anos 20, como professor na Escola La Natura del Clot (um bairro obreiro barcelonês), que sustentava o sindicato têxtil da CNT. Se revelou, nos conceitos, como um grande seguidor de Ferrer i Guàrdia, mas mais partidário que Ferrer de trabalhar a afetividade e os sentimentos com o alunado; hoje nos referiríamos à “inteligência emocional” no processo de aprendizagem. Também ressaltaria a José de Tapia e a professoras como Antonia Maimón, sobre quem Carmen Agulló e Pilar Molina escreveram o livro Antonia Maymón. Anarquista, maestra, naturista (Virus, 2014). Desenvolveu seu trabalho em escolas da Catalunha (Sant Feliu de Guixols e Terrassa), no País Valenciano (Elda e Villajoyosa) e Murcia (Beniaján).

Fonte: https://www.briega.org/es/entrevistas/entrevista-profesor-historia-emili-cortavitarte-autor-movimiento-libertario-educacion

Tradução > Sol de Abril

agência de notícias anarquistas-ana

conversa de amigos
de vez em quando meu cão
busca um carinho

Rosa Clement