Isolamento, parte I

Isolamento, 21 de março de 2020.

Mãe,

Estamos já há 5 dias aqui em Isolamento, a capital de Corona. Não sei dizer exatamente como chegamos aqui na segunda, mas foi uma escolha nossa, consciente. Corona nunca foi um lugar que tivéssemos pretensão em conhecer, embora eu sempre tenha adorado os filmes de ficção que mostravam Isolamento, Quarentena, Colapso e Morte, as quatro maiores cidades daqui. Mas de alguma forma estávamos perto e resolvemos vir. Parece até que foi Corona quem veio até nós. Estranho esse sentimento, aumenta ainda mais a sensação de que não estamos no controle de nada.

Já viajei pra longe de você e da família outras vezes, mas essa é a primeira em que fico com saudades tão cedo. Deve ser a idade, a sua e a minha. O tempo tira da gente muitas coisas que gostamos, coisas e pessoas, e momentos, e acho que ficando mais velho vai crescendo o medo de não ter mais isso tudo nunca mais. É assim contigo também?

Falando sobre Isolamento, não é nem de longe tão interessante quanto nos filmes. Estamos numa casa perto do centro, e até ontem tinha bastante gente na rua. Hoje diminuiu, muita coisa fechada. Não tem muito o que fazer fora de casa, e a gente nem pretende sair mesmo. Fomos ao mercado, à feira, e temos comida pra algum tempo até precisar sair de novo. Posso te dizer que é a primeira vez que eu visito um lugar novo e não tenho vontade de sair. As pessoas aqui por perto não parecem muito amistosas, todo mundo com cara de preocupação. Dizem que em Quarentena é ainda pior, e que as leis aqui em Isolamento são tão rígidas que se a gente descumprir uma só que seja podemos ser extraditados pra lá, mesmo sendo estrangeiros. Basta um abraço ou um beijo em público, por exemplo.

A fronteira de Quarentena é bem perto daqui. Você sabe que fronteiras sempre foram um grande problema pra quem é anarquista, mas essa é uma que eu não gostaria de desfazer não.

Tenho lido muitas notícias, muita coisa ao mesmo tempo. Confesso que estou confuso e um pouco assustado. Não sabia que as coisas aqui em Isolamento eram assim tão intensas e mudavam tão rápido. A Má ainda consegue se concentrar no mestrado dela, e só de vez em quando espicha os olhos pra fora do texto pra ver o que tá acontecendo. Tô tentado encontrar coisas pra fazer que nem ela, pra descansar a cabeça. Tentei assistir uns filmes e séries, mas sempre que eu olho pela janela a minha preocupação retorna.

É difícil ver as pessoas na rua e ficar tranquilo, mãe. Aqui embaixo de casa dorme o seu Zé, um catador de material reciclável. A Má e eu estamos tentando oferecer comida pra ele quando cozinhamos, mas quase nunca conseguimos encontrar com ele acordado. Por esses dias ele deu uma sumida. Outro dia vi da janela ele dançando feliz por conta de um panelaço contra o presidente, e me deu ao mesmo tempo alegria e desespero por ele estar na rua. Ele vive em Isolamento há muito mais tempo que todos nós, e de certa forma isso é ao mesmo tempo triste e revoltante, porque as leis de Isolamento são especialmente cruéis com quem tem menos recursos. O seu Zé, e as outras pessoas que a gente vê todo dia por aqui puxando carrinhos, já foram ameaçadas muitas vezes de extradição pra Quarentena e pra Morte. A polícia especialmente trata eles bem mal, e sempre que alguém some das ruas o pessoal aqui desconfia de que a polícia levou pra Morte. De lá, ninguém nunca voltou.

Sabe, mãe, acho que desde a minha adolescência eu não fico tanto tempo em casa. Era diferente naquela época. Não tinha internet, só depois da meia-noite. E tinha você, a Lu e o pai. Tenho falado bastante com a Lu lá na Austrália, do outro lado do mundo. Ela me disse ontem que os políticos de Sydney estão querendo adotar leis muito parecidas com as de Isolamento, porque as pessoas por lá não saem das praias e tem esgotado os suprimentos dos supermercados. Não sei o que é pior, se as leis de Isolamento forem pra lá ou se os comportamentos de lá chegarem aqui. Espero que não cheguem, embora ache difícil. Mesmo nos filmes que eu via os comportamentos em Isolamento eram bastante egoístas e desesperados. E dizem que a vida imita a arte – o problema é que sempre parecem imitar a arte no que ela tem de pior. Mas pra não dizer que é tudo desesperança, mãe, tenho visto ações de solidariedade por aqui também, e estou pensando em como fazer parte delas. Espero que elas cresçam, e que mesmo trancafiado em casa o povo de Isolamento consiga se movimentar em direção a uma outra vida.

Não vejo a hora de voltar pra casa, mãe. Pra sua casa. Pra poder te dar um abraço e um beijo sem medo de Quarentena, quando a gente já tiver deixado Isolamento pra trás.

Será que demora?

Até lá, fico por aqui, escrevendo emails como se fossem cartas, como se eu estivesse de volta à adolescência, esperando também por notícias suas. Espero que esteja bem.

Te amo,

D.

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