[EUA] Os impactos econômicos do coronavírus significam que precisamos congelar os aluguéis agora

Nesse editorial aberto, a autora Jamie Hood compartilha suas experiências pessoais com austeridade, defendendo que uma moratória aos aluguéis é a única opção moralmente correta.

“Faz quanto tempo pra você?” já se tornou uma pergunta comum entre meus amigos. Desde quando a quarentena e o isolamento pessoal começaram, desde que nossos locais de trabalho foram fechados, desde quando vimos mais um rapaz que não morava conosco, desde quando nos tornamos ansiosos a respeito de notícias sobre o coronavírus. Desde quando? Perdi meus dois empregos mais ou menos duas semanas atrás; estou em isolamento autoimposto por mais ou menos o mesmo período. Em menos de uma semana o aluguel de abril será cobrado. Com exceção do cancelamento do aluguel em todo o estado, esperam que paguemos o apartamento integralmente, embora nenhum de nós esteja trabalhando, por determinação do governo.

Sou bartender, ou era, e trabalhava tanto quanto qualquer bartender de Nova York trabalha – normalmente em dois bares, embora, normalmente em três até as contas baterem, ou a fim de lidar com despesas inesperadas, as quais descobri serem muitas quanto mais velha fico.

Dito isso, o preço do aluguel não é exatamente exorbitante. Por sete anos vivi em uma parte do bairro Bedford-Stuyvesant, no Brooklyn, que tem sofrido com a gentrificação faz algum tempo, mas os resultados disso só começaram a dar as caras de maneira acelerada agora com o processo de substituição de tudo por apartamentos gigantescos, lojas de vinho, e mercearias chiques.

Atualmente, metade do que eu ganho vai pro aluguel, dependendo da época do ano. Trabalho por salário de gorjeta, ou seja, pago minhas contas com aquilo que as pessoas deixam pra trás por seus drinques, os dólares que pagam quando tenho sorte ou então quando detêm uma noção holística da noção do meu “serviço”, que não é necessariamente igual ao meu trabalho, pelo qual mereço pagamento. Estamos saindo do que normalmente é minha época mais lenta, o período entre o Ano Novo e o reembolso dos impostos, quando, pelo menos em anedota, qualquer bartender vai te dizer que menos pessoas saem e aquelas que saem dão gorjetas – como posso dizer de maneira delicada – são menos… generosas.

Nesses meses mais lentos, gasto aproximadamente uma porção de 65% do que ganho no aluguel. E não tenho economias. Mesmo bartenders famosos dos clubes de Manhattan que arrecadam na casa dos milhares lá pras tantas no sábado pagam significativamente mais impostos, diminuindo todo o glamour de levar tanto dinheiro pra casa.

O argumento que vejo sendo jogado por aí na última semana de que todo mundo tem capacidade financeira suficiente de economizar dinheiro por três ou quatro meses sem salário é risível para profissionais da indústria de serviços e, francamente, para qualquer pessoa que já conheci em Nova York, com a exceção de homens muito ricos com os quais eu costumava sair em “encontros” por dinheiro. Sei que existem fundos fiduciários por aí. Tipo a Vanessa Hudgens reconhecendo o coronavírus, então, eu sei que existem.

Mas eu sou pobre. E as pessoas que eu amo também são. Meu pessoal trabalha em bares, restaurantes, cafés; são cam girls, escorts, freelancers, músicos/as e artistas visuais.

Atualmente não existe nenhum fundo emergencial garantido pelo governo, nem redes de segurança universalmente garantidas pra gente na nossa situação. Não podemos fingir que estamos chocados/as com isso; é como sempre foi. O que estamos vendo agora é uma energia revitalizada entre fundos fiduciários mútuos, alívio comunitário, e redes de ajuda no dia a dia que estão funcionando por fora dos canais burocráticos e governamentais. Mas não podemos repassar a mesma grana um/a pro/a outro/a no Venmo (serviço similar ao PicPay) para sempre. Para os/as incontáveis dentre nós que estão desempregados/as e mesmo assim recebem a pressão de seus senhorios e do governo e de suas necessidades básicas de gastar cada centavo que economizamos, bem, a grana está acabando.

E o fato brutal é que estamos olhando a partir do cano do revólver a aglutinação de emergências globais sem precedentes. Várias pessoas em Nova York estão prestes a se tornarem muito mais pobres, e muitas das pessoas daqui ficarão sem cuidados médicos ou abrigo – mais do que já temos aqui em nossas comunidades de sem teto.

Não estou escrevendo porque tenho conhecimento técnico e incisivo de padrões econômicos ou dos direitos de inquilinos. Sou poeta, ensaísta, e uma garota trans quebrada que tem lutado contra depressão profunda nos últimos 15 anos. O que estou tentando fazer aqui – nesse momento específico dessa pandemia, na crise econômica que já se instalou – é colocar um rosto nesse sentimento de desamparo. Estou tentando colocar o meu rosto, o rosto de uma bartender, escritora, antiga prostituta, e mulher trans, nisso tudo antes de que todos/as nós nos percamos olhando pra um tipo diferente de rosto: a face cega, desumana e paralisante da crise do COVID-19.

Conforme as ansiedades foram atingindo um pico na semana passada, fui lembrada de uma cena do meu passado. T. S. Eliot escreveu que abril é o mês mais cruel, mas pra mim sempre foi março com sua faca pressionada contra as minhas costas. Sempre pareceu ser março quando o tapete é arrancado de debaixo dos meus pés. Aquele inverno tinha sido especialmente devagar no bar onde eu estava servindo, além de especialmente cansativo pra mim, depois de meses de crescente tensão pessoal com meu gerente.

Mas sou uma garota teimosa e malcriada. Decidi que ficaria lá. Havia decidido que queria ver se chegaríamos num acordo, se continuaríamos trabalhando no que havia se tornado basicamente uma situação insustentável. Essa possibilidade, conforme o que se desenrolou, já estava fora de questão. Fui demitida, sem cerimônias, publicamente e de maneira humilhante, e da mesma forma repentina que tudo aconteceu, lá estava eu, saindo do bar e ligando pra minha mãe, soluçando ao telefone. Lembro com muita clareza: eu tinha 240 dólares no meu nome, minha casa temporária estava paga até o final do mês, meu cartão de crédito estava no limite, e as ligações dos agiotas a respeito dos meus empréstimos estudantis estavam ficando cada vez mais agressivas.

Duas semanas depois, meu melhor amigo me ajudou a colocar minhas coisas num contêiner, e me despedi de tudo, sabendo que não poderia pagar pelo armazenamento pra além daquele mês: meu teclado e meu violão, meus suprimentos artísticos, roupas de inverno, todos os meus livros, todas essas coisas acumuladoras de prazer e privacidade que eu nunca mais tocaria por oito meses. Eu vivi numa maleta, em sofás – me considerando sortuda de poder fazer isso. Esmurrei diversas portas de currículo em mãos (currículos que não podia pagar pra imprimir por meses).

O que melhor aprendi dessa época foi como pedir, implorar. Não via saída. Quebrei uma porção de barreiras que havia delimitado pra mim mesma trabalhando como escort. Não me importava com o que aconteceria comigo, e se você nunca esteve numa posição similar, não dá pra imaginar o quanto que as coisas podem piorar. Da maior parte, vivi da bondade de meus/minhas amigos/as porque é isso que fazemos uns/umas pelos/as outros/as quando não sobra mais nada, quando não temos outra maneira de ajudar.

Consegui sair dessa situação, mesmo que por pouco. Até hoje, permaneço destroçada financeiramente por conta desses quatro meses sem grana. Como muitas das pessoas que cresceram e permaneceram pobres, eu trabalho sempre que posso. Isso significa que vim quebrando meu corpo por vários anos, e nenhuma sociedade com um pingo de moralidade deveria esperar isso de ninguém. Permaneço insegura e vivo em terror, talvez mais agora do que nunca, de ficar muito doente. Também fico petrificada de não voltar a trabalhar caso a ordem de fechamento dos bares não seja revogada. Sempre temi por minha sobrevivência nessa economia; agora preciso temer o grande problema entre a contínua ansiedade e o medo de sobreviver a essa pandemia.

O Presidente Donald Trump está exacerbando esse medo com sua vontade de colocar o país pra funcionar de novo em tempo pra Páscoa, provocando reações negativas até mesmo de seus próprios médicos especialistas. Isso vem logo depois da ênfase que ele deu de que não quer que a “cura” seja pior do que a doença, aparentemente afirmando que parar uma economia em nome da saúde pública é, de certa forma, pior que prevenir mortes e sofrimento generalizados durante uma pandemia global. Corpos como o meu podem ser o preço pago pelo esforço de manter o capitalismo funcionando normalmente enquanto os ricos são protegidos antes dos mais vulneráveis.

Por exemplo, uma moratória de hipotecas como a emitida em Nova York pelo governador Andrew Cuomo pode ajudar as pessoas com o luxo da casa própria – aproximadamente metade das pessoas na área metropolitana de Nova York, de acordo com dados do Censo de 2019. Mas e os/as inquilinos/as que são obrigados/as a ficar em casa sem acesso a nenhum tipo de trabalho? E os pequenos negócios que provêm a maior parte da força cultural dessa cidade que não podem abrir suas portas por medo de serem apenas vetores de doença?

Na fundação da nação, a propriedade privada talvez tenha sido um pré-requisito para votar, mas como muitas das regras arcaicas usadas para determinar quem era legalmente permitido/a participar de nossa democracia, tal posse não transforma ninguém em uma pessoa melhor, nem define se é mais ou menos merecedoras de proteção e cuidados em tempos de crise. Acima de tudo, propriedade privada nunca deveria servir como desculpa para absolver ninguém de suas responsabilidades comunitárias.

Tudo isso expõe a crueldade com a qual sempre vivemos: não importa as circunstâncias, mesmo durante uma pandemia global que obriga seus/suas potencialmente mortos/as a trabalharem, ainda nos é pedido que nos transformemos em mártires para a perpetuação da riqueza do topo. A habilidade dos políticos, das empresas, e senhorios de lucrar vem ao custo de nossas vidas.

O cancelamento do aluguel e do pagamento de serviços públicos são as únicas decisões éticas que qualquer líder pode tomar. Não se trata de equilibrar a vida humana com considerações econômicas. Trata-se de reconhecer que qualquer tipo de insistência míope ou insensível nos negócios, como sempre, vai matar as pessoas.

Fonte: https://www.teenvogue.com/story/coronavirus-economic-impacts-rent-freeze-now-essay-op-ed

Tradução > Felipe F. Castro

agência de notícias anarquistas-ana

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