[Reino Unido] Esse pensador anarquista ajuda a explicar porque nos sentimos tão motivados a ajudar um ao outro durante a crise do coronavírus

Por Ruth Kinna e Thomas Swann | 29/03/2020

As imagens das prateleiras de supermercados vazias e instruções emitidas pelo governo em pânico definem a crise do coronavírus. A resposta da comunidade, entretanto, deve ser duradoura. O vírus e o cumprimento das medidas de isolamento social causam incerteza e ansiedade, mas várias redes locais de apoio mútuo voluntário também surgiram.

Muitas pessoas envolvidas nesses grupos sabem que o termo “apoio mútuo” ficou famoso por causa de um anarquista do século XIX chamado Peter Kropotkin. Ele utilizou este termo para atacar os darwinistas sociais que descreviam a natureza como uma luta competitiva entre os interesses dos indivíduos. “O mais forte sobrevive” se tornou o lema dos darwinistas sociais, e foi utilizado para descrever as relações antagônicas entre pessoas, raças e estados. Este modo de pensar normalizou a agressão como uma resposta natural à escassez.

No contexto atual, a implicação de tal pensamento é que a luta pelo último pote de álcool em gel ou pelo último rolo de papel higiênico é uma resposta programada e inevitável. Se apenas o mais forte sobrevive, os outros devem ser vistos como rivais ou até mesmo como inimigos, e está correto tomar todas as medidas necessárias para se preservar contra eles.

Apesar de Kropotkin ter aceitado que a competição era um fator determinante da seleção biológica, seu argumento era que a cooperação – ou o apoio mútuo – era tão significante quanto.

Como uma ideia ética, o apoio mútuo descreve os esforços que as pessoas fazem para ajudar os outros sem buscar nada em troca. Esta ideia é melhor desenvolvida em organização local e voluntária. A Lifeboat Association, que teve início no Reino Unido com William Hillary, para fundar uma instituição nacional que salvasse vítimas de naufrágios, foi um exemplo de auto-organização ética que Kropotkin tinha em mente.

Hillary apelou ao rei em 1825 para apoiar seu projeto, explicando que o objetivo era ajudar “pessoas e navios de todas as nações, em paz ou em guerra”. Sua causa foi ao mesmo tempo “individual, nacional e universal”. Ele imaginou que o estabelecimento de uma associação britânica poderia inspirar a fundação de organizações irmãs em todo o mundo.

Kropotkin gostava da Lifeboat Association porque ela se baseava em “cooperação, entusiasmo e conhecimento local”. Ela resgatava qualquer pessoa necessitada, e como isso dependia de ação local, poderia ser replicado facilmente em outros lugares. Era um modelo de redes globais para construir solidariedade.

Trabalhando juntos em tempos de crise

Esse é o espírito que vemos nas redes de suporte que surgem à medida que as pessoas enfrentam a pandemia de coronavírus. Vizinhos ajudando vizinhos. Aqueles que podem sair de casa coletam receitas médicas e suprimentos para as pessoas mais vulneráveis. Grupos de redes pelas cidades somam recursos para que ninguém fique sem.

O apoio da comunidade sempre foi um aspecto central da vida social humana. Pesquisas sobre a rotina das pessoas mostram que muito mais tempo do que imaginamos é gasto em apoio não remunerado à comunidade. Apoio mútuo e cooperação – como vizinhos cuidando dos filhos de quem precisa ou ajudando a consertar o carro do outro – estão espalhados pela sociedade. É um erro pensar que a perspectiva de lucro motiva nosso comportamento.

O apoio mútuo é visto frequentemente em tempos de crise ou em catástrofes horríveis – como por exemplo, após o Furacão Sandy nos Estados Unidos e no incêndio da Torre Grenfell em Londres. Seu surgimento agora confirma as observações de Kropotkin sobre a capacidade de solidariedade cotidiana. A pergunta que ele faria é: como podemos expandir essas práticas para repensar nossa organização social?

Kropotkin descreveu a Lifeboat Association como “perfeitamente espontânea”. Isso não significa que ele pensava se tratar de algo sem planejamento, e sim que não era uma coisa forçada pela lei. Confiança e prática foram essenciais para a visão de Kropotkin do mundo refeito através da cooperação e do respeito pela auto-determinação dos povos.

Com recursos no limite, governos no mundo inteiro estão confiando nas redes de apoio mútuo para ajudar aqueles em maior risco, como fazer compras para quem está isolado, ou enviar mensagens virtuais de apoio para evitar a desesperança.

Possivelmente, então, podemos começar a pensar sobre como preservar uma organização comunitária no mundo pós-coronavírus.

Há uma diferença significativa entre a política de apoio mútuo e os projetos neoliberais com objetivo de privatizar os serviços do governo. Kropotkin não queria que a responsabilidade pelos serviços do governo fosse transferida para grandes corporações ou voluntários sem recursos. Seu objetivo era atacar as estruturas de poder existentes. O apoio mútuo prospera em condições de igualdade, e é parte necessária do esforço anarquista em direção à federação descentralizada.

Se a austeridade habitual retornar após a crise, o terreno fértil do apoio mútuo poderá secar. A manutenção e a ampliação da renda mínima, por outro lado, pode ajudar a preservar e promover mudanças de base no longo prazo.

Fonte: https://theconversation.com/this-anarchist-thinker-helps-explain-why-we-feel-so-driven-to-help-each-other-through-the-coronavirus-crisis-134494

Tradução > Sid Sobral

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