É óbvio que a atual crise provocada pela pandemia do COVID-19 torna ainda mais urgente a exigência de gritar um clamoroso NÃO! frente a um capitalismo e a um sistema social abjeto, contra o qual muitas pessoas vínhamos lutando desde longo tempo. Há que gritar NÃO e, além disso, procurar atuar em seguida. Bem-vindos sejam, pois, os renovados e intensificados esforços para manifestar a insuportável barbárie do capitalismo e apelar às lutas contra ele.
Mas, esta crise também nos convoca a dizer NÃO ao autoengano que pratica um amplo setor desse espectro revolucionário antiautoritário, no qual me situo. Esse autoengano consiste em crer e fazer-nos crer, que o capitalismo poderia estar tocado de morte por esta crise e que a pandemia dará lugar a um intenso ciclo de lutas capaz de transformar o mundo. Por fim, as classes populares vão perceber de forma clara a necessidade de dar as costas ao sistema, e nos cabe contribuir para dar a estocada final a um capitalismo moribundo. “Povos do mundo, ainda outro esforço” reza um texto recente que acompanha seu título com ecos da Internacional: “O mundo muda de base”.
De fato, estão proliferando os textos que apresentam a atual situação como uma grande oportunidade para sair por fim do capitalismo e por fim a seus estragos. Quase se celebra a aparição da pandemia porque esta pode iluminar a tomada de consciência que propiciará a transformação do mundo.
Se não aplaudo a esses bem-intencionados textos, e frequentemente interessantes, é por um duplo motivo.
O primeiro é porque o desejo de revolução, que sempre devemos manter vivo independente do que criamos ou não que se possa traduzir em um projeto de revolução, pode ocasionar enormes distorções da percepção da realidade. Sobretudo, nos momentos nos quais esta se torna incerta e angustiante.
O segundo motivo é porque esses textos fazem dar um grande passo atrás nas lutas contra o sistema capitalista e suas estruturas de dominação, retrocedendo a tempos e esquemas confusos.
Distorção da realidade? Vejamos. Temo que, embora seja certo que a pandemia vai lançar à luta a uma parte da população, sobretudo aquela que vai sofrer as piores consequências do “relançamento” da economia capitalista, outra parte não insignificante da população, sobretudo a mais traumatizada pelo medo e por eventuais desastres familiares, nada vai querer saber de agitações com suas correspondentes incertezas, e pode antes optar para demandar maior disciplina e ordem social. Ou não? NÃO cabe vestir a pós-crise exclusivamente com os adornos da esperança revolucionária.
Da mesma forma, não há dúvida de que o capitalismo acusa um duro golpe em seu mapa de rota de expansão contínua, mas nada indica que vai se realizar por fim o antigo lema de “a crise final do capitalismo”. Temos ouvido tantas vezes que quase dá rubor voltar a fazê-lo. O mais provável é que o capitalismo mudará alguns de seus aspectos (para bem ou para mal) e que como o vêm fazendo desde que se implantou, absorverá os problemas para fortalecer-se com sua resolução. Pode ser que o que digo a este respeito seja também uma distorção da realidade, mas, no momento a história do capitalismo indica o contrário.
Por fim, essa percepção da realidade que augura um mundo melhor contribui para mascarar o rápido avanço de um totalitarismo de novo tipo que mostra suas presas não só na Coréia e na China, mas também no Afeganistão e na Palestina com os drones armados, assim como nos engendros produzidos no Vale do Silício (GAFA). Esse totalitarismo discorre pelas vias do controle social (geolocalização, reconhecimento facial, etc.), mas também pela medicalização da vida e pela engenharia genética. NÃO perceber que a pandemia facilita seu avanço e que urge fazer frente a essa realidade é algo que acompanha a percepção de um futuro promissor.
Passo atrás? Vejamos. O segundo motivo pelo qual desconfio desses textos é porque frente a fascinação por uma mudança total (tudo ou nada) e pelo velho grande relato da insurreição vitoriosa, as abordagens posteriores a Maio de 68 haviam conseguido orientar as lutas para o desmantelamento, no presente, dos dispositivos de poder articulados pelo capitalismo, ou vigentes em seu seio (como por exemplo o patriarcado). Essa multiplicação e diversificação das frentes de resistência e de subversão fez avanços notáveis para as liberdades e para as vidas das pessoas, sem subordinar tudo isso a grande mudança social que, pela própria definição, sempre se situa fora do presente enquanto não tenha acontecido.
Os chamados à convergência das lutas, unificadas no objetivo de acabar com o capitalismo, esquece que para que as lutas possam convergir primeiro tem que ser múltiplas, e que, embora essa convergência seja desejável, o certo é que se produza pela própria pressão e a própria lógica dos acontecimentos (como ocorreu, por exemplo, em 15M) e que a tendência homogeneizante não debilite as energias das lutas parciais (como também ocorreu depois do 15M). Resulta ademais que esses textos geralmente desqualificam como fatores de divisão e de enfraquecimento da luta tudo o que se propõe fora da grande luta unificada contra o capital.
Contudo, o que estou comentando não se inscreve contra a exigência de denunciar o capitalismo e de lutar contra ele, isso é absolutamente indesculpável, mas sim se separa de uma tendência que me parece perceber nestes momentos em boa parte das análises, e que creio que é prejudicial para a eficácia das lutas.
Imagino que a tentação de desqualificar a postura que exponho dizendo que convida a baixar os braços e a renunciar à luta pode ser forte. Deixe-me, pois, que repita o que escrevi em múltiplas ocasiões, e sigo mantendo: ainda nas condições mais adversas a luta sempre é possível, a única condição absolutamente necessária é que exista vontade de luta.Se esta vontade se manifesta não é preciso que se persigam ou que se esperem resultados definitivos e de grande alcance, como bem o sabia o Sísifo de Albert Camus.
Tomás Ibañez
11 de abril de 2020
Tradução > Sol de Abril
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