José Pellicer, anarquista conhecido como o ‘Durruti valenciano’, foi fuzilado em 1942. Antes de sua morte, escreveu no cárcere um conto para sua filha. Sobre sua figura se estende uma discutida lenda marcada pela polêmica.
Por Nacho del Río | 09/02/2020
“Se prestar atenção, filhinha minha, verás durante as noites, lá no alto do céu! uma estrelinha muito nervosa que brilha muito e que se apaga e acende. É ‘Tilín’, que com sua luzinha te transmite os beijinhos que desde aqui te manda papai. E como papai pensa todas as horas contigo, pois sempre, sempre, constantemente, brilha a luz da estrelinha com os milhões de beijinhos de papai”. Estas palavras pertencem a um conto que o anarquista José Pellicer escreveu para sua filha em seus últimos dias de prisão, antes de ser fuzilado junto a seu irmão Pedro pelo regime franquista. Aconteceu em 8 de junho de 1942.
Então Coral não tinha mais de cinco anos. Teve que esperar ser maior de idade para que seu tio Vicente, que sim pode salvar sua vida, lhe dera em mãos aquela “joia preciosa” que continua guardando com seus 82 anos. Coral recorda que lhe “impressionou muito” lê-lo, mas mais lhe surpreendeu: ela afirma que já conhecia a história de ‘Tilín’, a tinha contado seu pai um ou dois dias antes de sua morte: “Me deram permissão para ir visitá-lo no cárcere. Recordo que chorava muito por todos os homens que havia ali, estava assustada. De repente uns braços me rodeavam e me abraçavam, mas foi uma sensação de proteção”. Era seu pai, que se despedia dela. Naquele momento, José já havia falado a Coral de uma estrela no céu chamada ‘Tilín’ que brilhava e que velaria por ela cada noite quando ele não estivesse.
O acaso quis que Pellicer pudesse contar esta história a Coral em pessoa. Talvez não esperasse tal oportunidade porque, antes de vê-la pela última vez, já havia escrito aquela cena que supunha o adeus de um pai a sua filha. Diz assim: “Se tu soubesses o que me aconteceu a outra noite! Claro que não o sabes. Olha, se papai pudesse estar contigo te pegaria, te sentaria em meus joelhos e começaria a contar a sua pequenina o que aconteceu. Mas como não pode ser, vamos fazer uma coisinha. Eu o escreverei a mamãe e ela o lerá. Tu, de vez em quando, fecha os olhinhos e será como se o contasse papai”.
O acaso também quis que Pellicer coincidisse no cárcere com José María Carnicero, artista republicano condenado a 30 anos de reclusão por publicar no semanário ‘La Traca’ “desenhos e historietas nos quais se insultava os invictos generais do Exército espanhol”; se destacando, uma ilustração que mostra Franco travestido, reclamando a Mussolini “modelo de Florença” e a Hitler “água de colônia”. Com ajuda de Carnicero aquele conto foi completado com ilustrações que mostram uma sorridente Lua à qual acompanham estrelas bailarinas e uma menina que dorme placidamente, sabendo-se protegida por ‘Tilín’.
No dia seguinte a esse último encontro entre pai e filha, Pellicer foi fuzilado. Assim como seu irmão Pedro e outros anarquistas, José rechaçou integrar-se no Sindicato Vertical do regime em troca da liberdade. Aquilo lhe custou a vida. “A Pellicer ofereceram colaborar com o franquismo para salvar-se, e se negou. Preferiu que o fuzilassem”, precisa Miquel Amorós, historiador valenciano que recolhe informações na biografia “José Pellicer. El anarquista íntegro” (2009) a vida e obra de um homem “maldito no anarquismo, e, portanto desconhecido”, que desempenhou um papel relevante na resistência do bando republicano durante a Guerra Civil.
Do translado dos restos de Pedro e José se encarregou a mulher deste, Maruja Veloso. Conta Amorós que ela evitou que fossem jogados em uma fossa comum e levou os corpos “com uma carreta” ao cemitério de Paterna, onde ambos irmãos repousam junto a uma lápide com sua foto. O historiador anota: “(Coral) tem um lenço com o qual limparam a cara de sangue (a José) quando morreu”. É uma das poucas recordações, junto a algumas fotos e a história de ‘Tilín’, que Coral conseguiu manter de seu pai.
Por seu valor artístico e histórico, decidiu doar o conto, que durante um tempo passa a fazer parte da Fundação Anselmo Lorenzo (FAL), organização que tem por objetivo a conservação e difusão da cultura e da história libertária. “Coral se pôs em contato com a fundação e foi doando coisas. Em alguma das visitas que fizemos a sua casa nos mostrou o conto, e a convencemos para que o trouxesse”, conta Miguel Ángel Fernández, membro da FAL e integrante da seção de Imprensa e Meios de Comunicação da CNT. Tempos depois, o livro voltou às mãos da filha de Pellicer.
Pellicer e a Coluna de Ferro, entre o mito e a lenda negra
Coral cresceu com a imagem de seu pai tal e como aparece refletida no conto de ‘Tilín’, a de um “homem bom” e “gentil”. Uma imagem que foi completando através das lembranças de sua mãe, sua família e companheiros de filas anarquistas que sim conseguiram escapar da pena de morte do regime: “Meu pai foi um valente, como muitos outros”. Ao mesmo tempo, começava a conhecer e compreender a outra face de um homem que escreveu a sua filha uma carta de despedida em forma de conto. A face de um homem que não obstante escolheu morrer pela causa revolucionária antes que viver a serviço do fascismo.
Quando sua filha recebeu de seu tio Vicente o livro de ‘Tilín’, José Pellicer já era muito conhecido em toda a região de Levante, assim como nos círculos anarquistas e republicanos de grande parte da Espanha que ainda resistia a aceitar a vitória de Franco. Mas o que mais adiante começam a ouvir e a ler, Coral, sua família e seus próximos sobre sua figura diferem da lembrança que eles têm dele. Porque apesar de sua morte prematura, em torno ao anarquista já se havia criado uma série de mitos e ao mesmo tempo a lenda negra muito discutida e estendida na história recente.
De Pellicer se disse que era um assassino além de sanguinário. Ademais, seus movimentos foram questionados quase em todo momento por diversos setores da esquerda. Miquel Amorós perfila uma das razões: “Ele não queria separar a guerra da revolução. Por isso foi marginal, não queria ceder”. Pellicer, que procedia “de uma família de bem” de Valência, queria levar o anarquismo à sociedade, e precisa seu biógrafo que viu na Guerra Civil a conjuntura certa para uma rebelião: “Foi um idealista, seu grande erro foi acreditar na revolução e tratar de fazê-la, e não acreditar nas circunstâncias políticas daquela época”.
Vinha mostrando maneiras. Miguel Íñiguez, autor de “Esbozo de una enciclopédia histórica del anarquismo español” (2001), expõe os primeiros passos do jovem anarquista: “Ingressou no Movimento Libertário em 1928 (com 16 anos), militou na facção mais revolucionária e anarquista da CNT. Evadiu do serviço militar (declarado fugitivo), foi encarcerado em Lleida e enviado ao quartel de Manresa (1934), onde constituiu um grupo anarquista. Sublevou a guarnição com o outubro revolucionário e foi julgado por um tribunal militar que o condenou a deportação em Villa Cisneros”. Pellicer “entrou e saiu do cárcere muitas vezes” antes da guerra, acrescenta Amorós, e destaca: “Chegou a ser alguém com bastante carisma e influência apesar de sua juventude”.
Mas o que talvez mais possa pesar a Pellicer foi a fundação e a atividade da famosa e polêmica Coluna de Ferro, agrupação anarquista de milicianos formada para fazer frente às tropas franquistas após o falido golpe de Estado de 1936. A esta coluna se acusou de saquear comércios e moradias da população civil na retaguarda, de sequestros, de entrar nos cárceres para executar os suspeitos de pertencer ao bando dos sublevados e sair delas liberando presos que se uniram a suas fileiras. “Não era uma coluna militar usual. A grande maioria eram trabalhadores honrados”, assegura Amorós, que destaca, sobre ditos presos: “Há quem dava bons resultados e quem não. Quando se comprovava que havia alguém que cometia delitos o expulsavam. A outros se suspeitava se haviam cometido algum delito grave”.
A anedota do Santo Gral
No que diz respeito a Pellicer, Amorós conclui que “salvou muita gente. Não era sanguinário, pelo contrário. Tentava salvar os curas, monjas, militares retirados. Quando assaltava um cárcere não matava ninguém, ele ordenava liberar a todos”. E conta uma curiosa anedota relacionada com o achado do suposto Santo Gral em Valência: “Quando se fazia um registro (em um templo) em busca de joias para trocá-las por armas, todos os santos grals e virgens eram escondidos em casas de beatas. Em um dos registros em casa de uma das beatas, Pellicer encontrou um esconderijo de santos com o Gral e disse à beata: ‘Esconde isso, que ninguém o veja’. Isso poderia custar a vida à senhora”.
Pellicer também foi duramente criticado por seu rechaço à militarização das colunas de milícias anarquistas para lutar na Guerra Civil. “Foi um personagem com muitos inimigos nas estruturas burocráticas da CNT”, assinala Amorós. Miguel Íñiguez se aprofunda nesta afirmação: “A defesa que fez das milícias frente ao Exército, como também da Coluna de Ferro, cabe considerá-las como magníficas e sumamente anarquistas, por mais que se visse obrigado a aceitar a militarização, que em sua coluna nunca foi real”.
Acabada a guerra, Pellicer “tentou que muitos de seus companheiros escapassem” da pena capital. Pouco mais pode fazer, pois após chegar a Alicante e encontrar-se com seus irmãos, o anarquista foi detido e encerrado no castelo de Santa Bárbara, onde foi “barbaramente torturado”, segundo relata Íñiguez. Após passar por diferentes prisões em Valência, Barcelona e Teruel é finalmente assassinado em Paterna junto a seu irmão Pedro. Diz Coral que sua mãe esteve presente na execução, e que quando o pelotão de fuzilamento abriu fogo contra os detidos, o chefe do grupo se aproximou a seus companheiros e disse: “Aqui morreu um valente”.
Tradução > Sol de Abril
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Carlos Seabra
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Eu queria levar minha banquinha de materiais, esse semestre tudo que tenho é com a temática Edson Passeti - tenho…
Edmir, amente de Lula, acredita que por criticar o molusco automaticamente se apoia bolsonaro. Triste limitação...
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