Isolamento, parte V

Isolamento, 24 de abril de 2020

Pai,

Penso muito em você nesse tempo todo em que estamos em Isolamento. Por vários motivos. Acho que hoje, onze anos depois, consigo entender e sentir diferente muito do que foram os seus últimos anos, preso em casa a um tubo de oxigênio. A mãe sempre disse, doenças pulmonares obstrutivas crônicas são muito duras, porque restringem nossa locomoção, vão minando aos poucos nossa autonomia. Você era um cara orgulhoso, independente, teimoso. Imagino o quanto deve ter sido difícil aceitar – e pedir – ajuda.

Mas não é só sobre a reclusão. Tem também as marcas do tempo. Seria seu aniversário de 71 anos exatamente hoje. E a gente se despediu antes mesmo de você fazer 60. O que teríamos feito nesses anos todos? Como terá sido se despedir da gente sem estarmos lá? Eu só tenho a versão do lado de cá da porta da UTI, e ela não deixa de doer, passe o tempo que for. Uma dor constante que a gente acostuma, e transforma em potência pra não se deixar levar pela ausência. Foram outras despedidas depois de ti. A vó, o Abu, o filhinho pequeno de uma amiga querida, a Boquita, a Zica. Sempre que alguém se vai, traz um pouco de você de volta. E sempre que você vem, eu choro, e depois eu rio, porque você era o cara mais engraçado que eu já conheci.

Tem tanta coisa pequena, do dia a dia, que me faz pensar em você… uma delas é lavar louça. Sempre que eu lavo louça, lembro do quanto você era metódico com isso, os pratos primeiros, os copos por último, “não joga tudo na pia porque aí engordura sem necessidade”. Sigo o passo a passo como se estivesse no meu DNA, no automático. Só não declaro guerra às formigas como você fazia, criando armadilhas pra elas com o detergente. Deixa elas lá, com sua obstinação pela sobrevivência a todo custo, seu sacrifício individual em nome do coletivo. Taí você de novo: filosofando em cima de coisas tão mundanas quanto uma louça.

Pai, você ia odiar estar em Isolamento. Talvez seja até pior do que o que você passou. Olhamos pela janela e quem está doente é o mundo. Ficar trancado por estar saudável é algo que eu não consigo imaginar você vivendo, o tanto que você viajou e se mudou pelo Brasil – e pelo mundo, se contar todas as conversas que a gente teve. Depois de você, eu demorei uns anos pra conseguir viajar de novo. Mas fui, e vi o mundo o tanto que eu pude, até chegar aqui em Isolamento.

Eu não sou a mesma pessoa de antes de você partir. Mudou muita coisa aqui dentro. Os pesos, as medidas, os pensamentos sobre o futuro e a minha própria morte. Aprendi a rir de mim mesmo, a aceitar o ridículo, a gostar de outros tipos de música. Só não aprendi a ficar sozinho. E tenho muita sorte nesse sentido, porque sempre tive boa companhia por perto. Isso está sendo fundamental pra sobreviver em Isolamento, onde há muita solidão. E muita solitude. O dicionário diz que são sinônimos, mas na minha cabeça a solidão tem a ver com estar sozinho, e a solitude com ser sozinho. O que me leva a pensar, como uma língua pode ter um mesmo verbo para expressar coisas tão diferentes quanto ser e estar?

Aqui perto de casa, tem muita gente morando na rua. Nem todos estão sozinhos. E alguns provavelmente são. Como o Zé. Falei dele pra mãe algumas vezes. Ele está sempre sozinho. Às vezes eu acho que ele é, e que a dificuldade de comunicação dele é na verdade uma ferramenta que ele construiu pra viver em Isolamento. Mas pode ser também que ele tenha tentado, e até hoje não tenha conseguido, e aí o único abraço possível foi o da solitude, pra não ter que morrer engasgado com a solidão. Aconteceu uma coisa outro dia que me deixou pensando bastante sobre isso. Olhei da varanda e vi que ele estava cozinhando, num fogareiro improvisado no chão. Ele viu que eu estava olhando e sorriu. Colocou a mão no bolso e começou a tirar de dentro dele um objeto brilhante, de um brilho que eu nunca tinha visto e não consigo descrever. Achei que ele ia me mostrar, e talvez fosse, mas passou uma moto fazendo um barulho esdrúxulo e ele se assustou e voltou pra panela. Fui dormir com aquele brilho na cabeça, e ele chegou até os meus sonhos – e desde aquele dia não saiu mais de lá.

Eu já sabia que era seu aniversário hoje, quando acordei. Porque fui dormir pensando nisso. E sonhei com o brilho, e de repente ele era você, e depois o Zé, e de alguma forma aquilo tudo parecia ser uma coisa só, que eu não consegui ainda entender direito. A rua, o brilho, Isolamento e o Zé. Formigas em construção. Passei o dia todo dentro desse sonho, me sentindo da mesma forma como me sentia naqueles sábados em que você acordava cedo pra me levar pra jogar bola lá do outro lado da cidade. Será o brilho um desejo? Um mecanismo do corpo pra preencher os vazios da mente? Ou apenas nostalgia?

Andar pela cidade, jogar bola e estar contigo. Talvez, quem sabe, o brilho seja o segredo do Zé pra ser e estar ao mesmo tempo, sem precisar de legenda ou tradução.

Cacete, pai. Que saudade de jogar bola. E que vontade de você.

Te amo,

D.

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