[Espanha] Feminismo de classe. Passado ou presente?

Artigo de Mireia Redondo, com ilustração de Ana Nan

Atualmente falamos de feminismos no plural, porque sabemos que somos diversas, e também porque sabemos que há muitos debates abertos dentro desta diversidade. A crescente visualização do discurso feminista em temas muito concretos como o feminicídio ou as violações acelerou também a necessidade de retomar ideias sobre a luta contra o capitalismo e o patriarcado como duas lutas que devem andar de mãos dadas, e esta ideia é o feminismo de classe.

É assim porque o feminismo sempre perseguiu a ideia do interclassismo como eixo de ação, ainda que seguramente a ideia do interclassismo não venha de nossas antecessoras trabalhadoras, e bem interessante seria ler mais sua história que não somente a dos companheiros revolucionários ou a das mulheres feministas de classes médias e altas. Não há mais que repassar um pouco a história (por exemplo, as mulheres trabalhadoras bolcheviques, o movimento de mulheres trabalhadoras alemãs ou Mujeres Libres aqui mesmo) para dar-se conta de que o debate estava em se fazer caso omisso ou não das feministas burguesas, fazer-lhes a guerra, ignorá-las, ou fazer colaborações pontuais, mas nunca se punha em dúvida a necessidade de lutar contra o patriarcado ou de criar espaços de luta e consciência de e para as mulheres trabalhadoras.

Assim, o feminismo de classe não é mais do que a união dessa conexão mais que evidente de que o patriarcado e o capitalismo vão de mãos dadas e se retroalimentam, que um sem o outro não vão funcionar, e que a organização das mulheres da classe trabalhadora, que somos muitas, é uma peça essencial para mudar este mundo. Não se pode falar de emancipação ou liberdade sem falar de acabar com os dois. Segundo meu parecer o feminismo de classe tem uma visão estratégica enorme e supõe uma ferramenta imprescindível para dinamitar o sistema inteiro.

Se bem é certo que o patriarcado influência a todas e cada uma das pessoas, portanto a todas e cada uma das mulheres, isto não deixa de ser um simples elemento de análise do que supõe o patriarcado, portanto isto não nos obriga a sentir-nos afins a todas as mulheres do mundo nem a nos organizarmos com todas nem a deixar de lado nossas reivindicações como mulheres trabalhadoras. Não negaremos que temos este elemento de pressão aí: que o discurso e a prática feminista não fiquem no superficial, comercial ou descafeinada, preso às instituições e a conceitos como o teto de vidro, que nos interessam mas bem pouco. De fato segue sendo um debate dentro dos feminismos tanto o classismo como o racismo que há no seio das grandes plataformas feministas. Em grande parte em nossas mãos está nos valorizarmos.

Mas por outro lado temos outro grande elemento de pressão que seria a tendência das teorias e organizações de classe a estabelecer uma espécie de hierarquia de lutas, na qual a luta de classes é a principal e de sua resolução surgiria a solução das demais. No melhor dos casos não se dá uma hierarquia, o que se dá é uma compartimentação separada de lutas: por um lado a de classes, por outra a feminista, por outra a ecologista, e assim sucessivamente, como se não estivessem profundamente conectadas. Na realidade nenhuma das duas estratégias ou visões acaba sendo suficientemente estratégica, sobretudo tendo em conta que vivemos em um sistema que se nutriu dos corpos e dos trabalhos das mulheres para configurar tanto o modelo produtivo como o modelo de instituições. Por uma parte sabemos que os trabalhos de cuidados, designados de maneira exclusiva às mulheres como obrigação social, acabam gerando uma mais valia elevadíssima, e ao mesmo tempo o modelo reprodutivo afetivo e familiar são uma peça chave para o funcionamento do capitalismo. Mas também para o papai estado. As instituições estão pensadas justo desde esse mesmo prisma, e partem da mesma vontade de controle da população, a terra, a natalidade, a demografia e uma longa lista que tem muito a ver conosco. Por isso mesmo, sabendo que tanto o capitalismo como as instituições e os estados nascem deste controle e vontade de domesticação dos corpos das mulheres, do modelo de família, da natalidade, resulta essencial dizer que não se pode acabar com o capitalismo sem acabar com o patriarcado. E se vamos mais além, não se pode acabar com o patriarcado se não dinamitamos os estados e as instituições. Também depende de nós valorizar esta proposta.

Isto não é novo nem muito menos, temos muitas predecessoras históricas que nos explicam seja com a teoria, seja com a propaganda, seja com suas ações (que é a parte que mais gosto), o que é o feminismo de classe e que é essencial para acabar com toda esta rede de opressões, que não são compartimentos separados e que não funciona nem funcionará uma hierarquia de lutas. A modo de inciso, tampouco faria falta que nos dessem constantes lembranças sobre a importância de que não nos esqueçamos da luta de classes, o sabemos, o sofremos, o lutamos, e não temos porque demonstrar que o lutamos mais.

Nesta batalha sobre se o feminismo é burguês em essência, sobre se as mulheres trabalhadoras que lutavam falando de seus direitos como trabalhadoras, em espaços mistos e não mistos, sobre se nomeassem feministas ou não, sobre se diziam a seus companheiros que eram iguais aos patrões, que tinham que lhes explicar que não queriam ser mais que eles, mas que as tratassem como pessoas, se perde para mim o essencial. O feminismo de classe, além de lutar com muitas frentes para construir um mundo melhor, também para as mulheres, foi uma ferramenta de mobilização que conseguiu ao longo da história criar espaços de mulheres trabalhadoras, donas de casa, desempregadas, migrantes, etc. Espaços desde os quais se reivindicaram como mulheres de classe trabalhadora e como mulheres em luta contra o patriarcado, unindo o discurso sem problema e criando redes de apoio mútuo desde as quais exercer tanto a ação direta como a solidariedade. Mujeres Libres é o exemplo mais evidente disso. Nenhuma outra organização de classe soube reunir ou sentir, a necessidade, o olhar das mulheres trabalhadoras como o fizeram elas. Assim pois, não fica nenhuma dúvida que falar do que nos acontece desde nós e para nós sem delegar nem pedir tutores é o mais próximo da ação direta e da prática revolucionária da luta de classes.

Quando imagino o que seria meu feminismo ideal, tem vários pilares que o sustentam. O primeiro é o de ser um feminismo de classe já que se o feminismo parte da base da emancipação e realização das mulheres fora do autoritarismo patriarcal, não tem sentido algum manter desde o feminismo outras relações de poder sejam classistas ou racistas ou de qualquer tipo que sejam. Outro dos pilares é a necessidade de reler a história, não somente a oficial, também a revolucionária e a feminista acadêmica, e desenterrar toda esta história de mulheres trabalhadoras que nos ajudará a não seguir pensando que partimos do zero. Como terceiro pilar vem o uso das ferramentas, sobretudo de matiz anarquista e anarcofeminista:

• Usar a autodefesa, ou seja a ação direta, como maneira de enfrentar as agressões concretas e as do sistema, assim como ponto de partida para ir nos organizando sem que ninguém nos represente. Desfazer-nos das tutelas patriarcais e desfazer-nos da filosofia da delegação.

• Dentro desta ação direta, ser conscientes de que podemos fazer usos de muitas táticas que vão desde a pedagogia revolucionária à autogestão, da sabotagem à greve ou o boicote.

• Praticar o apoio mútuo e construir comunidades baseadas na solidariedade entre iguais, por isso é importante saber em que feminismo nos situamos ou como o entendemos, já que o apoio, por sua natureza, não é possível se não é entre iguais.

Estes pilares as mulheres trabalhadoras vem praticando há muito tempo, não são novos, não se afastam do que a prática da luta de classes usa como base. Pois toda esta filosofia, toda esta estratégia e toda esta tática é um potencial que pode contribuir com toda esta explosão de feminismo que estamos vivendo. Sim, há muito interesse em cooptar esta explosão, em torná-la algo comercial, em esvaziá-la e inclusive em reconduzi-la, mas ao final a questão que me ocorre é se nossas antecessoras haviam deixado de falar de suas vidas e seus direitos porque as feministas burguesas se apropriavam do discurso. Ao final também podemos dar um pouco a volta e nos perguntarmos o que podemos e queremos dar, e que validade damos a nosso projeto de sociedade totalmente diferente se não contemplamos a luta explícita e sem quartel contra o patriarcado como outra forma de poder e de autoridade. Percorrendo a filosofia anarcofeminista, que é obviamente feminismo de classe, nossa ação deve ser a busca do equilíbrio entre a educação revolucionária e a ação para acabar com toda forma de poder e a perseguição a toda forma de machismo, se dê donde se dê, com todas as ferramentas que sejam necessárias. Que frase resume melhor o feminismo de classe que propõe o anarcofeminismo? Como escreveu Peggy Kornegger “não queremos a tomada de nenhum poder, queremos que se dissolva”.

Extraído do CNT nº 423, Dossiê “Lucha de clases”

Tradução > Sol de Abril

agência de notícias anarquistas-ana

ao voltar dos campos
abro a porta
e a lua entra comigo

Rogério Martins