Décadas de memória são esquecidas enquanto se cobrem o rastro de milhares de pessoas que foram baleadas. A maioria de idade democrática parece ainda não ter chegado.
Por Laura Cruz | 18/07/2020
Esta jornada nunca termina. Será sempre um quebra-cabeça incompleto porque, durante quase quatro décadas da ditadura de Franco, o silêncio foi uma garantia de sobrevivência. Uma linha de vida envenenada. Anos atrás eu procurei o nome de meu bisavô, Eloy Díaz Ania, de quem eu não tinha ouvido falar muito em casa. Encontrei um registro da vala comum de Oviedo onde pude procurar entre as mais de 1.300 almas documentadas até chegar ao dia e ano em que ele foi fuzilado.
Foi em 1938, e havia pouco mais de seis meses desde que a Frente Norte havia caído na ofensiva asturiana. Nunca soube por onde começar a procurar e ainda não sei como terminar. Meses mais tarde, o caminho ainda parece longo e cheio de incertezas.
“A exumação é como uma conversa que estava pendente”, diz Emilio Silva, um dos fundadores da Associação para a Recuperação da Memória Histórica (ARMH). “Sempre que abrimos uma vala comum, pessoas mais velhas da região vêm nos contar coisas, e parentes das vítimas”, acrescenta ele. Eles estimam que existem cerca de 114.000 sepulturas na Espanha, “mas nunca saberemos o número real”.
Discutindo a questão da busca com um amigo historiador, ele me deu a melhor pista para os últimos meses do meu bisavô Eloy: o Centro de Documentação de Memória Histórica, que tem uma grande coleção de arquivos disponíveis para aqueles que os solicitam.
Foi assim que soube que ele era filiado ao Partido Comunista, que era miliciano e tinha se tornado um tenente da Frente Popular. Do centro que me enviaram – era o procedimento mais simples e rápido – muita documentação, e eu senti que uma pequena fenda estava se fechando. Embora eu saiba que na realidade meu bisavô era um trabalhador na mina de Turon, cuja vida só chegou a dez anos mais do que a minha no momento.
Tenho 32 anos e a memória histórica não faz parte do currículo que estudei em História espanhola, nem mesmo na universidade, onde tive até um professor que, sob a proteção da liberdade de expressão, defendeu abertamente a ditadura franquista. A história viva está sempre sujeita a interpretações que a fazem perambular por um caminho relativamente amplo de subjetividade.
“É curioso que este conceito tenha sido invertido”, explica Silva, “porque a liberdade de expressão foi muito utilizada na Espanha durante a Segunda República para fugir do dogma católico na educação”. A lei de 2007 sobre a memória histórica não criminaliza o pedido de desculpas da ditadura mesmo no ambiente educacional, algo que é punível em outros países, como a Alemanha.
“Não há nada que o obrigue, no currículo acadêmico, a dar a disciplina de forma cronológica, embora a maioria dos professores prefira fazê-lo”, diz David Cacho, professor de história espanhola. O sistema educacional aproxima um pouco mais a Guerra Civil e o franquismo no quarto ano do Ensino Secundário Obrigatório (ESO) e lida mais profundamente com ele no segundo ano de Bacharelado, embora geralmente seja um dos últimos assuntos, junto com a Transição. “Um dia, na aula, um aluno que era muito bom aluno, ao ouvir o conceito de prisioneiros políticos sob o regime franquista, comparou-os com outros prisioneiros de hoje”, diz o professor. “Sem entrar na questão de serem ou não prisioneiros políticos, percebi que realmente tinha muito pouca noção da brutalidade que foi experimentada durante o tempo de Franco com a prisão, a tortura e os pelotões de fuzilamento”.
A memória histórica ainda é um assunto pendente na Espanha. Um dos museus mais conhecidos em Berlim é o museu da resistência contra o nazismo e a cada 20 de julho Angela Merkel presta homenagem àqueles que tentaram derrubar Adolf Hitler na Operação Valquíria. Não é tabu falar sobre o Holocausto na Alemanha e a televisão pública frequentemente transmite documentários sobre a era nazista. “É impressionante que o Estado preste homenagem aos republicanos de governos estrangeiros e aqui eles são esquecidos pelas instituições”, enfatiza Silva.
Quanto a saber se a futura lei sobre a memória histórica que está sendo preparada pelo governo será melhor que a lei de Zapatero de 2007, Silva está relutante, pois explica que está deixando para os conselhos municipais a responsabilidade de prestar a ajuda: “Se seu familiar vem de um conselho municipal que não quer colaborar, você teria que iniciar uma luta política pelo que deve ser considerado um direito”.
Na Associação para a Recuperação da Memória Histórica, eles defendem que não é essencial ter uma lei para que as feridas sejam fechadas. “O governo basco tem feito o máximo pela questão das exumações e eles não têm sequer uma lei para isso”, diz Silva. É agora que eles estão considerando isso. É por isso que ele sustenta que a vontade política é suficiente, “que nunca existiu desde o governo central”. A crítica que fazem à exumação de Franco é que seus restos mortais são retirados de um lugar público para serem enterrados em outro lugar, também público: “Mesmo neste 18 de julho, associações fascistas foram autorizadas a fazer um ato lá”, acrescenta ele.
É difícil imaginar que agora haveria uma Fundação Adolf Hitler, ruas em homenagem ao Führer e estátuas públicas dele ou de sua liderança governamental. Até mesmo o Mein Kampf foi reimpresso em uma edição histórica anotada, já que novas edições do original haviam sido evitadas desde 1945. “Na Espanha, não há problema se alguma atividade educacional for realizada para aumentar a conscientização sobre o Holocausto, mas a situação em que dezenas de milhares de famílias se encontram, procurando seus entes desaparecidos, não deve ser abordada como uma questão de violação dos direitos humanos”, lembra Cacho.
Durante a Transição, muitos documentos que eram essenciais para reconstruir a história desapareceram. “Houve também apreensões de documentos para realizar tarefas de contrapropaganda e informações ligadas a elementos dissidentes do regime franquista, de modo que não temos os documentos de todos aqueles que eram filiados ao PCE”, acrescentam eles do arquivo histórico do Partido Comunista da Espanha.
A linguagem também foi retocada quando se fala de execuções, como Silva introduz. “A palavra ‘passeou por’ foi usada, como se tivessem ido passear, enquanto ‘desapareceu’ é uma categoria penal. É por isso que hoje, ele defende, o trabalho educacional ainda é importante. Cacho fala em classe sobre grupos violentos durante a Transição,” “mas eu não falo apenas de ETA, eu também falo de grupos de extrema direita”.
A abordagem do professor é essencial para que os alunos queiram saber mais sobre o assunto, inclusive na universidade, onde Pablo Martínez lecionou em vários cursos. “Eles vêm com conhecimentos muito limitados e cheios de tópicos, por isso resolvem a questão fazendo uma distinção entre bom e mau de acordo com sua própria ideologia”. O professor universitário acha que as sepulturas não devem se tornar um motivo de disputa política: “Há também sepulturas dos vencedores e elas são identificadas. Há uma reclamação comparativa muito importante”.
Quando comecei esta jornada de busca e reconstrução, nunca tive a intenção de fazer uma leitura equidistante do que aconteceu, já que os eventos eram políticos em si mesmos. Não é praticamente uma questão de discussão histórica que em julho de 1936 tenha havido um golpe de Estado contra um sistema democrático que havia saído das urnas. Está documentado que milhares de pessoas pagaram com suas vidas pela defesa da democracia. E para que as valas comuns sejam abertas, explica Silva, várias famílias devem se candidatar antes que a Associação possa pedir permissões.
Pareceu-me urgente escrever este texto. Já faz muito tempo que meu ‘aluguel’ Kiko, filho de Eloá, morreu há anos. Eu quase não tinha referências de pessoas que tinham vivido parte desta história. Apenas alguns fatos que minha tia Aurora guardou em sua memória, de pedaços e pedaços que minha avó Milagros lhe contou, porque Kiko tinha muita dor em suas memórias de infância para narrar como seu pai lhe foi tirado. Há pouca memória viva desses dias entre as milhares de famílias com pessoas desaparecidas”.
Para Emilio Silva, a principal causa é o silêncio que, há 25 anos, paira sobre as instituições públicas: “Tivemos até que recorrer à justiça internacional, como aconteceu com a queixa argentina. E sem qualquer ajuda do Estado”. A Associação para a Recuperação da Memória Histórica acredita que existem mecanismos simples e rápidos para recuperar a memória. “Seria suficiente reunir o chefe de todos os peritos forenses e sua equipe e confiar-lhes a busca usando os recursos públicos disponíveis”, conclui ele.
Fonte: https://www.elsaltodiario.com/memoria-historica/viaje-a-fosa-comun
Tradução > Liberto
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