Por Vanessa Taylor | 29/07/2020
Com uma série de revoltas agitando os Estados Unidos, o presidente Trump não esconde seu desprezo pelos manifestantes. Além de suas ameaças aos militantes de Minneapolis e questionáveis ordens executivas, Trump tem repetidamente direcionado sua ira a um grupo particular: “anarquistas”. A constante referência de Trump a anarquistas para descrever os manifestantes de modo geral é uma tentativa calculada de deslegitimar as lutas atuais – o que pode ser claramente percebido num dos tweets de Trump no início desta semana, no qual ele escreveu que as pessoas que protestavam em Portland e Seattle eram “realmente… doentes e insanos anarquistas e agitadores.”
A imediata e impensada reação à isca lançada por Trump é argumentar que as pessoas que saem às ruas de Portland – uma cidade que está sob cerco de misteriosos agentes federais – e de Seattle são apenas “manifestantes” e não “anarquistas”. Mas se lembre de um velho ditado: um relógio quebrado está certo duas vezes por dia[1]. Trump pode não ser honesto em sua descrição dos anarquistas, e ele certamente não tem uma visão clara sobre os protestos em desenvolvimento, mas negar completamente a presença dos anarquistas pode ser uma mentira tão descarada como aquelas contadas pelo presidente.
Anarquistas têm se envolvido nos protestos pelo país desde que o atual movimento social por justiça começou em maio. Em vez de negar a existência dos anarquistas, é mais útil reconhecer que – no meio de uma insurreição de verão melhor definida como a busca por libertação negra – os anarquistas negros são peças-chave no apoio a muitas das revoltas em curso. E ainda que Trump possa estar por fora ao tratar a anarquia como bode expiatório, os anarquistas negros não estão permitindo que o presidente os afaste do trabalho que tem de ser feito.
A mídia ‘fake news’ está tentando descrever os “manifestantes” de Portland e Seattle como pessoas maravilhosas, doces e inocentes, apenas saindo para um pequeno passeio. Realmente, eles são doentes e insanos Anarquistas & Agitadores, os quais nossos grandes homens & mulheres das forças da lei controlaram facilmente, mas quem… – Donald J. Trump (@realDonaldTrump), 28 de julho de 2020
Parte da referência de Trump ao anarquismo depende da ampla ignorância do público norte-americano em relação ao termo. No geral, as pessoas estão familiarizadas com o anarquismo apenas em formas de entretenimento como ‘V de Vingança’, ou imaginam a “anarquia” como alguma coisa que apenas pessoas brancas insatisfeitas fazem. Na imaginação do americano, anarquia não é mais do que caos pelo caos, desconectado de qualquer análise política ou de uma luta significativa por libertação.
Entretanto, na Teen Vogue a jornalista Kim Kelly definiu anarquismo como “uma filosofia política de esquerda, radical e revolucionária, que defende a abolição do governo, da hierarquia e de todos os sistemas de poder desiguais.” O que significa ser um anarquista negro pode parecer diferente de pessoa para pessoa. Mas Riley, que é parte do Salishi Sea Black Autonomists e se organiza entre Seattle e Olympia, Washington, disse que isso os ajudou a articular o que está acontecendo no mundo para melhor enfrentá-lo.
“A crítica anarquista me deu as ferramentas e a linguagem para melhor ver e entender meu inimigo, e compreender por que e como o mundo está estruturado contra mim e meu povo”, diz Riley ao Mic. “O mais importante, todavia, é que a anarquia me fornece armas e diz: ‘Não espere por uma utopia futura, mas viva e lute aqui e agora mesmo.’ Me diz para não ser o capital ou o soldado raso para o projeto de outro.”
Riley continuou: “Para mim, ser um anarquista negro é abraçar completamente a vida que nos é negada e vivê-la em total conflito com as forças e estruturas que nos subjugam, exploram e matam – o estado, a polícia, as fronteiras, o capitalismo e a economia, o trabalho, etc.” (Riley se recusou a fornecer seu sobrenome).
Para muitos anarquistas negros, um envolvimento com a política radical também significa pôr a comunidade e o cuidado no centro de suas próprias definições pessoais. Makayla, uma organizadora da Philadelphia, disse ao Mic: “[Ser uma anarquista negra] é trabalhar para desenvolver comunidades não-hierárquicas e construir a ajuda mútua por fora das estruturas coloniais brancas e supremacistas. É encontrar formas de curar as pessoas da violência estatal e aprender maneiras de nos sustentar como povo.”
De modo semelhante, Tina, que mora em Dallas, Texas, diz: “Acho que ser uma anarquista negra pode ter muitos sentidos. Mas para mim significa ter meu bolo e poder comê-lo também[2]. Isto é: como uma mulher negra queer, minha libertação é tudo e estou disposta a morrer por isso, custe o que custar. Pois eu amo a libertação mais do que minha própria vida.” Ambas as mulheres se recusaram a fornecer seus sobrenomes.
Os anarquistas negros não se surpreendem com a persistente isca de Trump. Para Tina, isso remete ao Medo Vermelho, que cresceu intensamente nos anos 1940 e começo dos 1950. Durante esse período, o selo “comunista” foi espalhado arbitrariamente (assim como Trump usa “anarquistas”), com o ex-senador Joseph McCarthy também criando o Comitê de Atividades Antiamericanas para investigar o comunismo no interior dos EUA. A campanha de McCarthy deu golpes devastadores na luta dos negros por liberdade.
“Negritude já é anarquia na cabeça das pessoas brancas.”
“Trump rotulando os manifestantes como anarquistas é outra forma de a supremacia branca atuar”, disse Tina. “Negritude já é anarquia na cabeça das pessoas brancas. Não acho que uma pessoa negra tenha de necessariamente se chamar de anarquista para ser um; porque, na terra onde a branquitude é a lei e a ordem, você já é um anarquista.”
Riley diz que é cedo demais para saber o efeito completo do ataque de Trump, mas “Eu sei, claro, que haverá uma intensa repressão sobre os anarquistas, provavelmente em um nível que não vimos desde que [a Frente de Libertação da Terra] estava ativa no início dos anos 90 e 2000. Grandes júris, acusações federais, invasões de casas, informantes, trabalhos.” No entanto, Riley salienta que nas ruas o comentário de Trump pode, na verdade, inspirar um efeito colateral pró-anarquista, semelhante àquele ocorrido na Espanha em 2015: depois que uma operação antiterrorismo contra anarquistas motivou uma reação pública, pessoas usaram a hashtag viral #ITooAmAnAnarchist (“Eu também sou um anarquista”) para expressar solidariedade.
A lógica de Trump sobre os anarquistas serem encrenqueiros depende da narrativa popular do “agitador externo”. A frase veio à tona no início do verão, com as autoridades do condado de Hennepin, em Minnesota, culpando pessoas de fora do estado pela rebelião. Depois, uma investigação da afiliada local da rede NBC descobriu que a grande maioria dos que foram presos era, na verdade, formada por moradores de Minnesota.
A narrativa do “agitador externo” não é problemática apenas por conta de alguns exemplos em que as autoridades estão obviamente erradas em sua utilização, mas é também porque tem raízes no silenciamento de dissidências ao longo da história, dos latifundiários do sul até as grandes corporações, e daí por diante. A conta no Twitter do Midwest People’s History – uma “contínua crônica dos momentos em que pessoas comuns se organizam e fazem história” – escreveu: “Embora o termo específico ‘agitador externo’ não tenha se tornado popular até a eclosão do movimento pelos direitos civis, seu sentimento foi experimentado no Sul Antebellum[3]. No despontar das revoltas de escravos, acusações de ‘agitadores externos’ foram frequentemente usadas por brancos escravagistas paranoicos, a fim de acalmar seus nervos trêmulos.”
Embora o termo específico “agitador externo” não tenha se tornado popular até a eclosão do movimento pelos direitos civis, seu sentimento foi experimentado no Sul Antebellum. No despontar das revoltas de escravos, acusações de “agitadores externos'” foram frequentemente usadas por brancos escravagistas paranoicos, a fim de acalmar seus nervos trêmulos. pic.twitter.com/4aI7SxPDMH — Midwest People’s History (@MPHProject) 2 de junho de 2020
A presença de anarquistas negros complica a noção de um “agitador externo” – descrever anarquistas como pessoas brancas aleatórias, fora das comunidades negras oprimidas, é apagar os anarquistas negros – bem como a narrativa do manifestante “pacífico” que outros tentam invocar para se opor a Trump. Mas por que haveria obrigação de ser pacífico se você está morrendo? A verdade é que há anarquistas negros que queimam e saqueiam, e isso não é o pecado extremo que alguns tentaram fazer parecer. Seguindo os protestos em Ferguson, Missouri, em 2014, Vicky Osterweil escreveu “que, na maior parte da história norte-americana, o saque era uma das táticas mais justas contra os supremacistas brancos. O espectro dos escravos se libertando pode ser visto na história dos EUA como a primeira imagem dos negros saqueadores.”
Além disso, Osterweil percebeu o problema com a priorização e defesa da “propriedade” nos Estados Unidos. Especificamente, como Raven Rakia disse, o termo é racializado. “Quando a propriedade é destruída por manifestantes negros, isso deve ser sempre entendido no contexto da histórica racialização da propriedade. Quando o mesmo sistema que se recusa a proteger crianças negras entra em cena para preservar janelas, fica muito evidente o que é levado em conta na relação com os negros na América.”
É com essa pungente lembrança em mente que se deveria ler uma declaração do secretário interino de Segurança Interna, Chad Wolf, no início de julho, na qual ele disse que “a cidade de Portland está sob o cerco de uma multidão violenta por 47 dias seguidos… Toda noite, anarquistas fora da lei destroem e profanam a propriedade, incluindo a corte federal, e atacam os bravos oficiais da lei que a protegem.”
Embora Wolf dê fortes declarações, elas não capturam a imagem completa. Makayla identifica os anarquistas negros como “[estando] na linha de frente desde o primeiro dia”, ajudando outros manifestantes ao ensinar táticas organizativas úteis. Por exemplo, uma comum – e vital – ferramenta de protesto associada aos anarquistas é a medicina de rua. Essas habilidades são vitais durante os protestos, quando o estado é frequentemente aquele que fere as pessoas, e que ligar para o 911 para assistência médica já não é uma opção. Makayla acrescenta: “Mesmo antes da revolta, os anarquistas negros têm se certificado de que as necessidades da comunidade sejam atendidas, enquanto essas necessidades foram ignoradas em outros locais.”
“É sobre construir modelos de comunidade e justiça transformadora, de modo que as pessoas realmente se curem e se tornem melhores.”
Riley compartilha um sentimento similar, creditando a anarquistas trans mais velhos o fornecimento de moradia quando estavam desabrigados depois de deixar uma situação abusiva na adolescência. A ampla comunidade anarquista também ofereceu-lhes alimentos e roupas, e os ajudou a encontrar um emprego. “Eu tento retribuir o favor quando eu posso, mas, se não fosse pelos anarquistas, eu certamente estaria morto agora”, diz Riley.
Depois que a pandemia de coronavírus começou, muitos anarquistas forneceram o auxílio necessário a seus vizinhos para ajudá-los a aguentar. Riley diz que a comunidade “aumentou a distribuição de comida, máscaras e sanitizadores de mão, bem como continuaram a fazer troca de seringas”. Eles também contaram ao Mic que os anarquistas estão “continuamente… apoiando e escrevendo para os prisioneiros, pagando fianças quando podem e, claro, radicalizando os protestos.”
O verão está longe de acabar e parece que o mesmo pode ser dito das revoltas. O trabalho pode ser diferente, dependendo da cidade, mas ao final do dia anarquistas negros estão batalhando por uma libertação que requer a total reversão da ordem social como ela existe agora. E embora Trump provavelmente instigue mais ataques contra anarquistas nas redes sociais, Makayla espera que as pessoas venham a entender que as táticas anarquistas “necessitam de comunicação, confiança e compromisso.”
“É sobre construir modelos de comunidade e justiça transformadora, de modo que as pessoas realmente se curem e se tornem melhores”, disse Makayla. “Estamos mais a fim de assar biscoitos do que tocar fogo nas coisas, mas abrir a guarda para o fascismo e o racismo é cumplicidade.”
Fonte: https://www.mic.com/p/how-black-anarchists-are-keeping-the-protest-movement-alive-30140067
Notas do tradutor:
[1] A expressão “a broken clock is right twice a day” pode ser aplicada a uma pessoa ou coisa que, mesmo não sendo confiáveis, podem estar certas de vez em quando.
[2] Em inglês, a expressão “You can’t have your cake and eat it too” (literalmente: “Você não pode ter seu bolo e comê-lo também”) significa que há duas opções que uma pessoa deseja, mas ela não pode ter as duas ao mesmo tempo porque são conflitantes. Assim, ela tem de escolher uma. No caso de Tina, ela subverte essa lógica, dizendo que sim, ela pode ter as duas coisas.
[3] O Sul Antebellum (The Antebellum South) é um termo usado para fazer referência à história do sul dos Estados Unidos entre o final do século XVIII e o início da Guerra Civil, em 1861.
Tradução > Erico Liberatti
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!