O presente texto tem dois objetivos: o primeiro prestar homenagem ao pensador anarquista David Graeber, recentemente falecido. O segundo é trazer sua visão sobre como, em meio à pandemia, o apoio mútuo se revelou a principal prática política de resistência e cuidado que os povos periféricos do mundo possuem para enfrentar o regime supremacista do capitalismo contemporâneo, e para imaginar um mundo outro.
Às vezes – não com muita frequência – um argumento particularmente convincente contra o senso comum político reinante apresenta um tal choque ao sistema que se torna necessário criar um corpo inteiro de teoria para refutá-lo.
Tais intervenções são elas próprias eventos, no sentido filosófico; isto é, revelam aspectos da realidade que tinham sido amplamente invisíveis mas que, uma vez revelados, parecem completamente óbvios e não podem mais podem passar desapercebidos. Grande parte do trabalho da Direita intelectual é a identificação e o enfrentamento de tais desafios.
Ofereçamos três exemplos.
Na década de 1680, uma liderança Huron-Wendat chamado Kondiaronk, que tinha estado na Europa e estava intimamente familiarizado com a sociedade colonial francesa e inglesa, participou de uma série de debates com o governador francês do Quebec e um de seus principais ajudantes, um tal Lahontan. Neles ele apresentou o argumento de que a lei punitiva e todo o aparato do Estado existem não devido a alguma falha fundamental da natureza humana, mas devido à existência de outro conjunto de instituições – a propriedade privada, o dinheiro – que por sua própria natureza levam as pessoas a agir de forma a tornar necessárias medidas coercitivas. Igualdade, argumentou ele, é, então, a condição para qualquer liberdade significativa.
Estes debates foram mais tarde transformados em livro por Lahontan, tendo sido um enorme sucesso nas primeiras décadas do século XVIII. Tornou-se uma peça que esteve em cartaz por vinte anos em Paris e, aparentemente, todo pensador do Iluminismo escreveu uma imitação. Eventualmente, estes argumentos – e a crítica indígena mais ampla à sociedade francesa – se tornaram tão poderosos que os defensores da ordem social existente, como Turgot e Adam Smith, tiveram efetivamente que inventar a noção de evolução social como uma réplica direta. Aqueles que primeiro levantaram o argumento de que as sociedades humanas poderiam ser organizadas de acordo com estágios de desenvolvimento, cada um com suas próprias tecnologias e formas de organização, foram bastante explícitos de que era disso que se tratava.
“Todos amam a liberdade e a igualdade”, observou Turgot; a questão é o quanto de uma ou outra é consistente com uma sociedade comercial avançada baseada em uma sofisticada divisão do trabalho. As teorias da evolução social dominaram o século XIX, e ainda estão muito presentes, mesmo se em forma ligeiramente modificada, hoje.
No final do século XIX e início do século XX, a crítica anarquista do Estado liberal – de que o Estado de direito era, em última análise, baseado na violência arbitrária e, no limite, simplesmente uma versão secularizada de um Deus todo-poderoso capaz de criar moralidade por estar fora dela – foi levada tão a sério por defensores do Estado que teóricos de direita como Carl Schmitt acabaram inventando a armadura intelectual para o fascismo. Schmitt termina sua obra mais famosa, Teologia Política, com uma reclamação contra Bakunin, cuja rejeição do “decisionismo” – a autoridade arbitrária para criar uma ordem jurídica, mas, portanto, também para colocá-la de lado – era, em última instância, ele afirmou, tão arbitrária quanto a autoridade a que Bakunin afirmava estar se opondo. A própria concepção da teologia política de Schmitt, fundamental para quase todo pensamento contemporâneo de Direita, foi uma tentativa de responder a “Deus e o Estado” de Bakunin.
O desafio colocado por “Apoio Mútuo: Um Fator de Evolução”, de Kropotkin, sem dúvida, é ainda mais profundo, pois não se trata apenas da natureza do governo, mas da natureza da natureza – isto é, da realidade – em si.
As teorias da evolução social, o que Turgot batizou pela primeira vez de “progresso”, podem ter começado como uma forma de neutralizar o desafio da crítica indígena, mas logo tomaram uma forma mais virulenta, já que os liberais mais duros como Herbert Spencer passaram a apresentar a evolução social não apenas como uma questão de aumento da complexidade, diferenciação e integração, mas como uma espécie de luta Hobbesiana pela sobrevivência. A frase “sobrevivência do mais apto” foi na verdade cunhada em 1852 por Spencer para descrever a história humana – e em última análise, supõe-se, para justificar o genocídio e o colonialismo europeu. Só foi retomada por Darwin uns dez anos depois, quando, em “A Origem das Espécies”, ele a usou para descrever as formas de seleção natural que havia identificado em sua famosa expedição às Ilhas Galápagos. Na época em que Kropotkin estava escrevendo, nos anos 1880 e 90, as idéias de Darwin haviam sido retomadas pelos teóricos do liberalismo de mercado, mais notoriamente por seu “buldogue” Thomas Huxley, e pelo naturalista inglês Alfred Russel Wallace, para propor o que é frequentemente chamado de uma “visão gladiatorial” da história natural. As espécies se enfrentam como boxeadores em um ringue ou comerciantes de títulos em um pregão de mercado; prevalecem os fortes.
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