Com frequência nas notícias atuais, o anarquismo é totalmente mal compreendido. Um dos mitos é que se trata de um movimento para pessoas brancas
Por Livia Gershon | 05/09/2020
Os opositores dos protestos por justiça racial que acontecem por todo país geralmente condenam os ativistas como “anarquistas”. Trata-se de uma falsa caracterização que pretende difamar os manifestantes como violentos e niilistas. E ainda, como o sociólogo Dana M. Williams escreve, o anarquismo moderno – uma filosofia política que geralmente se opõe à coerção, hierarquia e desigualdade, tanto no interior de movimentos ativistas quanto no mundo em geral – tem uma história de décadas na organização antirracista liderada por negros.
Williams escreve que houve alguma interação entre a organização dos direitos civis nos anos 1950 e os amplos grupos anarcopacifistas liderados por brancos. Mas o anarquismo negro realmente tem início no final da década de 1960, surgindo principalmente por fora da tradição anarquista americana branca.
Os movimentos de Direitos Civis e Black Power dos anos 1960 dependiam amplamente de estruturas centralizadas. Lorenzo Kom’boa Ervin, que ajudou a criar a Black Autonomy Network of Community Organizers (BANCO) [Rede Autônoma Negra de Organizadores Comunitários] e a Federation of Black Community Partisans (FBCP) [Federação de Partidários da Comunidade Negra], escreveu que o Partido dos Panteras Negras, influenciado pelo marxismo-leninismo, “falhou, em parte, por causa do estilo de liderança autoritária de Huey P. Newton, Bobby Seale e outros no Comitê Central… Não havia muita democracia interna no partido e, quando as contradições emergiam, eram os líderes que decidiam sobre a resolução, não os membros.”
No final da década de 60, o Partido dos Panteras Negras estava se fragmentando sob o peso da violência da polícia e do FBI, divisões internas e a contínua resistência branca em relação à mudança antirracista. Alguns ex-membros se voltaram para o nacionalismo cultural, comunismo ou a política do Partido Democrata. Mas outros se tornaram anarquistas.
Alguns negros radicais – incluindo Ervin, Ashanti Alston, que hoje atua no comitê diretor do National Jericho Movement para libertação de presos políticos dos EUA, e Kuwasi Balagoon, um ex-membro do Black Liberation Army – encontraram pela primeira vez as ideias anarquistas na prisão. Como alguns anarquistas europeus brancos, eles enxergaram na ideologia um antídoto contra a influência corruptora do poder no interior das organizações de esquerda. Como Alston escreveu em 1999:
Organizações de-cima-para-baixo [e] organizações de liderança são relações baseadas em alguns terem cérebro e a maioria não ter cérebro, e, por consequência, PRECISAM daqueles com cérebros. Eu rejeito isso. Eu me amo e amo o Povo e, por conta disso, todos nós temos cérebros e juntos somos mais espertos do que qualquer pequeno grupo de filhos da puta que afirmam ser meus/nossos líderes.
Balagoon, que se identificou como um Novo Anarquista Africano, salientou que a orientação antiestatal dos anarquistas os tornava anti-imperialistas. Ervin, por outro lado, argumentava que o anarquismo se opõe a todas as formas de opressão, incluindo “patriarcado, supremacia branca, capitalismo, comunismo de estado, ditames religiosos, discriminação contra gays, etc.” Ele apoiou sociedades de ajuda mútua baseadas na comunidade, sistemas de alimentação controlados por trabalhadores, recusa a impostos, greves de aluguel e oposição à brutalidade policial.
Embora o anarquismo nunca tenha se tornado central para o pensamento radical negro, Williams observa que muitas das figuras mais importantes, incluindo Angela Davis, bell hooks e Audre Lorde, analisaram questões políticas de modo antiautoritário. Estas ideias continuam a influenciar os atuais protestos antirracistas liderados por negros, muitos dos quais abrangem estratégias locais de apoio mútuo, metas políticas como a abolição da polícia e das prisões, e estruturas não hierárquicas de “liderança”.
Tradução > Erico Liberatti
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