[EUA] Na Nação Navajo, o Anarquismo tem raízes indígenas

A partir de um coffeeshop desocupado, o coletivo K’éInfoshop se dedica ao apoio mútuo na maior reserva da América

Por Cecilia Nowell | 25/09/2020

Cerca de uma hora a oeste da fronteira entre Novo México e Arizona, uma extensão de autoestrada, céu e terreno salpicado de artemísias terminam em penhascos de arenito. As paredes vermelho-alaranjadas caem no Cânion de Chelly, o único parque nacional operado em terras ainda pertencentes à Nação Navajo. Neste verão, quando a taxa per capita de casos de coronavírus na Nação Navajo ultrapassou a do estado de Nova Iorque, Kauy Bahe, 19, estava de pé na beira do cânion enquanto entregava comida a uma velha navajo e sua família como parte de um esforço de ajuda mútua.

“Era um lugar bonito”, disse Bahe (Navajo), descrevendo o campo de milho da mulher e sua ‘hogan’ (uma casa Navajo tradicional, feita de madeira e solo compactado) fora de Del Muerto, Arizona. Mas “ela estava nos contando sobre as lutas por água, sobre como eles não têm água corrente e como têm de dirigir 30 minutos” para comprá-la.

Por todos os Estados Unidos, ativistas têm respondido à crise do Covid-19 com estratégias anarquistas, como a ajuda mútua. Em Window Rock, Arizona – a sede da Nação Navajo – o K’é Infoshop é um desses grupos e tem fornecido comida e suprimentos médicos a idosos, famílias e imunocomprometidos. Mas membros do Infoshop, como Bahe, dizem que seu estilo de organização autônoma tem raízes nitidamente Navajo.

Em setembro de 2013, Brandon Benallie (Navajo/Hopi) e Radmilla Cody (Navajo/Black) tinham acabado de se mudar para Flagstaff, Arizona, apenas cerca de 200 milhas [aprox. 320 km] da Nação Navajo, quando fortes chuvas inundaram cidades e destruíram casas por toda a reserva. Cody, uma musicista, e Benallie, especialista em segurança cibernética que cresceu vendo sua família se organizar contra a extração de recursos, rapidamente planejaram um concerto beneficente e coletaram ajuda para os atingidos pelas enchentes. No ano seguinte, o fogo no Lago Assayii forçou dezenas de famílias Navajo a deixarem suas casas, e Benallie e Cody organizaram outro show. Então, alguns meses depois, foi noticiado que três adolescentes espancaram e assassinaram dois homens Navajo em Albuquerque, Novo México. O incidente fez com que Cody e Benallie lembrassem de muitas histórias que eles tinham ouvido sobre índios, ataques ou assassinatos de nativos americanos sem teto em cidades brancas, ao longo da Reserva Navajo.

Depois de uma série de eventos, Benallie e Cody sabiam que queriam se comprometer totalmente com um trabalho de ajuda mútua; assim, eles formaram o seu próprio Infoshop, um espaço comunitário anarquista. Começaram montando uma tenda do lado de fora do Museu da Nação Navajo, em Window Rock. Mas como a organização indígena cresceu em 2016, diante das manifestações de Standing Rock, eles decidiram que queriam um espaço permanente.

Apenas a cinco minutos dos complexos governamentais da Nação Navajo, o K’é Infoshop abriu suas portas em abril de 2017, numa cafeteria vazia. No interior, Benallie, Cody e outros membros antigos do coletivo pintaram cada parede nas cores sagradas dos Navajo – preto, branco, azul-turquesa e amarelo – e começaram a disponibilizar livros e zines no espaço. Perto da entrada, eles penduraram uma pintura das mãos de uma mulher, com anéis azul-turquesa, enroladas em barras de prisão – uma obra de uma integrante que o grupo diz ter sido presa injustamente numa batida policial, num mercado popular das proximidades, enquanto ela compartilhava seu almoço com um grupo de sem-teto. Nos fundos, eles encheram as prateleiras de títulos como Cornis Our BloodIndigenous Men and Masculinities e Red Power Rising. E então, na parede dos fundos, colocaram um estêncil de letras vermelhas com a frase: “K’é não discrimina”.

Antropólogos frequentemente descrevem K’é como o sistema de parentesco Navajo, mas Benallie e Bahe me disseram que é muito mais do que isso. “É nossa teoria de tudo”, disse Benallie. “É nossa teoria das cordas. É como estamos conectados a tudo – mas, especificamente, como esse parentesco é retribuído e mantido”.

K’é “é essa enorme filosofia de sobreposições na qual todo o universo está interconectado”, explica Bahe. “Mas também são essas relações que temos uns com os outros, e com os elementos que existem no mundo, seja o clima, a água ou os animais”.

Ao crescer, Benallie disse que aprendeu sobre organização com a família e membros da comunidade que protestavam contra as minas de carvão Black Mesa e a mineração de urânio na terra Navajo. Benallie disse que seu avô sempre lhe falava: “Todos nós recebemos dons e habilidades únicos, e temos de fazer o que podemos para prover aos outros com nossos dons e habilidades únicos”.

Ele acrescentou que, naquela época, “não conhecíamos isso como ajuda mútua; era simplesmente k’é”.

Embora haja uma linguagem claramente europeia para descrever o anarquismo contemporâneo, Benallie acredita que o movimento tem sido influenciado pelas ideias indígenas há muito tempo.

“Ser Diné pode ser considerado anarquista porque nunca tivemos chefes; não tivemos uma hierarquia. Foi sempre horizontal”, disse Benallie. “Comunismo e anarquismo derivaram suas ideologias de missionários franciscanos que chegaram aqui nos anos 1500 e 1600, e estudaram as sociedades indígenas. E você tem Engels, Marx e Bakunin lendo os diários dessas figuras religiosas e como elas descrevem as sociedades indígenas de seu tempo”.

Benallie argumenta que o parentesco Navajo começou a se desfazer quando a tribo tentou negociar com o governo dos Estados Unidos. “A primeira versão de governo da Nação Navajo foi chamada de conselho de negócios Navajo”, ele disse. “Foi formado principalmente para facilitar a assinatura de contratos de arrendamento de petróleo, gás e carvão, na década de 1920”.

Antes horizontal, afirmou Benallie, a sociedade Navajo se tornou patriarcal e hierárquica – e tal estrutura facilitou a destruição da terra e da água para extração de recursos. Essa história explica por que anarquistas Diné como Benallie, Cody e Bahe desconfiaram dos esforços tribais e federais de ajuda durante a pandemia – e quiseram se auto-organizar.

Tão logo o coronavírus atingiu a Nação Navajo, os membros do K’é tiveram uma conversa sobre como eles poderiam ajudar. Benallie disse que, inicialmente, teve receio de fazer um trabalho de apoio mútuo – estava preocupado com a saúde dos membros do coletivo e de seus familiares – mas jovens integrantes como Bahe disseram que eles queriam correr o risco. K’é voltou-se para a despensa de alimentos que havia estocado para refeições semanais de solidariedade com membros desabrigados da comunidade. “O que levamos um ano para doar se foi em duas semanas”, afirmou Benallie.

No início, o Infoshop estava sozinho em seus esforços de socorro na Nação Navajo, mas por volta de abril e maio, outros projetos de apoio mútuo começaram a surgir. Liderado por jovens, o projeto “Alívio da COVID-19 nas Famílias Navajo &Hopi” levantou fundos para fazer grandes pedidos a companhias como Shamrock Farms, além de organizar equipes para distribuir mais de 10 mil libras de comida [cerca de 4,5 toneladas] por semana em 27 mil milhas quadradas [aprox. 43.500 km²] das reservas.

Bahe e outros integrantes do Infoshop se juntaram à equipe de socorro Navajo-Hopi, atuando em Fort Defiance, Arizona – seis milhas [cerca de 9,6 km] ao norte de Window Rock. Bahe disse que o grupo atendeu principalmente cidades próximas, mas de vez em quando ele se encontrava a milhas de distância, em locais como o Cânion de Chelly.

Enquanto o governo tentava controlar a disseminação do surto, instituía toques de recolher e ordens de permanência nas casas, que provavelmente salvaram vidas, mas tornaram mais difícil para as famílias viajarem até um dos 13 mercados da reserva. Os grupos de ajuda mútua adquiriram passes de trabalhadores essenciais para distribuir comida depois do toque de recolher, mas Bahe afirmou que os organizadores ainda enfrentaram resistência do governo.

“Fomos assediados diversas vezes pela polícia Navajo, nos parando e dizendo que nossas autorizações e crachás não eram válidos”, disse Bahe. “Em um caso, a policial nos mandou para a casa, e tínhamos uma van cheia de comida”.

Falando sobre os impactos da pandemia e o rápido crescimento de grupos de ajuda mútua ao longo do país, Benallie observou: “Toda vez que o capitalismo falha, nós pousamos no socialismo, no anarquismo, para cuidar de nós”.

“Espero que isso faça as pessoas questionarem quem está lá por elas. Foi o cheque de 1.200 dólares de estímulo ou foram os seis meses de desemprego? Ou foram as boas pessoas da terra que estavam organizando recursos e necessidades materiais para assegurar que você não durma com fome ou que seus filhos não durmam com fome?”, ele disse. “O capitalismo fomenta essa visão doentia e extremamente individualista de si mesmo. As pessoas começaram a esquecer de suas responsabilidades com os outros, com a terra, e começaram a se preocupar apenas com o quanto eles podem se beneficiar do desequilíbrio do parentesco rompido”.

Enquanto os organizadores pensam em estratégias para cuidar de suas comunidades diante da ausência de apoio governamental, Benallie os incentiva a se lembrarem das suas relações mútuas e com o planeta. “Não podemos fazer isso sozinhos. Precisamos que todas as pessoas boas da terra se reúnam”.

Fonte: https://www.thenation.com/article/activism/anarchism-navajo-aid/

Tradução > Erico Liberatti

agência de notícias anarquistas-ana

fim de tarde
depois do trovão
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Alice Ruiz