[EUA] Justiça: Não condicionada pelos céus

Humanos nascem com um inato senso de justiça

Por Tom Martin

A base do anarquismo tradicional sempre tem sido a crítica revolucionária do conceito de justiça em todas as suas variações, particularmente em sua relação com o aparato repressivo do Estado e a natureza opressiva do capitalismo. Hoje em dia, tudo isso tem se estendido ainda mais para questões como justiça restaurativa e ecológica. As compreensões de filósofos anarquistas permanece relevante, particularmente quando adicionamos a elas observações sócio psicológicas do comportamento humano.

Através de todas suas variações por entre os séculos, justiça, do Latim ius, um “direito”, mais especificamente um direito garantido pela lei, o significado da palavra não tem mudado. Em sua forma no latim mais rudimentar, ious, possuía uma conotação religiosa sugerindo uma norma ou encantamento sagrados, como algum tipo de invocação.

Em línguas relacionadas ao subcontinente da Índia, seus derivados significam saúde ou purificação ritualística. Isso alude a origem da palavra justiça como algo que provém de uma fonte sobrenatural ou, pelo menos, irreconhecível. O etimológico mescla-se com o teológico.

Qual a origem de justiça? Para a maior parte da história (e não apenas no ocidente) era ou vinda da igreja, do Estado ou ainda pior uma mistura dos dois. Quase sempre essas instituições negam a autoria, elas meramente dizem impor a doutrina da natureza humana, leis naturais, Deus, ou alguma outra abstração.

Sim, impor doutrina. A bíblia cristã está repleta de exemplos de justiça provindo hierarquicamente de Deus ou de seus representantes terráqueos.

Anarquistas, ao menos no ocidente, possuem – como todas as outras pessoas  – concepções de justiça derivadas do mythos Judaico-cristão, apesar de que para eles justiça é sempre social, nunca judicial.

A maior parte dos filósofos, anarquistas ou não, sempre afirmaram que este senso de justiça é a fundação de toda moralidade. De onde vem este senso não estão tão facilmente de acordo.

Para William Godwin, o primeiro partidário moderno do anarquismo, justiça era essencial o suficiente para ser incluída no título de seu trabalho mais influente, Inquérito acerca da justiça política (1793). Mas note o adjetivo qualificativo. Anarquistas desde sempre tem debatido entre separar justiça de política e dar a ela um contexto social mais amplo.

“Se justiça possui qualquer significado”, Godwin escreve, “é apenas que eu devo contribuir tudo em meu poder para o benefício do todo.” Mas Godwin toma como certo, com uma presunção Iluminada, que seres humanos irão agir racionalmente.

Pierre Joseph Proudhon, outro proponente do anarquismo, argumentou em “O que é propriedade?” (1840) que filósofos nunca realmente entenderam o significado da palavra justiça. Para ele, ela é a fundação de todas as relações humanas, sendo modificada por “reflexão e conhecimento”. Governos degeneram nossa sociabilidade natural por forma da criação de desigualdade e privilégio.

Em uma carta de 1872, o anarquista russo e rival político de Karl Marx, Mikhail Bakunin, concordou que nós nunca podemos ter real justiça quando a delegamos a outros. Uma sociedade genuinamente livre verá justiça como responsabilidade de todos. Em sua obra Catecismo Revolucionário (1866) ele define “consciência humana como a base da justiça, Liberdade individual e coletiva como a única fonte de ordem na sociedade.” Em todos os seus trabalhos, Bakunin determina igualdade como a condição essencial para a justiça.

Em um ensaio de 1902, “Vingança Organizada Chamada ‘Justiça‘”, Peter Kropotkin, o anarquista autor de “Ajuda Mútua”, especula o conceito de um ponto de vista antropológico. Para pessoas primitivas, ele observou, a justiça era administrada por toda a comunidade agindo por consenso.

Se desenvolveu através de um período de arbitragem e meditação (a era medieval, de acordo com Kropotkin) e com o surgimento do Estado moderno se transforma em um instrumento de vingança e controle em defesa das classes mais privilegiadas. “Justiça é correlacionada ao Estado”, ele escreve, “eles implicam um no outro.”     

Em uma sociedade anarquista, ele continua, justiça será “Arbitragem voluntária, com uma solidariedade mais efetiva, usando dos modos poderosamente educativos nos quais uma sociedade virá a ter, não deixando o cuidado de sua moralidade pública para os policiais.”

Anarquistas são geralmente ateístas, mas Emma Goldman (1869-1940) foi a primeira a dizer explicitamente que a justiça implementada por governos é tacitamente religiosa, sacrossanta, e contínua por que vem supostamente de uma fonte super-humana. Essa fonte pode ser Deus, ou pode ser “a vontade do povo”, mesmo que o povo não seja consultado.

Goldman aponta que ao longo da história, lutadores genuínos por justiça e liberdade sempre foram “os ímpios: os ateístas… eles sabiam que justiça, verdade e fidelidade não são condicionadas pelos céus, mas que eles estão ligados e entrelaçados com as tremendas mudanças que ocorrem na vida social e material da raça humana, Não fixa e eterna, mas oscilante, assim como a vida em si.

Todos os anarquistas concordam em alguns princípios: justiça verdadeira é social, não política, a teoria e práxis desta justiça devem ser decididas pela comunidade e funcionarão melhor em proporção inversa ao tamanho de dita comunidade, teoria e práxis não devem ser tomadas como rígidas, imutáveis. Alguns de nós acrescentarão que essa justiça se estende ao planeta em si, não apenas a humanos. E se não soar utópico demais: em uma sociedade anarquista, a maioria das causas de injustiça irão desaparecer por conta própria.

Estudos psicológicos recentes, frequentemente usando apenas teatro de fantoches, mostraram que bebês em fases pré-verbais, alguns com apenas três meses, possuem empatia e senso de justiça inatos e suporte em seus grupos. Eles demonstram aflição quando vêm uma distribuição desigual de brinquedos, ou um fantoche mostrando favoritismo a um segundo fantoche e não a um terceiro, ou quando um dos experimentadores elogia verbalmente um fantoche que fez algo injusto.

Pesquisadores concluem que o senso de justiça é recíproco. Nós queremos ser justos, e sermos vistos como justos, e queremos que outros também o sejam. Um estudo da universidade de Chicago sugere que variações nas respostas de bebês em frente a injustiça são parcialmente condicionadas pela atitude de seus pais.      

Anarquistas tendem a apoiar nutrição no debate entre natureza/nutrição, relutante em conceder qualquer tendência fixa na natureza humana. Mas esses experimentos, agora numerosos e variados, demonstram algo intuído pelos anarquistas clássicos, e que todos anarquistas devem estar felizes em aceitar.

Nós nascemos com um senso de justiça inato, que a medida que crescemos, é pervertido e retirado de nós pela aliança profana entre religião, capitalismo e o Estado.

A seleção natural claramente favorece solidariedade em grupo ao invés de interesse próprio.

Tom Martin é um professor emérito no colégio Sinclair em Dayton onde ele vêm subvertendo o paradigma dominante desde 1989.

Fonte: Fifth Estate # 406, Spring, 2020

Tradução > A. Padalecki

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Na tarde de neve
Passa desaparecendo
Um só guarda-chuva.

Yaha