A revolta popular contra a junta militar de Myanmar pode ser vitoriosa

Por Zaw Tuseng | 20/06/2021

Um ano após a vitória eleitoral da liga nacional pela democracia em 2015, enquanto eu estava caminhando pelo enorme museu do Tatmadaw (nome da força militar de Myanmar), não pude deixar de ficar admirado pela escala da ode gratuita dos militares de Myanmar à eles mesmos. O museu se estende por numerosas cavernas cobrindo as minúcias de sua história. Escondido em seu interior está um salão dedicado às vitórias do Tatmadaw. O que eles reivindicam como triunfos históricos são batalhas pelo controle do topo de colinas. Apesar de importantes em termos de campanhas individuais de contra insurgência, essa apresentação disfarça uma realidade.

O Tatmadaw não vence guerras. Eles podem até vencer algumas batalhas, mas no final recuam e buscam acordos de cessa- fogo.

Foi dito em recentes análises que a resistência ao domínio da junta é difícil, praticamente impossível, porque o Tatmadaw tem aproximadamente 350.000 tropas. O uso desse número é uma simplificação grosseira e dá uma falsa impressão de que o Tatmadaw está em uma posição inerentemente forte. Algo que não poderia estar mais distante da realidade, por uma razão: Os generais conseguiram provocar um levante nacional contra o Tatmadaw. Existem poucos eventos comparáveis a esse desde a segunda guerra mundial e o período das guerras anticoloniais. Não há nada pré-determinado sobre o que vai acontecer em Myanmar, certamente não a sobrevivência do Tatmadaw. O golpe provocou uma mudança histórica no país e um erro estratégico de proporções existenciais para os militares.

Um número mais adequado para se concentrar sobre é que Myanmar tem uma população de mais de 52 milhões, dos quais quase todos têm um ódio visceral do Tatmadaw. Esse é o contexto que confronta os generais. Eles reduziram os militares a serem essencialmente uma força estrangeira de ocupação tentando desesperadamente suprimir quase a totalidade da população de Myanmar. Para onde seus soldados olham, eles veem hostilidade. Além dos seus parceiros imediatos, notadamente a policia e o Partido da União, da Solidariedade e do Desenvolvimento, não há uma parcela significante do povo que os apoiem.

A resposta do Tatmadaw à esse levante foi previsível. Suas táticas de violência, privação e cooptação foram afiadas por décadas de ditadura. Existe um cálculo dentro do Tatmadaw de que eles podem sobreviver à raiva popular, ao Movimento de Desobediência Civil (MDC) e uma economia em colapso, enquanto isolam qualquer revolta emergente. O Tatmadaw acredita que possui uma janela de perseverança maior do que a resistência. Os generais vão tentar dividir o público do Governo de Unidade Nacional (GUN), do MDC e dos ativistas democráticos mais ardentes do país. Eles vão tentar semear discórdia entre os grupos étnicos, manter acordos de cessar-fogo com organizações étnicas armadas (OEAs) e prevenir a deserção de milícias parceiras. Eles vão vender o país de forma barata para a China.

Qualquer sucesso que o Tatmadaw possa reivindicar é conquistado com um grande custo em termos de soldados e recursos. Que eles não tenham sido capazes de expulsar o Exército de Independência do Kachin (EIK) de seus ganhos estratégicos feitos em março ou de reprimir decisivamente as revoltas em escalada em Sagaing, Chin e Kayah, são signos de fraqueza. Isolados em sua capital construída propositalmente, se escondendo nas escolas das cidades, e tendo que mover grandes comboios através do coração de Bamar, o Tatmadaw seria bobo de se sentir em uma boa posição presentemente. Suas tropas estão atormentadas para reprimir revoltas antes que elas se espalhem, enquanto isso temendo que suas poucas milícias vão desertar e os acordos de cessar-fogo vão colapsar quando o momento for adequado.

Essencialmente uma força de infantaria leve, o Tatmadaw está disperso através do país em numerosas pequenas bases. Em um contexto de levante nacional, isso poderia ser considerado uma vantagem caso o Tatmadaw fosse bem provido com boa logística e fortes unidades móveis. Pobre e sub-equipado, eles não possuem nenhum desses. Unidades individuais estão cada vez mais pressionadas enquanto seu reabastecimento é tensionado e populações locais os assediam. A logística será ainda mais apertada no período chuvoso e a base do Tatmadaw será desmoralizada à medida que milhões celebram abertamente suas derrotas nas redes sociais.

Tendo por muito tendo adotado a doutrina da ‘guerra popular’ de contar com a ajuda da população para expelir invasões estrangeiras, agora é o Tatmadaw que enfrente numerosas milícias locais de autodefesa. Muitas dessas milícias são da Forças de Defesa Popular (FDP) promovido pelo GUN, mas existem outras, como a Força de Defesa Chin, que são coletivos locais formados para prover segurança à comunidades ameaçadas. Essa tendência vai escalar.

Para avaliar com precisão as perspectivas da resistência, é mais pertinente focar no balanço militar em termos de trajetória. O movimento anti-junta não deveria ser julgado em sua composição em qualquer instante fixo do tempo, mas sim na velocidade em que está avançando.

Revoluções nunca começam com uma resistência que é bem armada, totalmente provida de pessoas e com competência profissional. As bem sucedidas tem uma íngreme curva de aprendizado em termos de liderança efetiva, desenvolvimento de táticas e adquirindo armas com a pressa necessária. A partir dessa perspectiva, os eventos não se movem à favor da junta. Eles enfrentam pressão através de todo o país, incluindo áreas que não produziram revoltas sustentáveis na memória recente, como o sul do Sagaing, mas crescente em outras regiões até Ayeyarwady na medida que novas FDPs se organizam.

O Tatmadaw deve ter o sentimento crescente de que é uma força de ocupação estrangeira em meio à uma população hostil. Seus soldados devem temer o enclausuramento de uma diversidade de ameaças – ataques locais, suprimentos constrangidos e uma sufocante ostracização social. Eles deverão ser forçados a se espalhar de forma ainda mais débil. Cada vez mais fatigados, eles podem ser assediados e fragmentados através de incontáveis pequenos ataques.

O Tatmadaw pode sempre vencer as linhas de fogo que eles escolhem priorizar, mas vão sofrer para criar uma estratégia viável contra um levante nacional. Isso seria difícil para qualquer força militar enfrentar uma quase universal revolta. Uma chave para o sucesso da resistência é unidade. Batalhas vitoriosas contra o Tatmadaw farão mais para catalisar solidariedade nacional do que qualquer outra coisa. Kani, Mindat e Demoso devem ser precedentes para ações coletivas ainda mais amplas, enquanto o país inteiro deve gratidão ao EIK por seus destemidos ataques sobre as forças do Conselho de Administração do Estado e à União Nacional de Karen por oferecer paraísos de segurança.

Se a natureza do conflito puder se mantida como um levante nacional, a balança militar favorecerá a revolução por simples força numérica e vontade. Muitos analistas apontam para a durabilidade do domínio militar em Myanmar. Essa atitude derrotista serve ao status quo de interesses maquiados como domésticos que buscam esperar que outros sofram os custos de expelir o Tatmadaw ou observadores estrangeiros cínicos que falham em ver o quanto o Tatmadaw é odiado. Muitos também sustentaram sutilmente a reivindicação do Tatmadaw de que eles estão mantendo o país junto, apesar de anos de atuação dos militares em dividir grupos armados locais em facções em conflito e uma completa rejeição de incluir líderes de fora de círculo político de tomada de decisão, provocando resistência geração depois de geração.

Lições estão sendo claramente aprendidas da experiência do país durante 1988 e depois. O GUN se vê como um movimento revolucionário ao invés de um ‘governo em exílio’ e tem feito claros esforços em construir uma coalizão nacional baseada em uma democracia federal. Esses esforços são nascentes e devem ser continuados.

Acima de tudo, é vital que a resistência armada surja não apenas das minorias étnicas, mas inclua fundamentalmente a maioria Bamar. É crítico que a resistência inclua as regiões e cidades. A resistência aqui ameaça grandemente a viabilidade do Tatmadaw. Os generais adorariam retornar à ‘normalidade’ de lutar apenas contra as organizações étnicas armadas. Alianças emergentes entre as organizações étnicas armadas e as FDPs em Chin, Sagaing e Kayah mostram o quão potente elas podem ser. O sinistro aviso do GUN de um iminente ‘Dia-D’ de ação nacional deve assustar os militares mais do que qualquer coisa.

Quando se caminha para fora do Museu do Tatmadaw, somos deixados com uma sensação de que um complexo enorme como esse tem a intenção de esconder aquilo que é na verdade um complexo de inferioridade. Se trata de militares tentando desesperadamente mostrar que eles são centrais para manter o país junto, para sempre os guardiões benevolentes. Qualquer sensação de que isto é aceito pelo povo se foi há muito tempo, enquanto o país se levante em revolta. O Tatmadaw é agora amplamente reconhecido como a bárbara desgraça nacional que é. Fundamentalmente essa é uma crise que apenas Myanmar pode resolver. Ação internacional será secundária. O povo deve se consolar sabendo que eles possuem os meios e o direito moral de derrubar os militares que destroem o país já faz muito tempo.

>> Zaw Tuseng fugiu de Myanmar aos 17 anos após participar de protestos estudantis para restaurar a democracia. Ele passou os anos seguintes como um exilado em um campo de refugiados na fronteira entre Índia e Myanmar, onde ele continuou a participar no movimento democrático de Myanmar. Ele possui um mestrado em administração pública na Columbia University’s School of International and Public Affairs e um BA em ciência política na Universidade de Delhi.

Fonte: https://www.irrawaddy.com/opinion/guest-column/the-revolt-against-myanmars-junta-can-succeed.html

Tradução > Antônio

agência de notícias anarquistas-ana

silêncio
o passeio das nuvens
e mais nenhum pio

Alonso Alvarez