Por Lea Pilone | 20/04/2021
Para chegar na origem da polícia moderna na Europa, precisamos voltar à Idade Média. No campo, a vida era dominada pela servidão, na qual camponeses e camponesas trabalhavam para os latifundiários e em troca recebiam um pequeno pedaço de terra para se sustentarem. A partir do século XIII, essa ordem começou a ser abalada. Ao invés de trabalho obrigatório, os proprietários exigiam pagamentos monetários, o que gerou o endividamento de camponeses e camponesas empobrecidas.
Além disso, do final do século XV ao século XVIII, a terra comunal foi massivamente privatizada, deixando uma grande parte da população sem meios para a própria subsistência. Os servos foram expulsos de suas terras e forçados a buscar outros meios de sobrevivência. Muitos migraram para as cidades em constante expansão durante esse período. Essa massa de indigentes tornou-se o terror da classe dominante, que via nos vagabundos, mendigos, pobres e prostitutas um perigo incontrolável.
A “ciência policial”
Uma resposta a isso foi a chegada da “ciência policial”, que surgiu no início do século XVI e foi praticada por regentes, reis e estudiosos das leis, principalmente no território do Estado alemão. [1] “Boa polícia” significava segurança e a preservação da ordem pública: incluindo todas as áreas, às quais eram atribuídas qualquer função de manutenção da ordem, desde medidas administrativas, cuidado as pessoas empobrecidas, lidar com desastres naturais até a regulamentação do mercado. No decorrer dos séculos XVII e XVIII, as estações imperiais (Reichsstände) emitiram uma série de portarias policiais.
Embora, por exemplo, a ordem policial de 1530 propagasse que levaria a “paz, tranquilidade e união para os súditos e as autoridades”, um olhar sobre os objetos da ordem policial deixa claro, que se tratava principalmente de paz e tranquilidade somente para as autoridades. [2] O objeto das ordenanças já eram nessa época as pessoas marginalizadas: vagabundos/as (indigentes sem moradia nem emprego fixo), estrangeiros/as, ciganos/as (rom e sinti), judias e judeus, bandos de ladrões e bandidas, prostitutas e supostas bruxas. Criminalizadas foram ações que representavam uma ameaça para a nova ordem emergente. Essas incluíam estratégias de sobrevivência, como mendigar, vagabundagem ou crimes contra a propriedade.
Pessoas, criminalizadas pelas suas estratégias de sobrevivência, deveriam ser disciplinadas para trabalhar.
Foram precisamente aquelas atividades que garantiam um meio de subsistência diferente do trabalho assalariado que impediram a aplicação da nova ética de trabalho. Ao mesmo tempo, o aborto e a fornicação foram perseguidas. As relações sexuais fora da família conjugal impediam o estabelecimento de uma disciplina sexual burguesa, enquanto o controle de natalidade impedia o crescimento populacional, que – depois de um terço da população europeia morrer de peste – foi muito importante para a exploração do trabalho.
Apesar da infinidade de leis, a realidade ficou aquém das expectativas: “nem o uso da palavra polícia, nem a intervenção de homens, cuja tarefa era manter a ordem e a repressão de autores de crimes, garantiam o aplicação da lei e a segurança pública. Os regentes alemães (Fürsten) do século XVII emitiam decretos policiais, mas muitas vezes faltavam oficiais para fazê-las serem cumpridas”, escreveu Clive Emsley. [3]
As pessoas, que seguiam as estratégias de sobrevivência criminalizadas mencionadas acima, deveriam ser disciplinadas para trabalhar. Na Inglaterra, a dinastia Tudor impôs uma divisão com as “Leis Pobres” entre pobres “reais” e “irreais”, que também foi encontrada em outras partes da Europa Ocidental. Como pobres reais eram consideradas as pessoas fisicamente incapazes de trabalhar. Todos os outros, os “falsos pobres”, foram rotulados como indisciplinados, preguiçosos e avessos ao trabalho. Ser pobre e não trabalhar, mesmo com condições físicas, era visto como uma decisão consciente, que poderia ser condenada juridicamente. [4]
Com a criminalização e a punição subsequente, os regentes e reis visavam duas coisas: a aplicação de uma ética de trabalho capitalista nos súditos e a criação de uma mão-de-obra livre. Em 1547, o estatuto do rei inglês definiu, que aqueles que se recusassem a trabalhar ou fugitivos “de qualquer trabalho seria levado a flagelação ou encadeamento”. Se fugissem, seriam condenados a escravidão perpétua. [5] Em Veneza, em 1529, foi ordenada a prisão de todos/as pedintes estrangeiros/as com o fim de utilizá-los/las como trabalhadores/as forçados/as na frota de navios. Mais tarde, na França, sob comando de Luis XVI, foram organizadas caças aos/às sem-teto para utilizá-los/las como remadores/ras nas galés dos navios. Dessa forma, os governantes, não apenas garantiam disciplinamento das massas, combatendo estratégias de sobrevivência para além do trabalho, como também recrutavam mão-de-obra gratuita para fazer avançar seus negócios lucrativos, como o colonialismo.
Reforma liberal da polícia na Inglaterra
Mark Neocleous descreve em “A fabricação da ordem social” como a ideia da polícia moderna começou a surgir no século XVIII na Inglaterra sob a influencia do liberalismo e do Iluminismo. Ela emergiu em distinção à polícia da França absolutista, onde haviam policiais desde a metade do século XVIII. Em Paris, cerca de 3000 homens pertenciam alieutenant général de police de Paris; a metade deles patrulhava a cidade, enquanto a outra metade trabalhava como catadores de lixo ou bombeiros, por exemplo. Assim eles controlavam um amplo campo, dos mercados até o comércio de livros. O maior departamento já era, entretanto, responsável pelo crime e pela mendicidade.
Esse caráter controlador da polícia foi julgado como sendo autoritário demais na Inglaterra, a regulação de todas as áreas da sociedade, principalmente da economia, foi rejeitada. Em vez disso, a ideia de uma mão invisível, que surgiu com o liberalismo, ganhou influencia segundo a qual a sociedade era determinada e ordenada pela busca natural da felicidade de cada indivíduo.
Na verdade, “o mercado” agora regulava certas coisas como se fosse natural: as massas estavam cada vez mais sujeitas à lógica do capital e do trabalho assalariado, outras possibilidades de prover o próprio sustento foram em grande parte destruídas ou criminalizadas. Após a consolidação das relações capitalistas, a violência direta não era mais necessária para forçar as/os trabalhadoras/es a trabalhar. Assim, para o curso normal das coisas, o trabalhador poderia ser deixado às “leis naturais da produção”. [6]
O conceito continental de polícia foi reformado na Inglaterra: a partir de uma instituição que controlava todas as possíveis áreas da sociedade, tornou-se uma instituição cuja única tarefa era combater o crime.
A criação de uma “classe criminosa”
Desde o início, os novos policiais trabalhavam com um padrão específico, quando controlavam e observavam. O professor e médico italiano Cesare Lombroso desenvolveu uma abordagem pseudo-médica para identificar criminosos. Ele defendia a teoria de que pessoas nasciam criminosas e que a sua criminalidade poderia ser identificada em características físicas específicas (que também eram atribuídas aos colonizados).
Valeria Vegh Weis enfatiza que dessa forma não era mais necessário esperar para que um crime seja cometido, porque já era claro, quem potencialmente cometeria um crime. Assim fora possível identificar a/o “criminosa/o nata/o” e o bairro onde morava. O controle da criminalidade se torna preventivo. A referência médica sobre as características físicas particulares das/os criminosas/os agiu como uma legitimação para a intervenção policial em áreas urbanas para “encontrar” esses/as criminosas/os.
Além de controlar os bairros pobres, a polícia foi utilizada para reprimir greves e movimentos sociais, a partir do século XIX. Para tanto, não recorriam mais apenas a meios violentos, mas também construíram uma rede de vigilância eficaz para observar todas as pessoas potencialmente perigosas.
Não é por acaso que a polícia, hoje em dia, controla principalmente pessoas racializadas, queer, sem teto e outras pessoas marginalizadas. Assim como a procura por pessoas criminalizadas feita apenas em lugares específicos também não é por acaso. A polícia foi criada precisamente para esse policiamento seletivo. Era necessário para impor a ordem capitalista e agora é necessário para proteger o status quo.
>> Lea Pilone estuda direito em Berlim, trabalha na área da criminologia marxista e é ativa em movimentos socialistas-feministas.
Observações:
[1] Karl Härter: Strafrechts- und Kriminalitätsgeschichte der Frühen Neuzeit. De Gruyter, Berlin 2017, p. 27.
[2] Andrea Iseli: Gute Policey. UTB, Stuttgart 2009, p. 18.
[3] Clive Emsley, Crime, Police and Penal Policy: European Experiences 1750-1940. Oxford University Press, Oxford 2007, online I.4. S. 5.
[4] Valeria Vegh Weis, Marxism and Criminology. Brill, Leiden 2018, p. 46.
[5] MEW 23, 763.
[6] Ebenda, 765.
Fonte: https://www.akweb.de/gesellschaft/die-geschichte-der-polizei-in-europa/
Tradução > Bakira
agência de notícias anarquistas-ana
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