Já se passaram mais de quatro anos desde que conheci Santiago pessoalmente. Lembro-me que foi uma tarde fria em junho ou julho de 2017 na nova biblioteca em Avellaneda. Tivemos o cuidado de montá-la depois de okuparmos uma padaria abandonada e o Bruxo passou por lá para conhecê-la.
“Eles me chamam de Lechuga, a alface”, disse ele com um sorriso. Eu ri e perguntei a ele o porquê do apelido. “É por causa do meu cabelo. Eles me dizem que a parte de trás do meu cabelo cresce como uma alface” foi sua resposta. Durante minhas relações com ele naquele dia ele sempre foi amigável e sorridente, ele parecia ser um companheiro extremamente caloroso e agradável. Ele estava muito animado me dizendo que tinha viajado muito no território dominado pelo Estado chileno, acompanhando principalmente o conflito da salmonicultura naquele território. “Vou voltar e continuar viajando”, disse-me ele, deixando claro seu nomadismo anarquista.
Pouco tempo depois, o maldito 1º de agosto chegaria e a notícia de seu desaparecimento nos atingiria no rosto. Levei alguns dias para perceber que esta era a mesma pessoa que se apresentou a mim como “el Lechuga“, já que muitos o chamavam de “el Brujo“. “Ei, desapareceram com o Brujo“, disseram. Pensei que não o conhecia, até que vi uma foto e entendi que era a mesma pessoa. A partir daquele dia, eu nunca mais fui o mesmo. Saber em teoria que o Estado desaparece com alguém é uma coisa. Que uma pessoa que você conhecia e com quem compartilhava ideais e práticas desaparece é outra. A partir daquele dia, minhas convicções e meu desprezo por este sistema imundo se fortaleceram.
E eu não era o único. O desaparecimento do Brujo foi uma centelha que fez com que os camaradas fossem para as ruas. Muitos dos camaradas que conheço hoje e com os quais compartilho minha vida, eu encontrei em assembleias que se ativaram para a aparição de Santiago. Nunca esquecerei as ações que começaram a partir das tristes notícias. A raiva poderia ser organizada. Bloqueios de rua, ataques a instituições, assembleias nas praças, escritos, propaganda, cartazes e ações começaram. Movimento.
As marchas pacíficas dos partidos políticos foram interrompidas pelos “infiltrados”, camaradas ingovernáveis que atacaram bancos, edifícios governamentais, sedes das forças repressivas do Estado, não só aqui, mas em vários territórios. A solidariedade estava se espalhando. Os blocos negros perturbaram a passividade do espetáculo democrático. Várias ações ocorreram em diferentes partes do território dominado pelo Estado argentino. “El brujo fue la chispa”, “Izquierda yuta”, “Aparición sin vida de Patricia Bullrich”, “La naturaleza exige venganza”, “Que la rabia se desborde”, disseram algumas paredes. Ainda não podíamos mudar o mundo, mas pelo menos pudemos lamentar à nossa maneira, como Santiago, acreditamos, teria gostado.
O anarquismo, com todas as nossas limitações, mas com raiva genuína, estava de volta ao local um pouco mais. Falou-se dos “infiltrados”, Kri$tina pediu que eles fossem entregues à polícia e os cidadãos responsáveis executariam a ordem. Ainda me lembro quando um amigo de toda a vida, um militante da Patria Grande que agora é membro da Frente de TodEs, me disse que não deveríamos sair às ruas, que o desaparecimento era uma provocação da “direita”, que só lhes daríamos argumentos para que o governo Macrista saísse para se reprimir e vitimizar. Obviamente, as eleições legislativas estavam logo ao virar da esquina. Como o desaparecimento de um Estado num contexto de luta territorial pode ser apenas uma “provocação”? Diante da morte diária e estrutural do sistema que eles dizem querer mudar, diante da despossessão de uma vida, a única coisa a fazer é seguir a linha amarela que o próprio sistema define? Se a institucionalidade anula o próprio desejo de rebelião, de destruição criativa, a repressão já opera dentro de nós e já acontece antes. Existe sangue em um corpo que foi completamente colonizado pelo pacifismo democrático mercantilista? Se um dia eu não voltar, quebrem tudo.
Finalmente, gostaria de acrescentar que na época eu não estava muito informado sobre a importância de acompanhar a luta mapuche para a recuperação de suas terras ancestrais. Mas com o passar do tempo compreendi que “o povo da terra” tem sido um dos poucos povos que tem sido capaz de resistir (com suas óbvias limitações) à colonização mercantil de suas tradições e cultura. Cinco longos séculos se passaram desde que o processo de invasão capitalista e despossessão do território “americano” começou, e milhares de tribos e até impérios caíram sob as botas do progresso e da civilização. Entretanto, uma parte do povo mapuche continua mostrando ferocidade e resistência incomuns, por exemplo, o Movimento Autônomo Mapuche de Puelmapu ou o Comitê Coordenador da Arauco-Malleco. Esta resistência é uma evidência empírica de que houve outras formas de estabelecer relações sociais entre as pessoas e seu entorno, e é por isso que é tão importante que o sistema as elimine. Eles são a prova viva e material de que havia vidas antes do Estado/Capital. Compreender que a humanidade vive na Terra há muito tempo e que temos um longo caminho a percorrer para nos compreendermos é o que podemos aprender com sua luta. Este sistema tem se caracterizado pela destruição de todas as formas de vida que se lhe opunham. Se não pode cooptar e mercantilizar, os destrói. Nenhum outro sistema patriarcal de opressão tem sido capaz de homogeneizar a cultura em nível planetário. A globalização é o movimento pelo qual a vida cotidiana do mundo é mercantilizada. Sua melhor arma sempre foi marcar como “loucura”, “heresia”, “terrorismo”, “barbárie” ou “selvajaria” todos os povos e indivíduos que se recusaram a sucumbir a suas relações sociais alienadas e destrutivas.
Qual é nossa tradição? Que história recordar? Quem define as datas nos calendários? Que comunidade nos une se não a do Capital e seu vazio? Onde podemos olhar para o passado em busca de inspiração e força para projetar um futuro diferente? Como resgatar as mortes intermináveis das gerações anteriores que se amontoam atrás da procissão dos Césares, enquanto construímos um presente e um futuro melhores para as gerações presentes e futuras? Santiago e a luta do povo mapuche podem nos dar algumas pistas.
Fonte: https://periodicogatonegro.wordpress.com/2021/07/31/recordando-a-santiago-recuperando-la-vida/
Tradução > Liberto
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Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!