Por Rachel Shabi | 24/11/2021
As organizações hiper locais criadas durante a pandemia eram grupos políticos – mas não tinham intenção de substituir a ajuda estatal
Pergunte a qualquer integrante do grupo de apoio mútuo contra a Covid de Whalley Range, ao sul de Manchester, sobre seu maior motivo de orgulho e duas respostas aparecem: o fundo emergencial e o mutirão épico de limpeza das ruas. Não é difícil entender por quê. A transformação das ruas sujas que cruzam os terraços da vizinhança foi um ato de poder coletivo. Já o fundo, que conta com a contribuição de todos, permite que qualquer membro do grupo saque £50 em dinheiro todo mês, sem perguntas. Ambos os projetos sedimentaram a confiança e o senso de responsabilidade entre o grupo de 100 vizinhos.
Espalhado por três ruas na região sul de Manchester, esse grupo é o suprassumo da versão hiper local do apoio mútuo. Os integrantes são das mais diversas origens: locatários e proprietários, com idade variando entre 20 e 70 anos. No bairro, moram uma comunidade paquistanesa e uma família sudanesa. Os folhetos são traduzidos para o urdu, o hindi, o árabe e o guzerate, enquanto outros integrantes usam aplicativos de tradução online para participar das conversas no grupo de Whatsapp do bairro.
O foco inicial do grupo era suprir as necessidades imediatas durante os primeiros meses da pandemia, como ajudar com as compras, buscar receitas médicas ou compartilhar informações confiáveis sobre a Covid. De lá para cá, o escopo aumentou: hoje os integrantes compartilham alimentos e festivais, fazem rodízio de ferramentas DIY, cultivam um jardim comunitário e reúnem-se para discutir questões como os senhorios inescrupulosos e os motoristas que desrespeitam os limites de velocidade. Quando encontrei alguns integrantes do grupo, uma delas, Helena, de 50 anos, disse: “Quando vizinhos se falam, um quinquilhão de milagres inesperados acontece.”
Enquanto pesquisadores e militantes estudam o fenômeno do apoio mútuo no Reino Unido durante a pandemia, permanece a dúvida sobre o seu significado político. Semanas após o primeiro lockdown, em março do ano passado, a Grã-Bretanha viu surgir um dos maiores esforços de apoio mútuo do mundo, com mais de 4 mil grupos criados por todo o país. O acontecimento em si foi político, e é um reflexo terrível do vácuo que o apoio estatal deixou, e que os grupos voluntários se apressaram em preencher. A pandemia foi devastadora para quem não tinha caixas de papelão estocadas, nem economias ou redes de apoio. Rees Nicholas, integrante do pequeno grupo que montou o site Mutual Aid UK para contribuir com as organizações locais, me disse que no início da pandemia mais de 600 pessoas em dificuldade enviavam mensagens ao site todos os dias.
O apoio mútuo é, por definição, político. O anarquista russo Piotr Kropotkin cunhou o termo para descrever o fenômeno das comunidades que ajudavam umas às outras. As sociedades prosperam por meio do coletivismo. O trabalho voluntário de apoio mútuo geralmente vem acompanhado do slogan “solidariedade não é caridade”. Em contraste com o setor filantrópico, em que há um doador (a entidade filantrópica) e outro que recebe a doação, o apoio mútuo opera em sentido horizontal, de ajuda recíproca. Especialmente nos EUA, a tradição do apoio mútuo está enraizada entre a população negra e as minorias étnicas, nos grupos LGBT e em grupos de imigrantes, comunidades marginalizadas que não têm como depender do apoio estatal.
Quando a psicóloga política Emma O’Dwyer, da universidade de Kingston, começou a pesquisar os grupos de apoio mútuo contra a Covid na Grã-Bretanha, descobriu que a maioria dos voluntários era de mulheres, de classe média, e de esquerda. Mas em todo o país, muitos grupos evitaram qualquer tipo de discussão política, numa tentativa de estimular a inclusão. Política com “P” maiúsculo pode ser alienante e é algo malvisto por muita gente. Integrantes dos grupos em Whalley Range insistiram em se declarar não politizados. Uma mulher de 39 anos me disse que, na verdade, os objetivos do grupo eram “o amor, a gentileza e a ajuda mútua”.
Mas o problema de diluir a política é que a direita prontamente coopta o apoio mútuo como um esquema para repassar mais responsabilidades estaduais para o setor voluntário.
Ano passado, Danny Kruger, deputado do distrito de Devizes pelo Partido Conservador, lançou a Nova Unidade de Aliança Social, relacionando o discurso do governo sobre “equalização” ao surgimento dos grupos de apoio mútuo durante a pandemia. Mês passado, a Unidade publicou um relatório sobre “conservadorismo comunitário” que foi defendido pelo novo secretário de equalização, Michael Grove. O relatório classifica as milhões de pessoas que ingressaram em grupos de apoio mútuo como parte de um “núcleo cívico” cujo empoderamento seria “a conclusão lógica do Brexit”. Com o silêncio do Partido Trabalhista sobre o tema, o governo parece empenhado em transformar a onda de coletivismo em uma força Conservadora.
Voluntários com quem conversei dizem que, em vez de tampar as lacunas deixadas pela negligência do estado, o objetivo dos grupos é pressionar o governo a reduzir essas lacunas. Mas como a extraordinária rede de apoio mútuo da Grã-Bretanha se transformaria em uma força capaz de tanto? O primeiro passo é garantir que o apoio mútuo continue a florescer depois da pandemia. Nicholas diz que muitos dos grupos que permanecem ativos adotaram um modelo de caridade, como um grupo de Londres que é financiado por uma loteria, que arrecada laptops e celulares para imigrantes. Outros grupos se voltaram para necessidades de longo prazo. Um grupo de Newcastle administra uma despensa comunitária, permanente abastecida, que distribui comida de graça. Mas a permanência do grupo de Whalley Range sugere que a comunidade pode ser autossustentável, e uma necessidade em si. Se a esquerda tem dificuldade para encontrar apoio nas regiões devastadas pela desindustrialização e em dificuldades econômicas, talvez estas novas comunidades possam ajudar a abrir terreno.
Sejam politicamente articulados ou não, muitos voluntários dizem que o apoio mútuo mudou suas vidas. Participar de uma ação coletiva é algo poderoso e tem seu próprio impulso. Como me disse Emma O’Dwyer, não há nenhum gesto importante em particular, se não o ato em si. Conseguir transformar o apoio mútuo em uma força progressiva capaz de renovar a esquerda, é outra história.
Tradução > Peixe
agência de notícias anarquistas-ana
O brilho do salto
do peixe na cascata,
lâmina de prata.
Luiz Bacellar
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!