As montanhas não tinham caminhos nem trilhas,
os lagos não tinham barcos nem pontes
Não faltavam pássaros nem animais
As ervas e as árvores conseguiam perdurar
Chuang Tse, Cascos do Cavalo1
A história da civilização é também a história das pandemias. Durante o Neolítico, a expansão da agricultura totalitária2 a partir do Oriente Próximo, foi o ponto de partida não só para o emergir do Estado, da estratificação social e do Patriarcado, como para o despontar de pestes e pragas até então inexistentes. A progressiva sedentarização, conseguida pela domesticação de animais e plantas, substituiu a diversidade alimentar dos caçadores-recolectores, pela quantidade dos agricultores, resultando no aumento exponencial da população. Doenças infectocontagiosas como a varíola, a peste, o sarampo, a gripe ou a tuberculose necessitam de grandes aglomerados populacionais para subsistirem. A maioria destas doenças evoluiu de outras semelhantes existentes em animais domesticados, como é o caso do sarampo que surgiu a partir da peste bovina; ou são provenientes de animais sinantrópicos3, como algumas espécies de ratos, potenciais transmissores da peste. Com a crescente densidade populacional de vilas e cidades, ligadas por rotas de comércio mundiais, as epidemias tornaram-se pandemias.
A peste bubônica que assolou o império Bizantino no século VI, fazendo milhões de mortos, terá chegado a Constantinopla em navios mercantes, carregados de grão, ratos e pulgas4, disseminando-se rapidamente pelo império. Foi uma vantagem para as tribos bárbaras, muitas delas nômades, dispersas por zonas rurais e por isso menos expostas ao contágio5. No século XIV, a peste negra, provocada pela mesma bactéria, reduziu para dois terços a população europeia. Acredita-se que o surto tenha chegado à Europa através da rota da seda. Atingiu sobretudo as cidades, sobrepovoadas, com populações enfraquecidas pela fome, pela guerra e pela insalubridade constante. Durante este período foram iniciadas perseguições sangrentas a várias minorias, entre elas os ciganos e os judeus, acusados de serem os causadores da peste.
O genocídio dos povos indígenas da América e da Oceania, iniciado com a colonização europeia no século XV, foi conseguido não só através da guerra e da violência, mas também pela disseminação de doenças até então inexistentes, levadas pelos colonizadores, para as quais os povos nativos não tinham imunidade. Epidemias de varíola, sarampo, cólera, febre tifoide e malária contribuíram para esse extermínio, ajudando a consolidar o domínio dos impérios coloniais. A virulência destas doenças foi agravada pela aniquilação dos modos de vida que esses povos tinham antes da chegada dos europeus. A caça, a recolecção e variedades de agricultura sustentável destinadas à subsistência refletiam o respeito e a intimidade que estes povos mantinham com a natureza. A introdução da agricultura expansiva, destinada a alimentar os fluxos comerciais das metrópoles, foi acompanhada pela desflorestação, expropriação de terras e trabalhos forçados, para os sobreviventes desse etnocídio. Também o comércio transatlântico de escravos e o estabelecimento de colônias penais originaram novas doenças e epidemias que ajudaram a dizimar as populações nativas.
Com a revolução industrial, o rápido crescimento da população, a migração em massa de desapossados do campo para a cidade e a progressiva urbanização, foram criadas as condições para que doenças endêmicas se tornassem pandêmicas. A abertura do canal de Suez e a invenção do navio a vapor reduziram a distância entre a Europa e a Ásia Meridional, acelerando a propagação de doenças como a cólera ou a tuberculose. Os surtos de cólera na Europa foram devastadores, atingindo as cidades em crescimento, habitadas por explorados do capitalismo industrial que sobreviviam em circunstâncias de extrema pobreza, desnutrição e insalubridade. É neste contexto que surge a gripe “espanhola”, uma das mais letais da história, em que a degradação generalizada das condições de vida foi intensificada durante os anos da Primeira Guerra Mundial. Estudos recentes mostram que essa estirpe não era afinal tão virulenta como se pensava6. A guerra e o comércio internacional foram os principais fatores de contágio. Teve origem provável nos Estados Unidos, a partir de vírus de aves ou suínos, coincidindo com a modernização da agricultura no país. Nos anos 1970, esse modelo de criação intensiva de animais começou a ser exportado para todo o mundo7.
Texto de M. Araújo
Legenda da fotografia em destaque – Um nativo norte-americano contempla a linha de comboio trans-continental em Sacramento [1867]. A composição do fotógrafo Alfred Hart transmite o choque definitivo da civilização e do progresso na vida dos povos originários, para cujo genocídio tinha já contribuído imensamente a disseminação de epidemias.
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https://www.jornalmapa.pt/2021/12/15/a-pandemia-da-civilizacao/
agência de notícias anarquistas-ana
Manchas de tarde
na água. E um vôo branco
transborda a paisagem.
Yeda Prates Bernis
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