Por Ben Olson
Precisamos reafirmar o valor da música, especialmente da música não-domesticada, particularmente durante as privações sociais da pandemia atual. O último ano tem sido um borrão de isolamento social, abrigos in loco e confinamentos.
Os horrores silenciosos de 2020 e além levaram a crescentes prazeres isolados, desejos aterrorizantes, pequenos momentos secretos de esquecimento (ou de querer esquecer), escapes privados que com frequência apenas tornam mais exacerbados os efeitos de estar sozinho e com medo. Nessa situação, para muitas pessoas, a experiência midiática, ver filmes, ler ou ouvir música, torna-se um refúgio cobiçado, uma tentativa vaidosa de relaxamento e descanso da ansiedade constante reconhecida pela metade, como um kit de sobrevivência pelo aumento dos efeitos do trauma cultural coletivamente (ainda que de forma díspar) distribuído e individualmente sofrido. Mas o isolamento da música, o entrelaçamento da experiência musical com nossa crescente domesticação, significa que as nossas tentativas de cura podem ser insuficientes.
O que precisamos é deixar entrar o ar, não lacrar a dor em momentos hermeticamente saudosistas. É importante, então, afirmar o valor da música não-domesticada — selvagem em sua composição e/ou em seu formato de disponibilização — com o propósito de nos abrir em um tempo no qual corremos o risco de nos fechar completamente.
Música de vanguarda ou de improviso, assim como a dos guitarristas ingleses de vanguarda do rock Fred Frith e Derek Bailey, ou como a do coletivo de arte experimental surrealista The Residents, esticam os limites do que conta como música ao explorar o potencial de atonalidade e barulho.
As pessoas experienciam a música de formas profundamente pessoais, traçadas por seus passados e presentes individuais, além e acima do que pode ser expressado pela linguagem. Não precisa ser discursivo nem precisa necessariamente incluir qualquer tipo de regularidade além dos ritmos inevitavelmente imperfeitos de um corpo vivo, como batidas do coração. Melodias não-domesticadas têm o potencial de resistir a modos dominantes de comunicação, ao criar um mundo temporário e imaginário que permite que se expresse contra o dominante, contra as forças de controle que buscam definir os limites do que é possível.
Em nossa sociedade, essas forças são incorporadas e enraizadas em ideologias coloniais em sua maioria implementadas imediatamente pela polícia. Normalizam a captura, o aprisionamento e até o assassinato de povos subjugados.
A música é uma ferramenta efetiva para demonstrar solidariedade com aqueles que buscam resistir esse controle. Quando cidades estavam sob o isolamento contra a pandemia do COVID-19, bem como os toques de recolher feitos para encurtar os protestos contra a brutalidade policial, muitos músicos resistiram às restrições colocadas neles ao se juntarem aos manifestantes antirracistas para demonstrar seu apoio e emprestar sua música como forma de expressão. Na internet, dentro das telas vigiadas das redes sociais, músicos furiosos postaram vídeos de novas músicas e performances selvagens que buscaram transformar seus mundos dados os horrores que testemunhavam. Como um uivo irracional contra restrições, a melodia não-domesticada exige o impossível, uma vida sem um mestre, com nenhuma autoridade além de si mesmo.
Domesticação é a instilação da submissão em indivíduos ou grupos por meios físicos/biológicos (como uma criação de plantas ou animais e outras práticas agropecuárias), ou por outras práticas culturais ideológicas ou amplas, como a religião e outras práticas que constituem a verdade em uma sociedade. A construção de normas culturais e o bloqueio do que não se submete a elas podem ser aplicados a tipos diferentes de atividades culturais, mas a domesticação ocorre primeiro a nível de experiência.
O domesticador obriga subordinados em potencial a uma auto-experiência como seres dóceis, já submissos. Comportamentos indisciplinados — ações que vão contra esse treinamento — são ditas como contra sua própria natureza. Ser domesticado é ter uma experiência quebrada em instinto e obediência. O objetivo da domesticação é convencer o treinado que a docilidade vem do instinto.
Entre as críticas à civilização, a domesticação é geralmente compreendida como um termo ecológico relacionado à agricultura. Implícita nessa compreensão, contudo, está uma concepção mais ampla da domesticação como resignação à cultura dominante, disciplinando a mente humana.
Essa abordagem é útil à compreensão das limitações do trabalho do músico, mas não exclui ou contradiz uma crítica mais pontual e primitivista que pode ser feita simplesmente ao ligar a digitalização da música à tecnologização da vida cotidiana, ou, em um nível mais antropológico, ao observar as ligações históricas entre harmonia e hierarquia. Complementar a essa crítica há uma descrição existencial da experiência da domesticação na música.
A música e o trabalho do músico passaram por novos estágios de domesticação pela forma que se retira a experiência musical da realidade compartilhada para dois reinos imateriais: a internet e o exclusivamente mental. Isso constitui uma dominação da experiência e do trabalho da performance melódica. Também quanto ao conteúdo, músicas têm se tornado mais dependentes de um alinhamento temporal de grade a ser copiado e colado e facilmente manipulado em um software de computador.
Isso afeta não apenas o trabalho de músicos, mas as camadas rítmicas mais profundas do ser humano. Enquanto essa técnica facilita a criação musical, faz com que ela seja também mais previsível, tornando brusco o efeito da antecipação e bloqueando a ansiedade da experiência do ouvinte, ao invés de permitir que essa ansiedade se desenvolva e se resolva em si mesma.
A música não é apenas uma atividade cultural, mas uma expressão dos seus próprios ritmos. Quando nos restringimos ou nos permitimos ser restringidos pela submissão a modos de expressão dominantes em troca de participação na cultura, perdemos acesso a esses ritmos mais básicos do ser que não precisam ter uma relação específica com a cultura cuja participação requer tais trocas.
Ao substituir as irregularidades livres de performances improvisadas que não seguem assinaturas temporais internas estáveis, com técnicas que conformam mais facilmente a um ritmo sincronizado, abrimos mão de um elemento essencial do processo musical por algo mais compatível com pressupostos culturais sobre uma concepção mais ampla de música. Isso limita os ritmos idiossincráticos do ser que são integrais à experiência mais livre de temporalidade não-domesticada. A pulsação, síncopes metronômicas são trazidas de dentro de nós entre as orelhas, em um esforço desesperado para substituir a lucidez perdida de nossos ritmos corporais mais instintivos.
Essa experiência de fones de ouvido – ainda que com frequência empolgante, visceral e cerebral na mesma nota – é uma substituição poderosa para a experiência vivida e espacial do corpo em um mundo compartilhado, mas ainda assim uma substituição. Traz os ritmos para dentro ao invés de provocar o ouvinte a habitar um mundo rítmico. Transforma o corpo em um mundo em si mesmo, o que é especialmente perigoso em um tempo no qual feridas emocionais estão sendo incubadas, crescendo e se alimentando de privações sociais, incitando o que pode se tornar profundas inibições interpessoais que podem atormentar as gerações futuras. Devemos assegurar que nós e nossos descendentes não sejamos deixados incapazes de verdadeiramente habitar este mundo, incapazes de encarar a realidade em sua imprevisibilidade, a não apenas tolerar, mas a habitar e a participar da confusão selvagem da realidade.
Por várias razões, a música não deve ser tocada para que todos a ouçam, mas injetada em ambos os lados do crânio do ouvinte, como se fosse sua própria experiência individual. Isso pode fazer o ato de ouvir música ser mais animado de algumas formas. Coisas como o posicionamento do som, seus gradientes e vários efeitos sonoros trabalham para tornar a experiência de músicas gravadas mais interessante, assim como a produção joga com as posicionalidades no corpo, mas a retirada do ouvinte de um espaço aberto no qual o artista divide acesso espacial perceptivo com a música, ou em que pessoas a ouvem juntas, é uma repressão da dinâmica e da vida independente da música em si, em toda sua finitude rítmica. É um fechamento de fronteiras em torno de um instinto musical cuja privação é do corpo humano em seu espaço aberto e acesso a outros corpos.
O outro reino imaterial no qual pode-se ter uma experiência com a música é a internet, que pode, discutivelmente, ser um local de compartilhamento do inconsciente. Na internet, consciências geralmente entram em confronto, como se habitassem o mesmo espaço mental aberto. A música pode até mesmo ser feita em conjunto nesse reino digital, entre indivíduos que estariam geograficamente em locais separados de outra maneira, mas a materialidade bruta de se estar do lado de fora, de se estar ali, a habitação de um mundo inteiramente perceptual e espacial não acontecem online.
A percepção é sinestética. A audição, como os outros sentidos, não é dissociável de seu contexto perceptual mais amplo. A experiência do mundo não é redutível a sentidos dissociados e divisíveis, mas depende de um contexto aberto no qual os sentidos se misturam. O mundo multissensorial é o contexto da música e, sem ele, a música vive uma vida rígida.
A esperança está naqueles músicos que estão tentando escapar do distanciamento, resistir à coletividade ilusória da internet e quebrar a regularidade monótona dos ritmos das máquinas ao adotar a imprevisibilidade e a irregularidade do ritmo, experimentando a lucidez do ser ao tocar fora de assinaturas temporais ou a rejeitá-las completamente e recuperando as melodias rebeldes, acolhendo a vida da música que existe lá fora.
>> Ben Olson é escritor e músico com base em Nova Iorque. Estuda Filosofia na The New School for Social Research.
Fonte: Fifth Estate # 409, Summer, 2021
Tradução > Sky
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