[EUA] Após 200,000 anos, ainda estamos tentando entender o que é a humanidade

Por Annalee Newitz | 26/11/2021

O antropólogo David Graeber, famoso por resumir vários milênios de história econômica em seu livro “Debt: The First 5,000 Years,” [Dívida: os primeiros 5,000 anos] passou a última década colaborando com o arqueólogo David Wengrow em outro projeto ambicioso. Os dois estudiosos peneiraram evidências de 200,000 anos de história humana no intuito de compreender como a desigualdade começou. Suas pesquisas exaustivas renderam frutos em “The Dawn of Everything – A New History of Humanity,” [O Despertar de Tudo – Uma Nova História da Humanidade] uma argumentação fascinante sobre o porquê de humanos hoje estarem “presos” a Estados rígidos e hierárquicos que teriam chocado nossos ancestrais. “Algo muito errado aconteceu com o mundo,” escrevem. “Uma porcentagem muito pequena de sua população controla os destinos de quase todo o resto e o fazem de forma cada vez mais desastrosa.”

Infelizmente, esse livro é também a última obra de Graeber. O famoso filósofo anarquista, uma grande figura do movimento Occupy, bem como um acadêmico influente, faleceu no final de 2020. Seu trabalho final alcança o ponto máximo de sua carreira, um tomo que rivaliza com fantasias épicas em peso e escopo imaginativo. De fato, Graeber e Wengrow parecem cientes dessa comparação, observando com uma piscadela que o início da história humana, com seus Neandertais e Homo sapiens, foi como um mundo repleto de “hobbits, gigantes e elfos.” E, embora o livro seja equipado com materiais explicativos de civilizações antigas — Wengrow é especialista em arqueologia do Egito antigo e do Oriente próximo —, é também um exercício inibido da produção mitológica. “A teoria social é fortemente um jogo de faz de conta,” afirmam os autores. “Essencialmente, reduzimos tudo a um cartum para sermos capazes de detectar padrões que seriam invisíveis de outras formas.” Em outras palavras, este não é um livro que tenta ser cientificamente preciso, seja lá o que isso signifique: é uma polêmica.

O livro começa ao virar a cabeça da história do Iluminismo, argumentando que a busca europeia do século XVIII pelo pensamento racional na verdade tem início nas Américas com um intelectual Wendat chamado Kandiaronk. Em 1703, como afirmam em sua história, um explorador colonial francês chamado Lahontan publica um livro de diálogos com uma versão levemente disfarçada de Kandiaronk no qual os dois debatem a natureza da liberdade e da sociedade civil. (Lahontan fala Wendat e línguas Algonquin, então é plausível que esses diálogos sejam basicamente versões editadas de conversas reais.) Lahontan argumenta que a sociedade europeia era rica, livre e espiritualmente superior. Kandiaronk contra-argumenta que os franceses são escravizados por seu rei, brutalmente governados pelo dinheiro e moralmente empobrecidos porque permitem que algumas pessoas passem fome enquanto outras desperdiçam comida.

Kandiaronk e outros pensadores indígenas foram os verdadeiros arquitetos do Iluminismo, afirmam Graeber e Wengrow, porque questionaram tudo que os europeus subestimam sobre suas vidas. Jean-Jacques Rousseau e outros filósofos franceses leram avidamente o livro de Lahontan, bem como outros diálogos populares com povos indígenas publicados na época, influenciando seus próprios pensamentos sobre a desigualdade. O que europeus chamavam de riqueza era, na realidade, pobreza espiritual, e sua preciosa liberdade era reservada apenas aos aristocratas. Inspirado pela crítica de Kandiaronk, “The Dawn of Everything” convida leitores e leitoras a olharem à nossa sabedoria forjada sobre a civilização por diversas perspectivas e não assumem que o Estado Ocidental seja o único sistema político racional.

Muitos de nós aprendemos na escola que a civilização evolui em saltos revolucionários que são basicamente os mesmos, não importa onde você esteja. Essas “revoluções” nos levam de culturas simples a complexas: caçadores-coletores se tornam fazendeiros; fazendeiros dão um pulo para os Estados-nações civilizados. Em “The Dawn of Everything,” aprendemos que isso pode ter sido verdadeiro em algumas regiões europeias, mas não é como a maior parte das civilizações emergem. No leste próximo, por exemplo, existiram caçadores-coletores que desenvolveram Estados urbanizados sem passar por uma fase de agricultura; enquanto isso, nas Américas, alguns grupos indígenas eram agriculturalistas por meio ano e nômades na outra metade. Embora algumas civilizações tenham desenvolvido burocracias, serviços militares e regimes de propriedade, outras dividiam a propriedade comunalmente e estabeleciam forças policiais temporárias que eram dissolvidas dentro de alguns meses.

Uma nova figura de civilização humana emerge vagarosamente, uma que não se dá em conformidade com os mitos ordenados de desenvolvimento ocidentais. E isso é quando Graeber e Wengrow puxam nosso tapete, revelando que a busca pela origem da desigualdade — ostensivamente seu projeto — não é um caminho útil para curar o que nos aflige. É impossível que todos sejamos “iguais,” escrevem, e, de fato, um foco na igualdade leva a narrativas históricas de “um-tamanho-serve-a-todos”, ou seja, uniformizadas. Ao invés disso, podemos nos desprender de nossa crise presente de capitalismo de desastre apenas ao explorar as origens da “liberdade,” especialmente a liberdade de se mudar para qualquer lugar, desobedecer a autoridade e redefinir as mitologias que nos ajudam a encontrar sentido em nossas vidas.

Graeber e Wengrow contam uma fascinante gama de histórias sobre civilizações de muitos continentes e milhares de anos, todas as quais lutam com o que significa ser livre. Somos imersos em contos da cidade turca de 9,000 anos Catalhoyuk, em que não houve uma “revolução agricultural,” mas milhares de anos de transformação gradual de caça e coleta para a plantação de uma colheita anual; da civilização Yurok do século XIX do litoral da Califórnia, em que as pessoas tentaram e rejeitaram a agricultura; das urbanizações Minoan da Creta da Era do Bronze, governada por governantes mulheres que dividiam o poder com comerciantes homens.

Uma das asserções mais intrigantes deste livro é que humanos têm engajado em experimentos sociais e debates políticos por toda nossa história de 200,000 anos, testando todo tipo de estrutura política pelo caminho. O problema é que tendemos a lembrar as civilizações baseadas na guerra e na hierarquia, com frequência porque essas sociedades são obcecadas com o registro de todos os seus (exagerados) feitos por escrito. Pensadores modernos geralmente marginalizam sociedades construídas em tradições orais e estruturas políticas oscilantes, relegando-as à “pré-história” ou “à era das trevas.”

Explorando essas eras supostamente inferiores, encontramos modelos de civilização baseados em vastas redes de hospitalidade e troca ao invés de conquista. Graeber e Wengrow especulam que os povos Hopewell da América do Norte, cujas terraplanagens incríveis perduraram por milênios, não definiram sua civilização como uma escada social com algum senhor em seu topo; ao invés disso, suas várias cidades e vilas eram uma confederação livre, em que qualquer indivíduo tinha a liberdade de desobedecer seu chefe, deixar o bando e visitar outros grupos em que poderia ser bem-vindo. Embora os Hopewell fossem parte de uma sociedade de massa de alta complexidade, conseguiram reter liberdades individuais indispensáveis — liberdades que todos neste mundo já perderam.

Ocasionalmente, Graeber e Wengrow caem no mesmo tipo de pensamento tendencioso que os homens obcecados com o Iluminismo que criticam. Analisando a história, encontram exemplos de anarquismo em todos os lugares, oferecendo narrativas suspeitosamente utópicas de culturas, às quais atribuem valores de feminismo e anarquia. Ainda, os autores admitem abertamente que seus exemplos foram escolhidos a dedo e, em alguns casos, interpretados extremamente de forma especulativa porque não escreveram um texto didático científico, mas um manifesto, sugerindo uma outra maneira para que a humanidade viva, inspirada pelas ideias que nossos ancestrais nos deixaram.

Quanto mais aprendemos sobre os muitos caminhos que nossos ancestrais percorreram, mais futuros possíveis aparecem. “The Dawn of Everything” começa uma réplica afiada de análises culturais negligentes e termina com um hino às liberdades que a maioria de nós nunca percebeu que estavam disponíveis. Saber que há outras formas de viver, Graeber e Wengrow concluem, permite-nos repensar o que ainda podemos nos tornar.

The Dawn of Everything

A New History of Humanity

David Graeber e David Wengrow

Macmillan.

704 pp. $35

Fonte: https://www.washingtonpost.com/outlook/after-200000-years-were-still-trying-to-figure-out-what-humanity-is-all-about/2021/11/23/2b29ff86-4bc8-11ec-b0b0-766bbbe79347_story.html

Tradução > Sky

agência de notícias anarquistas-ana

entre flores velhas
o som da abelha
treme flores novas…

Luiz Gustavo Pires