Uma velha violência: o voto obrigatório

devotos do voto

Brasil, março de 2022.

Em cima dos palcos, na boca de artistas diante de milhares de pessoas em festivais de música como o Lollapalooza, ou nas redes digitais como Twitter, Facebook, Instagram e Tik Tok, conquistando inúmeros views, a combinação das palavras “jovem” e “eleitor” circula pelos mais variados lugares.

A manifestação que reuniu desde a cantora Anitta, passando pela também agora cantora e ex-BBB Juliette, até o ator estadunidense Mark Ruffalo (o Hulk dos filmes da Marvel!), pretendia ser espontânea, mas ocorreu dez dias depois da “Semana do Jovem Eleitor”, organizada pelos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e juízes dos TREs.

Como era de se esperar, a campanha dos descolados artistas, mais do que a do tribunal com suas velhas togas, decolou nas redes, sites, portais de notícias, jornais impressos, nos intervalos comerciais das principais emissoras de TV. Comparando as eleições com um show ou “festa da democracia”, o ministro, a principal autoridade do momento no TSE, agradeceu efusivamente o apoio popstar.

No rastro de Anitta & Cia chegaram inúmeros grupos, convocando ao alistamento eleitoral. A movimentação de artistas, influencers, juízes, ministros, ativistas, tem como alvo arregimentar, em especial, de jovens de 16 e 17 anos, a parcela que juntamente à dos idosos acima de 70 anos não são obrigadas constitucionalmente a votar.

Segundo variadas pesquisas, desde o início dos anos 1990, com a chamada redemocratização, o índice de jovens eleitores pertencentes a esta faixa diminui acentuadamente. Nos últimos quatro anos, caiu quase pela metade, de 1,4 milhão para pouco mais de 800 mil.

Desta maneira, às vésperas do encerramento do prazo, em 4 de maio, para jovens se alistarem na Justiça Eleitoral — reparem no termo militar tantas vezes utilizado por autoridades em comunicados oficiais — adolescentes de 16 e 17 anos tornaram-se o alvo principal dos mais avançadinhos e engajados devotos do voto obrigatório. Contudo, apesar de pouco comentada, a campanha up-to-date e democrática desvelou um velho e antigo ranço autoritário.

o novo que já cresce velho

Em 1932, há noventa anos, o então presidente Getúlio Vargas promulgou o primeiro Código Eleitoral do Brasil.

O código foi o responsável pela instituição do Tribunal Eleitoral, sediado na então capital da República, a cidade do Rio de Janeiro. Entre as novidades do texto: o voto feminino, o voto secreto e a obrigatoriedade do voto.

Logo no início da denominada Era Vargas, os anarquistas combateram diretamente o que foi apresentado como “avanço político” em variadas áreas. Maria Lacerda de Moura problematizou o sufrágio feminino como algo distinto e distante da efetiva emancipação das mulheres. Inúmeros militantes atacaram a criação do Ministério do Trabalho e sua inspiração nitidamente fascista.

Mais uma vez a história das lutas expôs o discernimento singular dos anarquistas. Poucos anos depois, em 1937, com o chamado Estado Novo, o mesmo Vargas, sob o pretexto de proteger o país de uma suposta ameaça comunista, instituiu uma ditadura com quase uma década de duração.

De 1937 a 1946, o tão louvado Getúlio, responsável, entre outras coisas, pelo voto obrigatório, aboliu os partidos políticos e a Justiça Eleitoral. Censurou, perseguiu, prendeu e, pelas mãos de Filinto Muller, seu chefe de polícia, torturou sistematicamente mulheres e homens acusados de subversão.

É sempre bom lembrar! Com o fim do Estado Novo, Muller, o torturador, foi eleito democraticamente repetidas vezes. Na segunda metade dos anos 1940, consolidou-se como um dos fundadores do PSD, partido pelo qual tornou-se, pelo voto, senador da República de 1947 a 1962.

Algumas décadas depois, durante a ditadura civil-militar (1964-1985), somado à influência sobre uma geração mais nova de torturadores empregados regularmente como funcionários do Estado, o delegado Filinto Muller, tornou-se presidente do Arena, partido diretamente ligado à violência sistemática dos militares.

Com Filinto Muller e tantos outros agentes da violência entre os seus quadros, em julho do ano seguinte, a ditadura no governo de Castelo Branco promoveu pequenas alterações no Código Eleitoral de 1932. O voto obrigatório, como era o óbvio em um regime autoritário, foi mantido. Para além da compulsoriedade, o texto de 1965 estipulou, pela primeira vez, uma multa aplicada ao cidadão que não comparecesse ao pleito. Além da multa — que compõe os milhões de reais do Fundo Partidário eleitoral distribuído entre os partidos — encontra-se a necessidade de comprovar a regularização do título de eleitor para emitir/renovar o passaporte.

E depois de vinte anos de terríveis violências, enfim, com o ocaso da ditadura, o que foi feito dessa criação do autoritário Vargas e referendado pelos militares? Efeito de acertos, permutas, mobilizações distintas, negócios, coalizões, a Constituição de 1988, não ousou enfrentar e abolir a questão.

A partir de um “novo” texto relacionado ao voto, com argumentos velhos e velhacos, a Constituição definiu e define ainda hoje as atribuições do cidadão no ritual eleitoral, com o mesmo ranço. Desde 1988, o voto estabeleceu-se como obrigatório para os maiores de 18 anos e os menores de 70; facultativo para os maiores de 70, pessoas entre 16 e os 18 e os analfabetos.

Como afirmou um anarquista na virada do século: “Getúlio Vargas — o déspota que se disse pai dos pobres, se transvestiu de democrata e se matou pretendendo ser herói —, permanece o principal fantasma a habitar a política brasileira. Mas com o fim da ditadura militar ele ganhou uma nova companhia, a do voto obrigatório” (Ver em http://www.nu-sol.org/blog/voto-obrigatorio-e-a-ditadura-da-maioria-edson-passetti/).

Capitaneada, sobretudo, por artistas, a campanha atual pelo alistamento de jovens mantém o fantasma em cena. O engajamento em likes e views, ficou explícito, fortalecendo ainda mais proprietários e conservadores planeta afora, Brasil adentro.

No Brasil NUNCA houve voto facultativo!

Assim como a obrigatoriedade do voto, o engajamento ativista atual faz parte de uma sintaxe política, da linguagem devota e antitransformadora.

Se quisermos algo inédito e livre, é preciso, antes de tudo, abolir esse e outros visíveis fantasmas.

Fonte: hypomnemata 255 | Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP | no. 255, abril de 2022.

agência de notícias anarquistas-ana

Balanço de rede
Ao longe um rádio ligado —
Tarde modorrenta

Neiva Pavesi