Na Amsterdã dos anos 1960, um movimento de contracultura com uma pequena frota de bicicletas brancas foi pioneira em um modelo de transporte que conquistou milhares de cidades pelo mundo todo.
Por Feargus O’Sullivan | 26/02/2022
Em 1967, um representante recém-eleito do Amsterdam City Council [Conselho Municipal de Amsterdã] chamado Luud Schimmelpenninck apresentou uma proposta inovadora à cidade: por que a prefeitura não ajudava a resolver os problemas de congestionamento do tráfego criando uma frota de bicicletas que seriam de uso completamente gratuito? Na época, as ruas da capital holandesa estavam entupidas de carros, com mortes e acidentes frequentes. Não seria melhor, sugeriu Schimmelpenninck, tornar o ciclismo tão barato e fácil que os carros desapareceriam?
Dado que 55 anos depois a Amsterdã de hoje tem a reputação de capital mundial do ciclismo, a resposta para essa proposta — para o que seria o primeiro esquema de bikeshare [compartilhamento de bicicletas] urbano no mundo — talvez lhe surpreenda: os membros do conselho o rejeitaram quase que unanimemente.
As razões dessa rejeição revelam muito sobre o passado radical do bikesharing, uma indústria multibilionária que agora se expande por mais de 3.000 cidades no mundo inteiro. Não foi rejeitada apenas porque o conselho de Amsterdã acreditava que os carros eram o futuro, mas também pela origem da proposta: não partiu de um oficial com um partido tradicional, mas de um grupo de provocadores anarquistas já notórios que pensavam que a dependência dos carros na Holanda representava não apenas políticas ruins, mas o “terror do asfalto da burguesia motorizada.”
O nome do grupo era Provo — vindo da palavra provocativo, ou provocação — e, até 1967, já tinham estrelado manchetes locais há alguns anos. Um grupo misto de beatniks, ativistas antinucleares e jovens da subcultura Nozem holandesa (similar aos greasers estadunidenses ou aos Teddy Boys britânicos), o Provo era um movimento que aspirava trazer mudança ao que reconheciam como uma mistura tóxica de conservadorismo e consumismo que dominava a sociedade holandesa. Sua principal ferramenta para esse objetivo inicialmente não era a política municipal, mas os trotes.
O Provo, a partir de 1965, montava “acontecimentos” públicos semanais no centro de Amsterdã com a intenção de destacar os perigos e absurdos da cultura do consumo. Ações mais antigas incluíam a distribuição de “símbolos de amor” e pintar a letra “K” para câncer (Kanker em holandês) em anúncios publicitários de cigarro. O grupo ganhou notoriedade por jogar bombas de gás no desfile de casamento da futura rainha Beatrix (controverso porque seu noivo alemão fora membro da juventude nazista na adolescência) e espalhar rumores de que deram bloquinhos de açúcar com LSD aos cavalos da carruagem de Beatrix.
Apesar — ou possivelmente por conta — dessa abordagem, o Provo desenvolveu uma afinidade maior com seguidores de dentro da juventude holandesa. Isso também pode ter ocorrido por conta de muitas de suas preocupações terem parecido absurdas na época, apesar de parecerem atuais hoje: queriam desarmar a polícia, ocupar construções vazias para moradia e que os e as jovens tivessem acesso ilimitado e sem julgamentos a métodos contraceptivos.
Idealizado pelo ativista do Provo Schimmelpenninck, o Witte Fietsenplan, ou “Plano da Bicicleta Branca,” também teve início com uma ação. Uma multidão se uniu na rua principal para assistir os ativistas pintarem suas bicicletas de branco. Enquanto a tinta secava, membros do Provo entregaram um panfleto contra os carros: “sacrifícios humanos diários são feitos para essa nova autoridade às quais as pessoas se submetem,” dizia no panfleto, “o carro virou uma autoridade. O sufocante monóxido de carbono é seu incenso. Sua imagem arruinou milhares de ruas e canais.”
O Plano da Bicicleta Branca era algo muito mais paliativo do que os esquemas ciclistas contemporâneos. Ao invés de bicicletas acorrentadas e programas pagos, o Provo apenas deixou as bicicletas no centro de Amsterdã para qualquer um levar e devolver, na esperança de que o sentimento comunitário preveniria roubos. Isso pode parecer loucamente ingênuo agora, mas as ruas de Amsterdã na época já tinham algumas bicicletas abandonadas: ciclistas sem escrúpulos às vezes roubavam uma bicicleta, para então abandoná-la quando chegavam aos seus destinos. As bicicletas brancas apenas regulariam a situação ao prover uma alternativa legal, enquanto a frota em si podia ser criada sem muitos custos altos pela quantidade massiva de bicicletas perdidas que a prefeitura já possuía.
O plano nunca funcionou de verdade, contudo, porque nunca foi essa a intenção. De acordo com Schimmelpenninck, a ideia era simplesmente para ilustrar como ela funcionaria, inicialmente utilizando cerca de 10 bicicletas. No fim, a maioria delas foram levadas, não por ladrões, mas pela polícia, uma vez que era ilegal deixar bicicletas sem corrente.
Em 1966, o Provo decidiu usar uma plataforma institucionalizada, assegurando um único assento nas eleições municipais daquele ano — nada mau para um movimento de juventude em uma era na qual só se podia votar na Holanda a partir dos 23 anos. Concordaram em participar do posto em revezamento entre vários membros. Quando Schimmelpenninck ocupou o posto, no inverno de 1967, propôs um plano mais ambicioso de uma frota de 10.000 bicicletas brancas.
Ele não teve a aprovação do conselho, mas a ousadia da ideia cultivou imaginações. O Provo inspirou movimentos por toda a Europa, e seu plano ciclista inspirou uma música popular psicodélica de 1967 chamada “My White Bicycle,” da banda Tomorrow (que ficara muito famosa em 1975 na Grã-Bretanha quando ganhou um cover da banda escocesa de roque pesado Nazareth). Uma das bicicletas brancas do Provo apareceu no John Lennon and Yoko Ono’s Bed-in For Peace no Hilton de Amsterdã, em 1969. À medida que as décadas foram passando, as ações do Provo entraram na memória de vanguarda, com o grupo de arte pública NVA recriando o lançamento do Plano da Bicicleta Branca nas ruas de Glasgow em 2010.
As bicicletas brancas podem parecer uma nota de rodapé peculiar na história do transporte urbano, mas pode-se traçar uma linha entre a ação contracultural do Provo e a indústria de bikesharing de hoje.
Para começar, as bicicletas brancas nunca realmente acabaram: houve uma frota de 1.800 bicicletas de uso livre no Hoge Veluwe National Park, um dos parques mais populares dos Países Baixos, desde 1974. O experimento do Provo foi também de grande valor ao apontar como um serviço municipal pode funcionar. Ao demonstrar a necessidade de segurança, influenciaram uma segunda geração de programas de bikeshare, que introduziram pontos em que se acessa as bicicletas ao inserir uma moeda ou token. Schimmelpenninck foi consultado no primeiro desses esquemas, que ocorreu em Copenhague em 1995. Quando Amsterdã lançou um sistema mais formal de bikeshare em 1998, usando um cartão de chip ao invés de moedas, o Plano da Bicicleta Branca era novamente o modelo seguido.
Enquanto isso, Schimmelpenninck continuou a promover o compartilhamento de veículos com muita persistência. Falava então de veículos elétricos ao elaborar o Plano do Carro Branco, usando uma pequena amostra de carros elétricos pequenos, parecidos com aqueles de golfe. Extraordinariamente, o esquema foi adiante em 1974, com motoristas que pagavam uma taxa de assinatura para o acesso de 25 veículos disponíveis em quatro (mais adiante cinco) pontos em Amsterdã. Os carros brancos foram eventualmente descontinuados nos anos 1980, mas a premissa sobrevive através de serviços de compartilhamento de carros como ZipCar e Car2Go.
Muitas das questões que afetaram o primeiro Plano da Bicicleta Branca também retornaram às discussões públicas. Chegando décadas antes das tecnologias que dirigem a indústria moderna, como os smartphones e GPS, as bicicletas de guerrilha do Provo ainda são prenúncios do efeito revolucionário trazido pelas bicicletas soltas e pelo scooter-sharing, assim como das preocupações quanto à confusão nas calçadas e do vandalismo que seguiram essas medidas.
Enquanto o experimento social teve vida curta, a crítica gerada à cultura automobilística persistiu. Mortes de pedestres nas rodovias de Amsterdã alcançaram um pico de 3.300 — incluindo mais de 400 crianças — em 1971. Como resposta, ativistas enraivecidos realizaram ações diretas, como bloqueios do trânsito por bicicletas em locais de altos índices de acidentes, para empurrar a cidade rumo à mudança. Esse movimento de massa ajudou a moldar Amsterdã no que é hoje — um dos espaços urbanos com a mais intensa atividade ciclista do mundo. É uma cidade na qual o bikesharing acabou tendo menos impacto do que em qualquer outro lugar porque o número de ciclistas que têm sua própria bicicleta já era notavelmente alto.
Na Amsterdã de hoje, as viagens de bicicleta e a redução do uso de carros são amplamente vistas como um bem inequívoco, até (ou talvez especialmente) entre a “burguesia” cujos hábitos eram os alvos primários do Provo. Vale lembrar que sua ideia inovadora — como tantas outras que entraram no senso comum — fora uma vez desprezada como o trabalho de uma marginalidade radical.
Tradução > Sky
agência de notícias anarquistas-ana
Tarde de outono —
Assustada a coruja
Acorda com o trovão
Eduardo Balduino
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!