Opinião | Anarquismo e polêmicas eleitorais

Por Caminhando | 12/09/2022

Recentemente um conhecido me passou um texto¹ sobre anarquistas defendendo o voto em Lula nas eleições presidenciais deste ano. Até aí nada de muito estranho, não posso mentir que em toda eleição vejo um ou outro elemento que se identifica com o Anarquismo votando. O que me surpreendeu no caso em questão foi a linha argumentativa usada.

As pessoas que escreveram o texto preferiram não se identificarem, alegando “vestirem suas capuchas”, numa nítida referência à tática Black Bloc, onde se apresenta a primeira contradição, o uso do anonimato e homogeneidade estética da tática Black Bloc é para dificultar o processo de identificação por parte das forças repressoras que não admitem ações diretas, exceto uma outra greve desde que esta obedeça os regramentos do Estado. Além de quê a referida tática, como dito, é uma forma de ação direta e uma das mais radicais já surgidas nos Movimentos Sociais nas últimas décadas, o que é totalmente diferente da ação política eleitoral de caráter institucional burguês. Portanto os autores distorcem completamente a aplicabilidade do princípio do anonimato que resguarda as identidades daquelas pessoas dispostas à ações diretas que são o eixo tático do Movimento Libertário ao longo de sua história.

Estes anônimos alegam trazer uma abordagem inovadora, alinhada com a tarefa histórica que o momento nos impõe, que seria o combate ao fascismo e que eleger Lula seria um avanço tático em relação ao inimigo a ser combatido, e que caberia considerarmos as diferenças entre o grau de gravidade do inimigo em questão, a saber, a face mais atualizada do fascismo tropical que tem raízes históricas e bem estabelecidas por aqui. Os autores ainda defendem que qualquer outra forma de agir nos relegaria a um isolamento perigoso dentro do cenário político. Para reforçar seu argumento remetem à Revolução Espanhola e a uma campanha que a CNT (Confederación Nacional del Trabajo) teria puxado em defesa da candidatura da Frente Ampla dos partidos da esquerda institucional, e que este sindicato, de bases anarquistas e maior sindicato do país, teria saído em defesa da República e do direito ao voto.

Além do problema geral do tom desse texto, que denota uma possível superioridade tática e analítica dos autores do texto, há o problema das confusões que o mesmo trás e opera para “legitimar” seus argumentos. No Congresso Extraordinário de Zaragoza, em Maio de 1936, a CNT avaliou que a Frente Ampla teria chances de vitória eleitoral e que as elites burguesas, militares, agrárias e religiosas não aceitariam o resultado e aplicariam um golpe. Nesse cenário seria mais produtivo desencadear um processo revolucionário amplo e efetivo a partir da luta contra um governo golpista, feito pelas elites contra o povo e a legitimidade da escolha destes, o que se mostrou uma leitura muito acertada da CNT. Portanto, ao contrário do que o referido texto alega, nem os anarquistas fizeram campanha pela Frente Ampla (eles simplesmente se abstiveram do engajamento numa campanha pela greve de votos), nem muito menos pegaram em armas pelo direito de votar, mas sim, aproveitaram a desilusão acarretada pela insegurança das “garantias” das instituições burguesas, quando estas não agradam a estes, e executaram uma revolução social que suprimiu o sistema de salários e de exploração, seja política ou econômica.

“No hemos venido al frente a defender una República democrática burguesa. Si fuera para eso no valdría la pena derramar tanta sangre. No valdría la pena porque las democracias burguesas llevan en sí el germen fascista […] La época de las democracias burguesas ha pasado. Estamos en la época del proletariado. Entre el dolor de los caídos vamos forjando un mundo nuevo. Y es grotesco ver las guiñoladas de una sombra de parlamento diciendo tonterías, cuando en los campos de batalla son segadas muchas vidas proletarias […] Los que estamos en el frente, en todos los frentes, aplastaremos el fascismo, pero no consentiremos dar un paso hacia lo que murió el 18 de julio. Cuidado con la retaguardia!!” (AMORÓS, 2021, pág. 128).

Esse trecho do texto “Cuidado con la retaguardia” de Francisco Cueva, publicado em Fragua Social de 11 de outubro de 1936, dá plena noção de quais motivos levaram os anarquistas a pegarem em armas e a defesa do voto com certeza não era um desses. Esse não era um pensamento uniforme dentro da CNT, e já havia alguns anos que duas alas disputavam os rumos da Confederação, os revolucionários e os reformistas, estes últimos tinha em suas fileiras Serafín Aliaga que defendia uma postura “responsável” e que era preciso “por encima de ideas y doctrinas las necessidades del momento, los intereses de la lucha antifascista, las libertades democráticas de nuestro país” (AMORÓS, 2021, pág. 129), percebam que carrega um tom muito similar ao que os autores anônimos dão a sua defesa, o problema é que foi a postura defendida por Aliaga, de vencer primeiro o fascismo para depois fazer a revolução que acarretou na vitória do fascismo e no aniquilamento da revolução.

Um grupo de estudos Anarco-comunista dá uma resposta² a estas pessoas porém acusam os sindicalistas revolucionários e os anarcosindicalistas de terem sido os responsáveis pela linha equivocada da CNT, porém estas duas correntes, respectivamente, produziram os grupos Nosotros e os Amigos de Durruti, as duas colunas Anarquistas (mas nem de longe as únicas) mais bem preparadas e consequentes para com o processo revolucionário. É inegável que os elementos que estavam nos cargos executivos da CNT, independentemente da corrente libertária que dizia responder, degenerou num burocratismo programático que acabou por anular as iniciativas populares apoiadas pelos setores revolucionários da mesma, deixando estes isolados no cenário.

O que nos leva a um ponto importante do texto apelativo à eleição de Lula. Muitas vezes os setores libertários são isolados no cenário político por simplesmente apresentarem as críticas mais coesas e contundentes e daí passam a ser sabotados e implodidos por grupos afeitos às práticas bolcheviques. Porém a tarefa que o momento impõe ao campo libertário é a de superarmos cisões internas, estas muitas vezes fruto de vícios pequeno burgueses de egos, daí a prática de calúnia e mentiras usadas entre organizações, coletivos e, sem dúvidas com muito mais frequência, entre pessoas do movimento. Precisamos superar esse tipo de disputa que gira, no geral, em torno da autopromoção de organizações, coletivos ou mesmo pessoas para alcançarmos e atingirmos um processo organizacional mais orgânico com o povo, para estarmos preparados a apresentarmos respostas eficazes aos problemas sociais de modo a serem executadas pela auto-organização popular, e que consigamos dar consistência política ao avanço do abstencionismo eleitoral tão tradicional no Brasil.

Ainda penso ser pertinente citar Malatesta…

“Nosotros no queremos abatir el fascismo para sustituirlo por algo peor. Y peor que el fascismo sería la consolidación del Estado. Es preciso, por tanto, liquidar el fascismo, pero directamente, sin la ayuda del Estado, de manera que el Estado no sea reforzado, sino más desacreditado y debilitado. Querer suprimir el fascismo por medio del Gobierno, es como combatir el síntoma de una enfermedad agravando las causas que producen la enfermedad misma.” (MALATESTA em “Los Anarquistas”)

Inconsistência não é tomarmos nossa cerveja após um ato. O que é contraditório é sermos opressores com nossas companheiras afetivas, é faltarmos com a verdade para criarmos fatos políticos, é desviarmos recursos coletivos para interesses pessoais, estas são falhas graves para a prática anarquista e só por reivindicamos tal identidade não estamos isento delas, mas cabe a todas as pessoas, não apenas às anarquistas, reavaliarem e buscarem reparar com toda energia os danos causados por algum desses erros cometidos e não recorrermos a argumentos que naturalizam tais falhas como por exemplo “esse é o meu jeito de fazer as coisas”.

Ante tudo exposto aponto que votar nem me parece ser a maior das faltas da prática libertária, mas com certeza não é o avanço teórico, metodológico ou mesmo tático que os autores anônimos apresentaram. Importante o debate, porém precisamos superar determinadas posturas competitivas e também narrativas inconsistentes que têm por finalidade validar argumentos fracos.

Superemos as disputas pequenas entre nossas linhas programáticas e teóricas para nos apresentarmos como uma alternativa efetiva à conciliação de classes da Social Democracia.

[1] https://jacobin.com.br/2022/09/anarquistas-em-defesa-do-voto-em-lula/

[2] https://nucleoancom.wordpress.com/2022/09/08/anarquistas-contra-o-voto-em-qualquer-candidato-nao-vote/

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Nenpuku Sato