O neofascismo encontrou terreno fértil no vácuo ideológico das sociedades pós-industriais e no relativismo democrático através do qual qualquer partido que obtenha representação parlamentar tem o direito de expressar as suas ideias a nível midiático. Oferecem assim um horizonte ideológico à população; um horizonte criminoso e aberrante, mas um horizonte, não obstante. Criam a ilusão de proporcionar transcendência ao cidadão médio descrente e cético, secretamente desejoso de “emoções fortes”, inscrito na rotina diária de trabalho e na contemplação acrítica a que os meios de comunicação social o obrigam.
O neofascismo é um sintoma negativo do esgotamento supremo da civilização democrática ocidental. As vítimas do neofascismo são facilmente identificáveis, estigmatizadas e indefesas. As pessoas afundadas em vidas vulgares e medíocres satisfazem a sua insipidez ao estabelecerem-se como superiores a outros grupos sociais. Esta ilusão de superioridade é, para eles, o revulsivo de que necessitam. O sentimento de pertencer a uma comunidade escolhida pelo destino para realizar grandes feitos em nome de deus, pátria e família, isenta-os de assumirem responsabilidades ou critérios individuais. “Make America Great Again” ou “Somos as pessoas normais”. “Somos um partido de extrema necessidade” (Santiago Abascal ). O medo de ser diferente, de carregar o peso da própria singularidade, empurra-os para a mente da colmeia quando, paradoxalmente, presumem ser ferozmente individualistas. Esta aparência individualista, implicitamente imersa nos jogos de capital-estado e poder, atrai para o campo neofascista certo ambientalismo, feminismo e parte do movimento LGTBI. É o resultado, num mundo organizado através de hierarquias, da luta para ocupar posições hierárquicas: a esfera do autoritarismo diversifica-se desta forma sem perder um ápice da sua natureza opressiva. Não importa – de fato, faz parte da sua estratégia – quão louco pode ser o discurso neofascista. Quanto mais estranhas e escandalosas forem as suas declarações, tanto mais repercussões terão nas redes e nos meios de comunicação social. O objetivo é tomar o centro do palco e monopolizar o discurso político e social.
O neofascismo é a descendência do que os neoliberais proclamaram como o fim das ideologias quando o sistema soviético entrou em colapso. O fim das ideologias foi na realidade o triunfo do capitalismo e o declínio do socialismo. A piada macabra era que o que era referido como socialismo não era na realidade mais do que regimes autoritários que tinham como bandeira o marxismo-leninismo ou o maoísmo – o que significa que é duvidoso que fossem alternativas libertadoras ao capitalismo. Este colapso da esquerda afetou a socialdemocracia, o comunismo de estado e o anarquismo, que na sua formulação tradicional do comunismo libertário não se apercebeu que o substantivo devorava o adjetivo: qualquer coisa que cheirasse ou fosse identificada ou chamada socialismo era totalmente descartada e desacreditada tanto a nível da elite intelectual como a nível popular. Este estado de prostração durou até à emergência do Movimento de Resistência Global que, apesar das suas dissensões internas causadas por ser uma amálgama de correntes ideológicas diferentes e por vezes opostas, conseguiu uma grande presença pública e apoio popular e serviu de base para atacar o capitalismo com um discurso renovado. Tudo isto serviu para levar ao poder partidos de esquerda e indigenistas, especialmente na América Latina, e com o poder veio o que sempre acontece quando os partidos políticos assumem um discurso que é em princípio emancipatório: a dissolução da base ativista, quer através da cooptação, quer através da marginalização, uma vez que esta tenha sido utilizada como um terreno fértil para os eleitores. Com o desaparecimento público dos MRG, surgiu um segundo momento de vazio ideológico. Tanto a esquerda como a direita ou são transformadas em ditaduras ou não têm outra escolha senão adaptar-se ao velho dualismo democrático de períodos de oposição – períodos de governo, sendo ambos autoritários quando no governo e liberais quando na oposição.
Depois, a seguir, fecha-se no tempo, a Primavera Árabe, 15-M, os coletes amarelos na França, o vigoroso movimento anarquista grego… rebentam mais ou menos simultaneamente como resposta a uma profunda crise capitalista da qual não saímos, nem, presumivelmente, alguma vez iremos sair. Mais uma vez, toda esta agitação foi canalizada através de partidos políticos e eleições gerais que, a longo prazo, geram mais frustração. Mas desta vez essa frustração não será o estímulo para os movimentos sociais emancipatórios, mas o neofascismo, incluindo o neofascismo islâmico, será o meio de dirigir e controlar toda essa raiva coletiva. O exercício de expropriação terminológica levado a cabo pelo movimento neofascista é significativo. Em primeiro lugar, afirma ser antiglobalização, tal como os nazis em tempos passados afirmaram ser anticapitalistas (Krupp, Thyseen, Bayern, Volkswagen e companhia ainda devem estar a rir). Não importa que se trate de uma falácia facilmente verificável: Trump, Abascal, Orban ou Biden vão opor-se à expansão planetária dos GAFA? O que importa é como os termos e conceitos utilizados e popularizados pela esquerda radical são subtraídos e assimilados pelo neofascismo. Como soa Giorgia Meloni quando diz “sim à soberania do povo, não à burocracia de Bruxelas”?
No estado espanhol VOX declara-se um partido de extrema necessidade, roubando um termo que foi originalmente difundido pelo SOC de Marinaleda e a sua figura pública mais proeminente, o Presidente da Câmara Gordillo, que respondeu desta forma quando acusado de ser de extrema-esquerda. Exemplos como este denotam um estudo das correntes sociológicas e um planeamento muito cuidadoso dos contextos culturais predominantes num dado período histórico, e creio que embora os neofascistas tenham uma cabeça cheia de detritos, não é menos verdade que se estão a aplicar inteligentemente à sua tarefa devastadora.
Isto não pode ser contrariado pelo aborrecido e cansativo politicamente correto da esquerda institucional – enfatizar uma responsabilidade individual fictícia igual num mundo dividido em classes sociais e hierarquicamente organizado é equiparar o prisioneiro ao juiz de vigilância penitenciária ou o condutor do camião ao gestor da Repsol. Por outro lado, a esquerda e os meios de comunicação social propagam o discurso neofascista quando falam de imigração ilegal, justificando assim o racismo para-político. Como sempre, os partidos e o autoritarismo não serão a forma de combater outros partidos autoritários. A questão não é se a imigração é legal ou ilegal, a questão é que todas as pessoas têm o direito de viajar e residir em qualquer parte do mundo que lhes agrade. As fronteiras só existem nos mapas, mesmo que infelizmente colonizem muitas mentes.
Aciago Bill
Fonte: https://www.portaloaca.com/articulos/politica/algunas-razones-de-la-sinrazon/
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
estrela extinta
milhões de anos-luz
para ser vista
Alexandre Brito
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!