O escritor Juan Manuel de Prada recupera em ‘El derecho a soñar’ a figura da jornalista, feminista, lésbica, repórter fotográfica na Guerra Civil e campeã de lançamento de dardo Anna María Martínez Sagi.
Por Emma Pons Valls | 29/10/2022
A poeta, jornalista e feminista pioneira Anna Maria Martínez Sagi (1907-2000) dedicou a recompilação de poesias que havia escrito no exílio à sua filha Patricia, à qual legava “o mais importante dos direitos humanos, o direito que ninguém pode nos tirar nunca: o direito de sonhar”. O escritor Juan Manuel de Prada toma este fio e publica agora “El derecho a soñar. Vida y obra de Ana María Martínez Sagi” (Espasa), uma extensa biografia desta mulher fascinante, caída no esquecimento, a quem uma vida “dura” e com “tensões constantes” o levou a condensar em Patricia um anseio de maternidade que realmente nunca viu satisfeito.
Em um encontro com o Público em um hotel das Ramblas de Barcelona, o escritor reconhece que o episódio da filha é um dos mais “tremendos” aos quais teve que enfrentar na ingente investigação que fez da figura de Sagi. Durante cerca de 20 anos, De Prada se dedicou a desenterrar a vida e a obra desta escritora multifacetária, entrevistando-se várias vezes com ela antes de sua morte, em 2000, com pessoas de seu entorno e também consultando numerosos arquivos, registros e documentos. “É uma história trágica de sonhos quebrados, ilusões pisadas, sonhos que não chegaram a tornar-se realidade”, afirma.
Anna Maria Martínez Sagi foi poeta, jornalista, a única repórter fotográfica espanhola que fotografou a Guerra Civil desde a frente, pioneira no esporte feminino com a criação do “Club Femení i d’Esports en Barcelona”, campeã de arremesso de dardo da Espanha e a primeira mulher diretora do “Futbol Club Barcelona”, entre outros grandes êxitos cultivados antes de 1939. Mas depois da guerra, as coisas mudaram. No exílio “começa sua segunda vida, igualmente apaixonante, mas a mais desconhecida, porque é uma vida no anonimato”, diz De Prada.
Da alta burguesia barcelonesa ao anarquismo
Sagi havia nascido em uma família burguesa barcelonesa, muito conservadora, com a qual depois de anos de relação tumultuosa com sua mãe rompeu de forma total. Isto já a situou em um terreno de ninguém que pouco a pouco a iria empurrando para o anonimato no qual viveria nas últimas décadas de sua vida, reclusa por decisão própria em Moià (comarca barcelonesa do Moianès). “Era uma mulher sem papas na língua, beligerante”, explica o escritor. Antes da guerra militou em ambientes catalanistas e se vinculou a Esquerda Republicana (ERC), e em 1936 se voltou para o anarquismo.
É só uma das contradições internas que enfrentou e que para De Prada mostra como sempre foi uma “mulher fora de lugar” imersa em uma “tensão constante” para si mesma e o mundo. Educada em castelhano e francês porque sua família considerava o catalão uma língua “de camponeses”, os desafiou escrevendo artigos jornalísticos em catalão, ainda que com a obra poética não o conseguiu e isso a situou em um terreno inóspito entre os círculos literários catalanistas. Terminada a guerra, se exilou em Paris, onde viveria sob a ocupação nazi e colaboraria com o movimento da Resistência.
Iniciada desde muito jovem no esporte por recomendação médica, praticou disciplinas como o tênis, a natação ou o esqui, e se converteu em campeã de lançamento de dardos da Espanha. Em 1928 participou na criação do “Club Femení i d’Esports”, pioneiro no Estado, que promovia o acesso ao esporte a jovens da classe obreira. E em 1934 se converteria na primeira mulher na Europa a fazer parte da direção de uma equipe de futebol, o FC Barcelona, apesar de ser uma detratora do futebol feminino. “O considera um esporte muito violento e o rechaça porque defende que a mulher não deve imitar o homem, tampouco no esporte”, diz o biógrafo.
De meados dos anos 20 até final dos anos 30 foi seu momento de esplendor. Sagi exerceu como jornalista com colaborações em publicações como “Las noticias”, “La Rambla”, “Crónica”, “La Noche” e “Nuevo Mundo” até o final da Guerra Civil. Transladada à Frente de Aragão, também exerceu de repórter fotográfica, publicando imagens em “La Vanguardia”. O mesmo que se encontrava fazendo Gerda Taro, a célebre fotógrafa que junto a seu marido Endre Ernö Friedmann popularizou o pseudônimo de Robert Capa. Sagi e Taro não coincidiram na mesma frente, mas a catalã escreveu sobre a morte de sua companheira de profissão, esmagada acidentalmente por um tanque republicano.
Em sua vertente criativa, Sagi se destacou como poeta com uma obra prolífica, que incluía as recompilações “Caminos” (1929), “Inquietud” (1931), “Canciones de la isla” (1932), “País de la ausencia” (1938), e “Laberinto de presencias” (1969) –auto publicado-, entre outros. A escritora não encontrou editor ao regressar do exílio e legaria a obra inédita ao próprio biógrafo, que a compilou em “La voz sola” (2019).
Uma vida pessoal agitada e com frustrações
Sua vida pessoal não esteve isenta de uns “fracassos e tragédias” que, mais além das conquistas, também a marcaram e a levaram, em suas últimas décadas de vida, a fechar-se em si mesma em um exílio voluntário em Moià. “Decide sepultar-se em vida, levar uma vida de anonimato absoluto”, explica De Prada. Sem nenhum vínculo com a localidade da comarca barcelonesa de Moianès, a escolheu pelas bondades de seu clima, que havia lido em uma reportagem, e se mudou em 1978 ou 1979. Durante os anos no exílio, Sagi viveu principalmente nos Estados Unidos, onde exerceu de professora de idiomas na Universidade de Illinois até que se aposentou. Em seu regresso, viveu em Moià até que, poucos meses antes de sua morte em 2000, se transladou a uma residência no município próximo de Santpedor.
Quando o biógrafo a conheceu, uns anos antes de sua morte, Sagi era “uma mulher amarga, muito golpeada pela vida”. Dois dos fatos que mais lhe impactaram foram seu grande amor pela também escritora catalã Elisabeth Mulder, de pai holandês, com quem teve uma relação “embora breve, agitada, clandestina, provavelmente assimétrica”; e também a frustração em seu anseio jamais realizado de ser mãe.
Com Mulder, que era viúva, compartilhou uns dias em 1932 no município maiorquino de Alcúdia, que posteriormente guardaria na lembrança e na poesia. O demonstra um poema incluído na recompilação “La voz sola”, escrito 40 anos depois e que não veria publicado em vida:
“Me acuerdo sí me acuerdo / de la noche y del mar. / En mi boca perdura / terco sabor de sal. / Me acuerdo sí me acuerdo / de la noche y del mar. / De los mástiles quietos. […] / Era yo caracola / arca de castidad / madrépora dormida / en un cuenco de paz. […] / Ceñida de albas frías / me supiste apresar. / Recóndita pureza. / Hiriente intensidad. / Milagro más inédito / no se repetirá. […] / ¡Me acuerdo! / ¿Cómo quieres / que lo olvide jamás? / Me quedé allá en la isla / en la noche y el mar”.
“Esta relação a afetou tanto que a partir desse momento dedica grande parte de sua obra poética a evocar obsessivamente esse amor perdido”, assinala De Prada. Precisamente este é um dos poemas incluídos na obra não publicada que Sagi legou ao biógrafo sob a promessa de que não a publicaria até 20 anos depois de sua morte. O motivo era evitar ofender a familiares de Mulder ou outros conhecidos com poemas que podiam considerar-se explícitos. De Prada cumpriu, e com “La voz sola” (2019), começou a reparar o desconhecimento no qual havia caído a autora, que não encontrou editor ao regressar do exílio.
Sagi teve outras relações com mulheres como Marie-Thérèse Eyquem, que chegou a ser secretaria geral do Partido Socialista francês. Também com homens, talvez buscando ter o filho que tanto ansiava e que nunca conseguiu, aventura o escritor. Isto a fez inventar uma filha, Patricia, morta de meningite aos sete ou oito anos e que a investigação de De Prada desmentiu. “Essa filha a inventou. Era filha da dor e da frustração de não ter podido ser mãe”, assinala.
Sagi foi uma mulher excepcional para seus tempos, a quem a Guerra Civil truncou uma carreira literária, desportiva e jornalística de êxito. O difícil encaixe na sociedade da época, em parte por seu feminismo e lesbianismo, e o exílio obrigado acabou relegando-a a uma vida no anonimato. Nos últimos anos se recuperou ao menos parcialmente do esquecimento, mas demasiado tarde para impedir que terminasse seus dias na comarca barcelonesa de Bages imersa em uma solidão quase absoluta.
agência de notícias anarquistas-ana
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