“De Abya Yala ao Curdistão, os povos organizam a revolução!”

Comitê de Solidariedade Entre os Povos/Internacionalistas de Abya Yala

O título destas pequenas palavras que seguem foi uma das consignas cantadas coletivamente por internacionalistas na Grande Marcha pela Liberdade de Abdullah Öcalan, realizada entre os dias 5 e 10 de fevereiro de 2023. Öcalan, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), está encarcerado em isolamento na prisão turca de Imrali desde 1999, com anuência das potências imperialistas, em razão de uma conspiração internacional para sua captura. Não imaginavam, porém, que sua prisão não deteria o movimento pela liberdade dos povos no Curdistão, que por sua vez seria fonte de mobilizações coletivas, internacionalistas e revolucionárias ao redor do mundo – pela liberdade de Öcalan e libertação dos povos, com o paradigma da modernidade democrática [1].

Provenientes de distintos territórios ocupados por Estados coloniais – Bolívia, Equador, Uruguai, Brasil, Colômbia, Argentina e México -, as delegações de Abya Yala na marcha abriram suas mãos reciprocamente, como o jopói dos povos Guarani, o Teko Joja (modo de ser baseado na reciprocidade) dos Kaiowá, o Ayni para os Aymara. Mãos abertas para levantar a bandeira do PKK, da Confederação dos Povos do Curdistão (KCK) e pela liberdade de Rêber Apo [2]. Ao mesmo tempo, por meio de vínculos dialógicos e dialéticos, mãos abertas para semear brotos de wiphala, dos Ayllus e dos Tekoha, dos Lof em Wallmapu ao Cauca, dos territórios autônomos Awajún na floresta amazônica, onde, desde lo chiquito, os povos libertam territórios e vidas da exploração capitalista e do extrativismo em Abya Yala.

A grande marcha de seis dias também foi uma mobilização contra o extrativismo. De certa forma, a Revolução no Curdistão é um farol, um caminho brilhante para derrubar definitivamente a modernidade capitalista – como nos ensinou Şehîd Lêgerin [3] – e lutar pela liberdade de Rêber Apo é o que mantém acesa a chama. Este encontro de rebeldias e resistências pela vida tornou possível reafirmar as convergências e sentidos comuns de nossa caminhada. Literalmente, como na marcha, onde recordamos ao Şehîd Victor Jara: “Caminando, caminando / Voy buscando libertad / Ojalá encuentre caminos / Para seguir caminando”. Um dos pontos chave, por conseguinte, foi o entendimento dos laços agregados ao tear multicolorido que atravessa aos internacionalistas do sul, das periferias, geografias e calendários que resistem e rasgam fissuras em contextos de guerra – seja a terceira ou a quarta guerra mundial -, tornando possível que algumas cabeças da hidra capitalista sejam cortadas. Falamos das resistências Aymara e Quechua nos Andes, das recuperações territoriais Guarani e Kaiowá e seus mártires, da libertação nacional Mapuche, das lutas camponesas, das lutas e territórios autônomos Zapatistas em Chiapas e nossos presos políticos, como um espelho das rebeldias no Curdistão.

Ademais, a união das lutas anticoloniais – ombro a ombro com companheiros da África, em especial, internacionalistas do Quênia, onde Öcalan foi capturado em 1999 – demonstra que a solidariedade entre os povos é não só possível, como também necessária para coordenar as insurgências e combater o esquecimento. E falar de esquecimento é falar de memória. Essa última parte é indissociável da revolução curda, materializada na imagem das e dos Şehîd que habitam as paredes, corações e terras onde hoje se constroem e se reconstroem espaço-tempos. Desde a conferência em Genebra, onde começou a marcha, até a cidade de Freiburg, onde foi concluída, depois de andarmos 300 quilômetros, os nomes dos mártires foram entoados em conjunto dos símbolos que defenderam com suas vidas, comemorados por imigrantes e companheiros diaspóricos em diferentes ruas, montanhas, colinas, comércios e cidades, onde se escutava Cerxa Şoreşê [4] como um hino de todos os povos.

Particularmente, esta edição da grande marcha se posicionou não só em defesa da revolução e da liberdade de Öcalan: foi preciso se posicionar em memória dos mártires caídos no terremoto que sacudiu o norte e o oeste do Curdistão no dia 6 de fevereiro, mesmo dia que iniciamos a marcha. Em cada minuto de silêncio que inaugurava as atividades e conferências diárias, também recordamos com homenagens as mais de 41 mil vítimas que se contabilizam até o momento, número de pessoas mortas que segue aumentando a cada dia.

Desde a primeira komel [5] até a última, as famílias curdas na diáspora que se encontravam de luto, acompanhavam os acontecimentos por distintos meios de comunicação e sentiam a catástrofe em cada uma de suas histórias, muitas das quais relatavam familiares e amigos mortos ou desaparecidos. No último dia, mais de mil pessoas circularam na komel de Freiburg para homenagear as vítimas e viver coletivamente o processo de luto. Por essa razão, a grande manifestação programa para Strasburgo, na França, não ocorreu. O último dia de marcha consistiu em uma grande manifestação em Freiburg onde a juventude revolucionária curda se uniu à marcha internacionalista com grande entusiasmo, primeiramente partilhando a sopa na manhã fria, em seguida os passos certeiros em um único punho levantado frente ao cerco repressivo da polícia alemã.

Nossas danças também devolveram espaço para a dor e a dor também se converteu em revolta. Em meio a catástrofe, o Estado fascista turco tenta avançar em seu projeto colonial de extermínio, em aliança com as forças interimperialistas; nem sequer o terremoto pode deter esse objetivo nefasto – além dos escombros dos terremotos, o povo curdo enfrenta ainda os bombardeios de drones turcos recentemente sobre distintas áreas de Rojava, assim como ataques químicos com bombas de fósforo nas montanhas de Qandil contra posições guerrilheiras do PKK. A despeito deste contexto, ainda assim, só o povo salva o povo – pedra por pedra retirada dos escombros pela população local, barricada por barricada erguida para defender os territórios liberados. Nos municípios autônomos revolucionários curdos, foram os grupos de solidariedade de diferentes povos e comunas de mulheres – com a força da Jineolojî [6] que recuperou aos povos ao longo da guerra e das lutas pela libertação de Rojava – que se mobilizaram para arrecadar alimentos, água, apoiar as famílias e reconstruir as cidades. Enquanto isso, meio ao processo eleitoral na Turquia, Erdogan e sua ditadura está bloqueando o acesso de ajuda humanitária na região, agudizando as ameaças de invasão contra Rojava e seguindo seu papel como parte da OTAN e dos conflitos provocados pelos de cima para o controle das forças vitais e áreas de influência geopolítica, com o objetivo da apropriação de terras para a acumulação capitalista.

Apesar destas condições, dia após dia as famílias curdas nos receberam em suas casas com grande hospitalidade e afeto, compartilhando o chá preto, o pão, o iogurte e o mel Assim expressou um companheiro do México em suas sensíveis contribuições sobre a grande marcha [7]: “sustentar estas práticas culturais fora de seu território é uma característica que as identifica como parte de uma história coletiva”. Nessa mesma história, realçamos que também a compomos como internacionalistas: aprendemos com seu acolhimento, com sua inesgotável esperança e confiança inquebrantáveis na revolução, cujas transformações reais desde as bases de aplicação do paradigma do confederalismo democrático se fazem sentir ao redor de diferentes oceanos. Destacamos, em uma das famílias que abriu gentilmente suas portas para nos receber, o gesto de um companheiro curdo que havia sido preso por 10 anos pelo Estado turco “apenas por ser curdo” e, durante sua prisão, leu a obra de Paulo Freire, “A Pedagogia do Oprimido”, cuja foto do livro traduzido ao Turco foi partilhada entre sorrisos. Nem a prisão do companheiro e, em seguida, nem a proibição da exposição das bandeiras do movimento ou a proibição de falar o nome do PKK nas ruas de Freiburg foram suficientes para impedir que as lutas se fizessem irmãs até Abya Yala, tornando possível nos reconhecermos como parte da mesma luta, uma história compartilhada pela ação de desmascarar os deuses e os reis, pelo fato de não sucumbirmos a impérios rapinadores e insistirmos em seguir vivendo.

Nosso milho nas terras baixas de Abya Yala e as batatas coloridas nos Andes são o primeiro broto de trigo em Rojava depois de sua libertação. As oliveiras em seus campos, terra de montanhas, é o arborescer de um cedro sagrado em terras Guarani. Depois dos tremores da Mãe Terra neste terremoto, o próximo tremor será o som do mundo colonial desabando, sob a consigna do “Jin, Jîyan, Azadî” [8] e as raízes inamovíveis do apoio mútuo. Depois da grande marcha internacionalista, regressamos a nossos territórios com a força de um povo que, apesar do luto, não claudica e não se rende, e nos convida a abraçar outros mundos possíveis com a bandeira vermelha, amarela e verde com sua estrela guia. Berxwedan Jiyane: a resistência é vida.

Notas:

[1] Para ler sobre o Confederalismo Democrático, acesse: https://ocalanbooks.com/downloads/PT-BR-confederalismo_democratico_2016.pdf.

[2] Outra denominação para Abdullah Öcalan.

[3] Şehîd significa “mártir”, em Kurmanjî, um dos dialetos da língua curda. Şehîd Lêgerin foi uma mártir proveniente da Argentina, Alina Sánchez, mulher revolucionária que morreu em um acidente de carro em meio aos trabalhos internacionalistas que realizava em Rojava. Seu nome, Legêrin, significa “busca por liberdade”. Mais informações: https://www.revistalegerin.com.

[4] Música popular curda, cujo título pode ser traduzido como “a roda da revolução”.

[5] Centros políticos, culturais e comunitários curdos espalhados pela Europa.

[6] Ciência revolucionária história das mulheres, conjunto político, prático e teórico como base ideológica para emancipação das mulheres do patriarcado e do capitalismo.

[7] Colin, A. (2022). El movimento kurdo y la larga marcha por lalibertad de Abdullah Öcalan. Kurdistán América Latina. Disponível em: https://www.kurdistanamericalatina.org/el-movimiento-kurdo-y-la-larga-marcha-por-la-libertad-de-abdullah-ocalan/

[8] “Mulher, Vida, Liberdade”, uma das bandeiras do movimento revolucionário curdo através da revolução das mulheres.

agência de notícias anarquistas-ana

A ponte é um pássaro
de certeiro vôo: sua sombra
perdura na lembrança.

Thiago de Mello