Escravidão nas vinícolas gaúchas: as desigualdades de classe, raça e região na superexploração do trabalho e a tarefa do sindicalismo revolucionário

No dia 23 de fevereiro de 2023, uma operação policial resgatou 207 pessoas trabalhando em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra do Rio Grande do Sul.

Esses trabalhadores escravizados eram, na sua quase totalidade, provenientes da Bahia, e operavam a safra da uva para as empresas Vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton.

A Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA foi a empresa terceirizada que aliciou os operários baianos para trabalharem nas referidas vinícolas.

Racismo e superexploração na divisão regional do trabalho

O fato das vinícolas localizarem-se no Rio Grande do Sul, e os seus 207 trabalhadores escravizados serem, na sua quase totalidade, oriundos da Bahia, são dados da realidade que expressam como persiste a divisão regional e racial do trabalho no Brasil.

Nela, os proprietários dos meios de produção são da elite branca do sul-sudeste e a força de trabalho é do nordeste. Esta é uma região majoritariamente formada por pardos e negros, e que, ao lado do centro-oeste, possui os maiores índices de concentração fundiária do país.

Essa divisão racial e regionalmente orientada do trabalho foi historicamente produzida durante o processo, dirigido pelo Estado, de conversão das regiões sul e, principalmente, sudeste em polos industriais, a partir do declínio do café nos anos 1920.

Ao mesmo tempo, o nordeste foi organizado pelo complexo estatal-capitalista como reserva de força de trabalho barata. De modo que a industrialização das regiões sul-sudeste e a latifundiarização do nordeste foram funcionais uma à outra e formaram a atual divisão regional do trabalho.

O reduzido acesso à terra por parte do campesinato nordestino, o obrigou à migração. Isso o condicionou a venda da sua força coletiva de trabalho a preço baixo para a burguesia sul-sudestina.

Dessa forma, se formou historicamente no Brasil uma massa de trabalhadores que teve as suas origens regional e racial utilizadas pelos patrões para aumentar a exploração do trabalho.

Assim, a desigualdade regional, atuante na divisão do trabalho, resulta da centralização da atividade produtiva no sul-sudeste e da latifundiarização do nordeste.

Esta divisão regional, se combina com a desigualdade racial, inclusive, sendo esta funcional àquela, produzindo a superexploração e ainda que exista legislações que proibam o trabalho escravo, o trabalho escravo continua a existir no Brasil mesmo com a presença de legislação que o proíba.

Nesse sentido, o fato de existir fiscalização do trabalho não impede que ocorram casos de trabalho escravo. Isso porque a lei burguesa está sempre um passo atrás da própria realidade.

O trabalho agrícola como historicamente superexplorado

Os trabalhadores das vinícolas gaúchas atuavam na carga, descarga e na colheita de uvas. Eram, assim, trabalhadores manuais. Eles denunciaram que foram vítimas de ameaças e maus tratos. Isso incluiu o uso de choques elétricos, spray de pimenta e cassetetes.

O fato do trabalho análogo à escravidão ter ocorrido no setor agrícola e contado com a violência no controle do processo de produção, expressa como as relações de trabalho no campo são passíveis de funcionarem por meio da 1) superexploração da força coletiva dos trabalhadores, acompanhada pela 2) exclusão de direitos trabalhistas e sociais básicos. No trabalho cativo moderno, a superexploração e a exclusão se retroalimentam.

O campo é espaço privilegiado pela classe dominante interna para formas de superexploração do trabalho, justamente por ser, historicamente, mais impermeável ao cumprimento do lado social da legislação trabalhista do que o meio urbano.

Para ficarmos apenas nos marcos jurídicos do debate, um marco muito limitado, mas bastante ilustrativo, lembremos que o ditador Vargas promulgou a Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943, mas a equiparação de direitos entre trabalhadores urbanos e rurais ocorreu apenas em 1988, isto é, após 45 anos, após a ditadura militar.

O caso das vinícolas gaúchas, expressa que mesmo em 2023, esta legislação ainda tem dificuldade de abarcar o operariado agrícola racializado e regionalizado do Brasil.

A terceirização do trabalho como estratégia de acumulação e blindagem jurídica das vinícolas

O Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG), que tem como associadas as empresas envolvidas no caso, escreveu uma nota desresponsabilizando as empresas contratantes e culpabilizando a empresa terceirizada, prestadora de serviços.

Na sua nota também há a culpabilização do Auxílio Brasil (programa social destinado a pessoas de baixa renda) como responsável pela escassez de mão de obra na região, afirmando que “há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.

Para além do ódio aos mais pobres, duas coisas se depreendem da nota do CIC-BG.

A primeira é que a terceirização é uma estratégia das vinícolas para lucrarem com a produtividade do trabalho análogo à escravidão ao mesmo tempo, em que se blindam juridicamente de serem acusadas de usar trabalho escravo.

Nesse sentido, a terceirização permite aos proprietários das vinícolas ficarem com o bônus (extração do mais-valor do trabalho) e se desresponsabilizar pelo ônus (recebimento de multas e enquadramento na legislação trabalhista).

É uma estratégia em que a vinícola ganha economicamente e se blinda juridicamente da ilegalidade do seu próprio ganho econômico. E ainda pode fingir desconhecer como o trabalho escravo atua na cadeia produtiva do vinho.

A segunda coisa que se depreende do discurso burguês é que ao culpar o Auxílio Brasil, a entidade de classe da burguesia gaúcha expressa como qualquer reconhecimento de direito social aos trabalhadores é percebido como ameaça aos seus lucros.

Isso ocorre, justamente, porque a manutenção desses lucros dependem da constante situação de vulnerabilidade social dos trabalhadores, que sem o mínimo para garantir uma existência digna podem, assim, se submeter aos trabalhos mais precários ofertados pelos senhores das vinícolas. Para a burguesia, o povo não deve ter dignidade no trabalho, mas apenas garantir os lucros das elites.

A deterioração ou a extinção da legislação social são entendidas pela burguesia do vinho como algo que beneficia os seus lucros. A situação ideal para eles, enquanto classe, seria um trabalho desregulamentado. O que foi expresso no apoio que deram a reforma trabalhista de Temer e que massacram nosso povo desde então.

A tarefa dos anarquistas: interiorizar e ruralizar o sindicalismo revolucionário

No atual momento, os trabalhadores racializados e regionalizados, como os da cadeia produtiva do vinho, dependem de ações pontuais do Estado para fiscalizar formas de trabalho análogas à escravidão.

No entanto, a auto-organização dos trabalhadores têm mais condições de combater esse tipo de superexploração do que as ações débeis que o Estado vem demonstrando.

Isso porque a superextração de mais-valia ocorre em frações mais vulneráveis do proletariado. E, quase sempre, onde essa fração está, o Estado não opera ou opera ocasionalmente.

Nesse sentido, a expansão do sindicalismo revolucionário para os trabalhadores das vinícolas gaúchas pode ser a forma mais eficaz de denunciar, combater e eliminar as formas de trabalho escravo nesse setor.

É tarefa dos anarquistas trabalharem no médio prazo para criar as condições viáveis de interiorização e ruralização do sindicalismo revolucionário no Brasil.

Para isso, o primeiro passo é fazer agitação e propaganda visando a organização de núcleos entre trabalhadores superexplorados, regionalizados e racializados como os operários baianos das vinícolas neoescravistas gaúchas.

LUTAR PARA ORGANIZAR, ORGANIZAR PARA LUTAR!

CONSTRUIR A AUTO-ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES AGRÍCOLAS!

RURALIZAR O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO!

https://uniaoanarquista.wordpress.com

agência de notícias anarquistas-ana

sob o último sol,
ave beija a face do lago;
o espelho trêmulo se arrepia.

Alaor Chaves