[Espanha-Uruguai] “É possível que muitas traduções anarquistas tenham sido feitas por mulheres”

Por Tania Alonso | 15/06/2023

Lucía Campanella, pesquisadora da UOC no Laboratório de Estudos Literários Globais (GlobaLS).

Os periódicos anarquistas desempenharam um papel fundamental na disseminação desse movimento social entre 1890 e 1920, quando o anarquismo estava em seu auge. Por se tratar de um movimento global, os textos originais nem sempre eram escritos no idioma da publicação e precisavam ser traduzidos. Cem anos depois desses tempos turbulentos, a pesquisadora uruguaia Lucía Campanella realizou uma revisão da tradução literária publicada na imprensa anarquista da época.

Com o projeto “The Anarchist Translation Flows and World Literature Project” (ARGOT), Campanella retorna ao Laboratório de Estudos Literários Globais (GlobaLS) – vinculado ao Instituto Interdisciplinar da Internet (IN3) e ao Departamento de Artes e Humanidades da Universitat Oberta de Catalunya (UOC) – onde foi pesquisadora em 2021, graças a uma bolsa de pós-doutorado Marie Skłodowska-Curie.

Lucía Campanella começou como professora de literatura no ensino médio e passou a estudar literatura na Universidad de la República, no Uruguai. Ela fez seu doutorado em cotutela entre a França e a Itália, no âmbito de uma bolsa de estudos Erasmus Mundus. Especializou-se em Literatura Comparada, particularmente na relação França-Rio de la Plata. É membro do grupo História da Tradução no Uruguai, que realiza o projeto de P&D CSIC (Udelar) “150 anos de tradução literária no Uruguai”.

Por que a anarquia?

Nos últimos dez ou quinze anos, um campo conhecido em inglês como anarchist studies (estudos anarquistas) vem se desenvolvendo. Em consonância com esse campo, alguns colegas de minha universidade têm se interessado por jornais anarquistas e práticas educacionais anarquistas. Paralelamente, cheguei a esse movimento por meio de um autor que estudei para minha tese de doutorado, Octave Mirbeau, um escritor francês do século XIX que era muito próximo de algumas correntes do anarquismo. Mirbeau escreveu um romance de que gosto muito chamado Diário de uma Camareira, no qual há uma camareira que parece compartilhar ideias anarquistas, muito relevantes para a situação de dominação em que ela se encontra. Acontece que Mirbeau também era um dos autores favoritos da imprensa anarquista no início dos anos 1900 e vi que na imprensa anarquista do Rio da Prata havia muitas traduções da literatura internacional, não apenas de Mirbeau, mas de muitos outros autores, não apenas anarquistas.

Qual é o objetivo do projeto ARGOT?

Expandir e dar um toque especial ao trabalho que eu já estava fazendo, de forma muito artesanal, com a imprensa anarquista de Montevidéu e Buenos Aires. Queremos estudar outras cidades com características semelhantes, que também tenham um porto e que tenham recebido ou enviado migrações importantes no período que me interessa, que é entre 1890 e 1910. Estendemos nossa pesquisa ao Rio de Janeiro, Havana, Nova York, Lisboa e Barcelona. Para cobrir todo esse período de tempo e todas essas cidades, vamos trabalhar com ferramentas computacionais que nos permitirão processar essa enorme quantidade de dados. O resultado final da pesquisa será dois bancos de dados: um sobre mediadores e tradutores e outro banco de dados de textos traduzidos.

Quais autores e idiomas são proeminentes no anarquismo?

Havia uma corrente principal, escrita principalmente em francês, mas também uma periférica, em idiomas minoritários de difícil tradução, como o holandês ou o norueguês. Esse último idioma, por exemplo, é o idioma de Henrik Ibsen, que era uma estrela da imprensa anarquista na época. As traduções provavelmente não eram diretas do idioma original para o idioma de destino, mas passavam por traduções intermediárias para o francês ou outros idiomas.

Por que entre 1890 e 1910?

É um período muito importante na história do anarquismo. Em escala mundial, os anarquistas realizaram ataques e assassinatos que tiveram um enorme impacto. Com os atentados, o movimento passou a ser o centro das atenções da mídia, da polícia e do judiciário. Naquela época, não havia ninguém que não soubesse o que era um anarquista. Como resultado da repressão a esses atos, muitos ativistas encontraram na escrita a única forma de se expressar, embora a imprensa anarquista fosse praticamente proibida em muitos países. Houve também movimentos migratórios de exilados e expulsos. Foi também uma época de mudanças na literatura, com o surgimento dos primeiros movimentos de vanguarda e o questionamento do que é e do que não é literatura.

E o que se entende por literatura hoje?

Eu não saberia lhe dizer o que é considerado literatura atualmente, mas é claro que o conceito mudou. Essa evolução começou no século XIX, com a multiplicação de gêneros, ampliando o conceito para além dos gêneros clássicos, como a tragédia, a epopeia ou a comédia. Durante esse período, o romance ou o poema entraram em cena em outras formas além do soneto clássico. Atualmente, ainda não está claro o que é literatura e o que não é, mas não é mais tão importante se uma publicação pode ou não ser rotulada como literária.

O que é literatura comparada, uma de suas especialidades?

A literatura comparada questiona o fato de que as literaturas são necessariamente compreendidas e estudadas dentro de uma estrutura nacional e estadual. Ou seja, quando eu estudava, havia uma disciplina chamada literatura uruguaia, outra chamada literatura latino-americana, e depois havia literatura espanhola e literatura mundial. Eu não entendia por que o Uruguai e a Espanha tinham o direito de ter sua própria matéria, mas outros países não. Isso tem a ver com a tradição de entender a literatura dentro da estrutura da nação. Mas nós, leitores, somos transnacionais. Não lemos apenas publicações de nosso próprio país. A literatura é sempre um fenômeno que tem uma dimensão internacional, mas, acima de tudo, transnacional. A literatura comparada entende a literatura como um fenômeno global, tem uma visão mais ampla e compara diferentes sistemas.

Sua outra especialidade é a história da tradução no Uruguai. Em que está trabalhando nesse campo?

Estou envolvido no projeto “150 anos de tradução literária no Uruguai”, que foi escolhido pela Comissão Setorial de Pesquisa Científica da Universidade da República (CSIC-Udelar). Não há uma cadeira de estudos de tradução literária no Uruguai. É possível estudar a tradução jurídica, por exemplo, mas não a tradução literária. Tampouco há uma tradição sólida e estabelecida de trabalho sobre tradução. É por isso que meus três parceiros de projeto e eu tivemos que treinar parcialmente fora do país. Com este projeto, queremos realizar um estudo bibliométrico do catálogo da Biblioteca Nacional, onde estão depositados todos os livros publicados no Uruguai, a fim de descobrir quantos e quais dos livros publicados nos últimos 150 anos são traduções. Esperamos que a geração e o compartilhamento dessas informações sejam um impulso para os estudos de tradução.

Em todos os seus estudos, você leva em conta a perspectiva de gênero. Que papel as mulheres desempenharam em seus campos de estudo?

Com uma companheira, estou organizando uma conferência no próximo ano em Madri sobre tradutoras e editoras anarquistas. É preciso dizer que, por muitos anos, a tradução foi considerada uma tarefa menor, subalterna, secundária, uma prática de escrita menor. Por ser considerada como tal, era frequentemente realizada por mulheres, tanto na esfera anarquista quanto em outros lugares. Ainda há muito a ser explorado. Pessoalmente, até o momento, encontrei pouquíssimos nomes de tradutoras. Também é verdade que na imprensa, que é onde eu trabalho, o nome do tradutor raramente é mencionado e, às vezes, são usados pseudônimos.

Existem traduções boas e ruins?

Não estou procurando traduções perfeitas, nem estou interessada em comparar a tradução com o original para ver se o tradutor foi bom ou não. Às vezes, há uma tendência de ficar do lado errado dos tradutores e esquecemos que as leituras mais importantes de nossas vidas foram lidas por meio de traduções que podem não ter sido as melhores. Apenas raramente as traduções de obras cruciais são unanimemente reconhecidas como excelentes: de fato, o conceito do que constitui uma boa tradução muda com o tempo. Mas nada disso nos impediu de nos apaixonarmos por Shakespeare ou Ibsen ao lê-los em outros idiomas que não os originais. Muitas das traduções que encontro na imprensa anarquista são tão boas quanto possível, e estou interessada em recuperar esse trabalho intelectual feito em condições precárias.

Há algum projeto novo em andamento?

Estou estudando o autor franco-uruguaio Álvaro Armando Vasseur há algum tempo. Ele fez muitas traduções e foi o primeiro a traduzir uma parte importante de Leaves of Grass, de Walt Whitman, para o espanhol, e também foi o primeiro a traduzir o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard para o espanhol. Ele nunca recebeu muita atenção porque não transcendeu como autor. Minha ideia é fazer algo como uma biografia intelectual, que dê conta desse personagem e de seu trabalho, nem sempre bem-sucedido, como agente cultural.

Fonte: https://www.uoc.edu/portal/es/news/entrevistes/2023/022-lucia-campanella.html

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

Profundo silêncio.
Na escuridão da floresta
Dançam vaga-lumes.

Eusébio de Souza Sanguini