A nota de imprensa sobre nosso Ateneu guardada nos Protocolos Municipais de Jerez não fala de anarquia ou socialismo, mas de amantes da ciência, progresso e cultura
Por Oscar Carrera | 28/01/2024
1936 foi um ano agridoce para o anarquismo em Jerez. Na primeira metade do ano, a cena fervia de ideias e projetos, com a verve criativa característica dos anos trinta, agitada em Jerez pela greve geral de 1934. A partir do verão, com o golpe e a repressão dos revoltosos, todos esses projetos foram interrompidos assim como a vida de muitos de seus organizadores. Dois tempos que são como o dia e a noite: uma fenda entre ambos, e quem sabe uma chave oculta na transição de um ao outro, poderia ser o pouco conhecido ateneu libertário. O fatídico Ateneu “Estudios”.
Em 20 de Maio de 1936 acontecia em Jerez este projeto há muito aguardado na cena anarquista local. Seu nome completo era Ateneu Cultural “Estudios” e sua sede era na rua Justicia, 26. Organizado pelas Juventudes Libertarias, compartilhava espaço com o Sindicato de Pedreiros afiliado a CNT. Segundo recorda-se, o Ateneu foi fundado com a intenção de oferecer uma educação libertária: ali se ensinaria a ler e escrever, se comentariam os textos clássicos do anarquismo, e se organizariam atividades culturais”. Foram impressos mil carteirinhas de sócios.
Retrospectivamente as fontes costumam chamá-lo “Ateneo Libertario” ou “Ateneo Cultural Libertario”. Não obstante, nos documentos da época o chamam Ateneo Cultura Estudio, nome que encaixa com um curioso fenômeno cultural da Espanha em 1936: a multiplicação por todo o território nacional de grupos relacionados com uma famosa revista libertária eclética, publicada em Valencia e nomeada Estudios. A própria revista dedicava uma sessão periódica a constante criação de “grupos de amigos e leitores de Estudios”, as vezes inseridos como quadros de sindicados, como foi o caso dos grupos de Barcelona, Córdoba, ou, caso estejamos certos, Jerez. Se anunciavam novos grupos nos números de fevereiro, junho e também setembro de 1936.
Além destes grupos mais especializados, os artigos da Estudios eram parte das leituras em comum “nos locais da CNT e ateneus libertários”. A nota de imprensa sobre nosso ateneu conservada nos Protocolos Municipais de Jerez não fala de anarquia ou socialismo, mas de ciência e cultura… “Nossos cérebros entorpecidos estão pedindo a cultura que nos predisporá a sermos capazes de analisar as fases do progresso, representadas em todas as manifestações da vida. Todas as manifestações da vida”. Retórica digna dos amigos dos Estudios.
Infelizmente o projeto acabou paralisado após sua fundação: o cofundador Miguel Vega afirma que chegou a de fato abrir suas portas, após três ou quatro anos de preparo e haviam reunido muitos livros. Isto seguramente incluía volumes da Biblioteca do Estudios editada pelos valencianos; fiel a esse espírito “eclético”, incluso aí desde a educação sexual ou darwinismo até tratados médicos-naturalistas. O máximo que seus criadores ofereceram ao público foi um par de obras sobre o teatro eslavo, ou quem sabe uma, El pan de piedra (El carbón) de José Fola Igúrbide (1913). Sabemos de umas poucas reuniões ordinárias do Ateneu (16 de Junho) ou “Existe diferença entre a delinquência social e comum?” (23 de Julho e 7 de Julho).
Nem tão vivo nem tão morto… Talvez Vega exagerasse sobre a imobilidade do Ateneo, por compara-lo com outros grupos da cena do movimento anarquista. Vários coletivos estavam ativos na cidade neste mesmo ano: Hacia la Anarquia, Acción y Pensamento, Sol, Los Sembradores de Acracia [1]. Membros do primeiro prepararam uma conferência sobre o “comunismo libertário” para a Plenário Provincial da FAI gadatiana, aprovada em Junho de 1936.
O verão está chegando e ainda assim ninguém sente o cheiro de nada… Além disso, parece que as pessoas estavam com menos medo do que antes de fazer uma declaração política. Entretanto, ironicamente, de todas essas atividades e organizações libertárias, a mais perigosa para seus membros pode ter sido, a participação no Ateneo ‘Estudios’, que nem chegou a ser inaugurado. Ao saberem do golpe, os responsáveis pelo Ateneu queimaram a biblioteca na Hoyanca de San Telmo, mas algo deve ter saído do controle.
Nossa hipótese: uma lista de afiliados cai nas mãos do inimigo. Caso contrário, é difícil explicar uma perseguição tão meticulosa. É claro que os estatutos com seus três signatários estavam à disposição das autoridades municipais [2], mas a repressão reuniu muitos outros nomes. José Alvarado Márquez alegou não ter outra filiação além do Ateneu, e Antonio Narbona Barrios também é a única militância associada a ele. Semelhante é o caso de Manuel Moreno Durán, que foi assassinado em seu caminho para Ronda, se é que não foi por perseguição a ser vegetariano-naturalista. Uma investigação de 1938 sobre as atividades subversivas de Antonia Cantalejo Sierra, secretária do Sindicato de Emancipación Femenina (Sindicato de Emancipação da Mulher), começou observando que “ela estava registrada como membro contribuinte do Ateneo Cultural Libertario” [3]. De acordo com Miguel Vega, eles executaram mesmo os carpinteiros que trabalharam nos móveis da sede, Antonio e Manuel Caro Crespo. O promotor Diego Pérez Núñez conseguiu escapar de seus captores, embora tenha sido executado pelos nazistas no Castelo de Hartheim.
Os acusadores se referem repetidamente a esse projeto incipiente com a expressão “o Ateneo Cultural Libertario”, como se quisessem dar maior solidez ou significado a algo que ainda não havia começado sua jornada. Como se, ao capturar um jovem formalmente afiliado ao “Ateneo Libertario”, eles tivessem pego um peixe grande, um doutrinador das massas. José Alvarado Márquez, 26 anos de idade, abriu assim sua última carta da prisão:
Escrevo essa carta hoje, com a certeza de que vão me matar ainda que eu não tenha cometido nenhum outro crime exceto estar afiliado ao Ateneo Cultural “Estudios” e um indivíduo ter me acusado de ter ideias radicais…
Novamente, a única coisa que podiam provar era seu nome em um documento: sua afiliação formal a um Ateneu inexistente, e com ele o compromisso com um mundo, uma sociedade que apenas começava a nascer e teve sua garganta cortada ao amanhecer.
[1] José Luis Gutiérrez Molina, La idea revolucionaria: el anarquismo organizado en Andalucía y Cádiz durante los años treinta. Madrid: Ediciones Madre Tierra, 1993, p. 158.
[2] Miguel Vega Álvarez, Episodios personales, p. 87.
[3] Legajo 1269 de 15121938, 15/12/1938. Archivo Municipal de Jerez.
Tradução > 1984
agência de notícias anarquistas-ana
Voar sempre, cansa –
por isso ela corre
em passo de dança
Eugénia Tabosa
Avante!
Obrigado, Mateus!
Incrível texto. O Nestor não conhecia. Bravo!!
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!