“Até hoje a República Federativa do Brasil tem se mostrado apenas um negociador a favor dos interesses econômicos dos invasores”

Confira a seguir entrevista que a Agência de Notícias Anarquistas (ANA) realizou em abril passado com a Autonomia Indígena Libertária (AIL).

Agência de Notícias Anarquistas > Como surgiu a Autonomia Indígena Libertária? O que é? Conte um pouquinho de sua história… 

AIL < A Autonomia Indígena Libertária (AIL) é uma página de notícias [no Facebook] dos povos e pessoas indígenas autônomas. Ela surgiu da necessidade de comunicar uma luta fora do que propõe a esquerda institucionalizada, que vêm aos poucos cooptando parentes indígenas para a farsa eleitoral em Pindoretà (Brasil), como já fez em diversos países de Abya Yala.

Por consequência trouxeram uma espécie de hierarquização das vozes e necessidades indígenas. Apenas indígenas que aceitam cargos ou que abaixam a cabeça para essas organizações (que se colocam como as principais) conseguem apoio e visibilidade midiática para suas necessidades.

Foram anos e mais anos de negligência por parte do Estado desde a constituição em 88, que prometia demarcar e garantir direitos indígenas a nossa população. Inclusive alguns de nós da AIL, por ter esperanças de que algo pudesse mudar, ajudamos a eleger alguns indígenas porque acreditávamos que conseguiríamos as demarcações e outras demandas como a necessidade da educação e saúde diferenciadas. Por percebermos que o primeiro ano do mandato do presidente Lula que criou o MPI (Ministério dos Povos Indígenas) tiveram pouquíssimas atitudes a favor das demarcações e demais necessidades, nasceu a necessidade de comunicar essa outra face da nossa luta, ao mesmo tempo um rompimento com a democracia representativa.

Para preservar a integridade dos parentes que compõem essa iniciativa, preferimos não informar quais povos estão conosco lutando por autonomia. Até porque o que acontece dentro de nossos territórios e retomadas está começando a surgir e temos certeza que no momento certo todos saberão mais sobre nós.

ANA > Vocês conhecem (ou seguem) o princípio do bem viver? Se sim, como veem sua relação com o anarquismo?

AIL <Sim. Conhecemos a teoria do Bem Viver “Sumak Kawsay”, essa é uma expressão dos povos andinos que se opõem ao pensamento de que devemos buscar sempre o melhor reforçando a necessidade neoliberal do capitalismo.

Já o Bem Viver propõe a partilha, por esse motivo também nos familiarizamos com esse pensamento Andino, assim como muitos outros pensamentos que rompem com o capital. Inclusive parte de nós percebemos que o anarquismo é uma luta que tenta romper com o capital, e que enxerga as artimanhas do Estado buscando por autonomia e autogestão, em muito se assemelha a nossa luta pelo caráter libertário.

Mas deixamos bem claro que alguns de nós têm uma visão diferente e não se consideram anarquistas. Eles apenas apoiam as lutas libertárias sem necessariamente tomar rótulos para si mesmos. Muitos de nós inclusive criamos “ismos” e “heróis” para satisfazer o imaginário dos povos não indígenas e vamos continuar criando ferramentas para essa comunicação, como fez o povo da Selva de Lacandona. Não necessariamente iguais as lutas libertárias que acontecem no “Chile” ou em “Chiapas” porque entendemos que em cada momento e em cada lugar e contexto sempre haverá a necessidade de um “Levante Popular Autônomo”, inclusive a nossa luta é anterior ao anarquismo. Porém todo povo que se levanta contra tudo que explora a Terra e que almeja um futuro digno pode confluir muito bem conosco.

ANA > Considerando que algumas populações indígenas têm formas de organização social próximas ao anarquismo, a organização de vocês tem, ou pretende ter, alguma atuação nesse sentido de explicitar e fortalecer esta ligação?

AIL < Podemos confluir ideias contracoloniais com todas as lutas que queiram romper com o capitalismo e que conseguem entender que o Estado é anti-indígena, e que facilita a exploração de recursos humanos. Até hoje a República Federativa do Brasil tem se mostrado apenas um negociador a favor dos interesses econômicos dos invasores.

Como água e óleo não se misturam, não existe possibilidade de haver ligação entre nossos interesses e os deles (Estado). O Estado também tem provado que está adoecido, parece um suicida a caminho da autodestruição. Por consequência quer nos levar para o mesmo destino, porém haverá muita resistência de nossa parte, não será tão fácil assim nos destruir. Toda a luta dos povos, seja onde for que entendam esse mecanismo e agenciamento da destruição ambiental e da exploração são nossas parceiras. Precisamos de apoio mútuo entre nós, somos melhores quando pensamos juntos.

E precisamos que vocês anarquistas estudem a contracolonização senão ficará difícil caminharmos juntos. Sem entender todo o processo, dificilmente haverá uma revolução genuína em Abya Yala.

ANA > Quais as principais lutas e problemas que os indígenas enfrentam hoje?

AIL <A morosidade em regularizar nossas Terras através da Demarcação e Homologação por parte do chefe de Estado (que é o responsável pela Demarcação). Os serviços públicos como a escolarização básica indígena que é totalmente precarizada e que causou danos linguísticos e culturais desde a invasão por causa da proibição da língua materna indígena e agora insiste em manter essa negligencia a educação básica nas aldeias. Fala-se muito em acesso à universidade sem sequer mencionar a situação da educação indígena básica. A escola indígena além de não ser reconhecida, os poucos indígenas que conquistaram algum direito nesse sentido de lecionar são profissionais precarizados, o mesmo se dá com relação a assistência à saúde indígena, muitos agentes de saúde que não ganham sequer um salário. Não existem projetos referentes às pautas apresentadas pelo Ministério dos Povos Indígenas, por exemplo, até o dia de hoje. Veem-se muitos eventos, passeios, premiações, mas poucas políticas públicas.

A outra necessidade é a da visibilidade dessa luta autônoma indígena. O não indígena precisa parar de bater palmas para qualquer indígena que lhes aparece na frente com um discurso individualista e sem luta. Prestar mais atenção na fala de pessoas que verdadeiramente rompem com esse modelo de tutela que a classe média eleitoreira tem proposto como luta dos povos indígenas e que alguns compraram, sem fazer o exercício mínimo de compreender os perigos disso tudo.

ANA > E como vocês definem o governo Lula em relação às pautas indígenas?

AIL < O governo Lula vem cumprindo a agenda que os anarquistas anteciparam antes das eleições. Tem usado a luta dos povos indígenas para comover seus eleitores e garantir a reeleição do governo petista. Usou o discurso do genocídio para comover eleitores de esquerda e conseguiu o seu rebanho inconsciente, mas o discurso só foi válido durante o mandato do fascista (Bolsonaro). E para piorar, ao invés de demarcar como fez outros chefes de Estado que demarcaram mais terras que o PT em 17 anos, ele propôs essa semana a compra de terras no Mato Grosso do Sul, para salvar os Kaiowá que vivem em extrema miséria na beira da estrada. A dúvida que não quer calar é: Se ele tem poder para emitir decretos demarcatórios de terras indígenas porque prefere comprar terras? A resposta é muito simples, ele quer rebaixar o direito originário garantido pela constituição brasileira em 1988 para criar reservas do Estado, “Um vai que cola” na tentativa de recuperar os territórios para o Estado. E vocês concordam que quem tem direito anterior a república federativa, não deveria se dobrar a esse tipo de tentativa grotesca do chefinho de Estado, e do seu bebê birrento Brasil.

Nossa luta tem mais de 500 anos, essa falsa democracia é mais um adversário anti-indígena que coloca seus interesses econômicos à frente dos interesses de preservação da vida. Os conflitos no campo só aumentaram, e eles só aparecem nos velórios das comunidades indígenas. O julgamento do marco temporal acabou e mesmo assim fingem que não! O Povo Xokleng segue sendo ameaçado, está acontecendo um desmonte ambiental que afeta diretamente terras não florestais: afetando diretamente o pampa onde vivem povos como os Xokleng, e o Pantanal onde vivem, por exemplo, o povo Guató, Kaiowá etc. Aliás, o Mato Grosso do Sul é a região de mais retomadas indígenas no Brasil. Coincidência ou não, ele propõe comprar terras justamente lá… Ferrogrão, leilão de petróleo, a tentativa de construir posto de petróleo na bacia amazônica são algumas das gafes do governo progressista, ou melhor, neoliberalista, conciliador e entreguista do Lula e de seus fantoches que por migalhas tem mais três anos de salários garantidos, enquanto outros indígenas morrem e passam necessidade em seus assentamentos.

ANA > E como vocês veem esse projeto da Petrobras de prospecção de petróleo na Margem Equatorial, na Bacia da Foz do Amazonas?

AIL < A primeira observação é que a constituição garante a consulta prévia aos povos que vivem na região em que se especula a perfuração e que obviamente, nós indígenas somos contra a exploração na Bacia Amazônica.

Sabemos também que há uma forte pressão de povos indígenas locais e de todo o país, assim como há uma pressão por parte dos ambientalistas para defender o bioma costeiro da região norte, e que precisa urgentemente de maior visibilidade para brecar essa iniciativa. Mas o Estado não ajuda. O presidente Lula incentiva a pesquisa para facilitar a exploração e muita gente compra a ideia. O Ibama, inclusive, já proibiu ano passado a pesquisa, porém eles persistem.

A segunda observação é que o Estado, sendo dirigido pela direita ou por essa esquerda, será sempre anti-indígena e ambicioso demais para garantir o bem estar das vidas humanas e não humanas.

ANA > Recentemente um petroleiro da FUP (Federação Única dos Petroleiros) disse que tal projeto é importante, que vai gerar oportunidades de emprego e renda para a população…

AIL < Sinceramente nos sentimos envergonhados e desconfortáveis com a limitação de alguns não indígenas de entender o óbvio: Não haverá futuro se não houver levante!

ANA > Às atividades de mineração tem um impacto muito grande nos territórios e no meio ambiente, e nos últimos dias a imprensa tem divulgado notícias que o governo Lula planeja uma nova política de mineração para forçar a exploração de minas. Como as comunidades indígenas receberam tal notícia?

AIL <O Estado e qualquer representante do mesmo, seja ele de esquerda ou de direita, progressista ou o que for irá defender os interesses econômicos da nação em primeiro lugar, ainda que esses interesses resultem em mais e mais crimes ambientais como os de Brumadinho e de Mariana, por exemplo.

Fazem 5 anos de uma das maiores catástrofes ambientais com danos irreversíveis e até o momento NINGUÉM foi condenado.

Estado nenhum é capaz de compreender os riscos dos impactos ambientais que eles mesmos provocam por tentar alianças com exploradores de recursos naturais. O Estado e seus representantes não sentem vergonha em dizer que a luta pelo meio ambiente atrapalha o progresso da nação, nem pudor para falar sentem e as pessoas caminham como se estivessem lobotomizadas porque não percebem os danos ambientais que os governos fazem. O Estado tem provado ser uma ferramenta a serviço do invasor. Vai entrar e sair governo e eles irão manter essa postura e esse racismo ambiental que afeta diretamente povos indígenas e populações mais vulneráveis.

ANA > Assim como a Vale e outras grandes empresas de mineração, podemos dizer que o Lula é mais um vilão da mineração?

AIL <Vilão é pouco. A mineração e o garimpo são praticamente as mesmas palavras, só mudam as formas de execução, mas tem a mesma finalidade de explorar recursos naturais. Quem impulsiona a mineração impulsiona o garimpo, esse negócio de garimpo ilegal é a maior falácia!

O garimpo é garimpo seja ele ilegal ou não. O garimpo e a mineração são um problema grave com um futuro trágico e previsível para toda humanidade. Os representantes das nações não se dedicam a procurar novos recursos/alternativas menos danosas à natureza. Quando alguns líderes indígenas dizem que o céu irá cair estão com total razão de dizer.

ANA > Há muita cooptação de lideranças indígenas por parte do Estado e de empresas?

AIL <Alguns parentes aderem às lutas ligadas ao Estado por não conhecer outros caminhos ou alternativas autônomas. Inconscientes seguem no meio de uma guerra com poucos apoiadores e sendo devorados por cobras peçonhentas. Já outros pelos mesmos motivos dos políticos não indígenas, única e exclusivamente por poder!

O que podemos dizer é que eles disputam por um poder burguês, influenciados por pessoas não indígenas muito má intencionadas que lhes oferecem um tempo curto de um poder passageiro, que reveza entre a esquerda e a direita.

A intenção do Estado em cooptar indígenas é para desarticular, hierarquizando as necessidades dos povos, apenas aqueles povos ligados às principais organizações ligadas ao Estado são assistidas pelo governo, as que seguem autonomamente são colocadas de lado e são lembradas apenas quando seus líderes se tornam encantados (morrem).

A outra intenção é a de pacificar as lutas indígenas através da conciliação, capturam as pautas e tomam o protagonismo se colocando como principais representantes, enfraquecendo as ações diretas e a articulação das bases. Para nós, o Ministério dos Povos Indígenas em seu primeiro ano de mandato tem servido ao Estado apenas como um aparelho facilitador da conciliação. E embora tenha adotado um discurso digamos mais “radical”, suas últimas publicações através das “principais organizações deles”, as ações são pouco efetivas ante os desafios dos povos e a defesa da natureza. É triste ter que fazer essas declarações e demonstrar esse descontentamento. Muitos de nós ainda estamos digerindo esse primeiro ano de gestão, apenas duas terras foram demarcadas esse ano. Queremos deixar muito claro que nosso inimigo é o Estado, e que nós temos plena consciência das dificuldades que alguns territórios enfrentam e que é muito difícil construir nossa luta sem apoio algum. Ao mesmo tempo é difícil compreender quando eles se mantêm bajulando esses não indígenas sabendo que estamos morrendo em campo. De verdade, nem nós queremos arriscar um palpite. Outra coisa que não nos desce é a necessidade de “aldear a política” sem aldear o povo!

Gostaríamos que eles abrissem os olhos para o que o Estado brasileiro representa, e se afastasse da farsa que eles proporcionam através de suas migalhas, porque desde a constituinte de 88 o Estado tem se comportado como inimigo e não como determina a constituição. Não abrimos mão dos nossos direitos, muitos povos em Abya Yala ainda resistem sem ter assegurado direitos como os que conquistamos com muita luta aqui em Pindorama Brasil. Infelizmente, devemos sempre levantar nossas reivindicações: demarcação, saúde/educação diferenciada, o retorno dos atendimentos de base/prestados pela Funai em nossos territórios, nosso IDH é o mais baixo de Abya Yala, precisamos falar mais sobre esses assuntos emergenciais dos povos e tantos outros que não caberiam dizer aqui. Será que alguém pode nos ouvir aqui embaixo?

ANA > Surpreende o fato que uma das ministras do governo Lula 3 seja a senhora Simone Tebet, conhecida fazendeira, ruralista, cheia do dinheiro… Comenta-se que ela é ou foi anti-indígena e quando era senadora defendeu indenizar fazendeiros por terras indígenas…

AIL < Posou com a Ministra dos Povos Indígenas no primeiro ano de mandato em algumas selfies, curioso não?

ANA > Falando em terras, demarcações… Como vocês enxergam as fronteiras?

AIL < Falar por todos os povos indígenas não seria correto, somos 305 povos distintos cada um tem sua forma de compreender sua auto-organização através de sua cultura. Um exemplo é o Kaiapó pode pensar diferente do Xokleng, por viverem em biomas distintos. Mas alguns de nós acreditamos em uma barreira: A falta de afinidade. Sem afinidade não há auto-organização, nem autogoverno.

Já as nações que se ergueram parecem não serem organizadas por pessoas com afinidades, alguns de nós trocamos de aldeias quando não nos sentimos em afinidade com um grupo específico, o que alguns de nós achamos importante, romper para surgir novas oportunidades, recomeçar. Enfim.

Acontece que estamos em guerra, quase não existe lar para muitos povos, apenas a fuga e recomeços. Mas gostaríamos de perguntar uma coisa a vocês… Já que nos fizeram tantas perguntas.

Se um dia a sociedade vencesse o capital e o trabalhador assumisse o poder, gostaríamos de saber se seríamos o lumpen da sua revolução. Porque provavelmente muita coisa nos negaríamos a produzir por causa da nossa cultura de preservação da Terra.

Seríamos o quê? E se vocês saberiam conduzir as coisas sem explorar os recursos naturais. Saberiam sem nós? Como pretendem conquistar a nossa afinidade?

Vocês parecem querer o bem de todos, sem sombra de dúvidas. Mas muitos de vocês precisam aprender a preservar a vida primeiro. É preciso criar afinidades e vínculos reais para ter aliados. É preciso aprender a preservar a vida, abrir a mente para ideias libertadores e contra coloniais.

ANA > Vocês acham que no geral a sociedade continua ignorando a realidade e o drama dos povos indígenas?

AIL < Sim. O colonialismo está em curso e as pessoas não estão se esforçando o suficiente para enxergar as diversas camadas desse projeto em curso.

ANA > Algum recado final? Valeu!

AIL < Agradecemos esse espaço, a oportunidade de divulgar a nossa existência é fundamental para o futuro das lutas aqui em Abya Yala. Estamos a procura de mais parcerias, quem quiser somar conosco de alguma forma procure a gente em nosso e-mail: autonomiaindigenalibertaria01@riseup.net A gente deseja a vocês saúde para o corpo de luta, força e muita luz!

agência de notícias anarquistas-ana

Árvore amiga
enfeita meus cabelos
com flores amarelas

Rosalva

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