Por Elaine Campos e Marina Knup
Desde o fim da década de 70, festivais de filme dedicados à produção audiovisual anarquista têm sido organizados mundo afora reunindo tanto os filmes feitos por anarquistas, quanto aqueles que de alguma forma dialogam com as questões e lutas nas quais o anarquismo se envolveu historicamente. Até os dias de hoje seguem sendo organizados, de forma periódica ou esporádica, tanto em países da Europa, quanto na América do Norte, América do Sul e outras partes. Com inspiração nesses festivais e sentindo a necessidade de divulgar, debater e problematizar o audiovisual anarquista no Brasil e América Latina, em 2012 nasce o Festival do Filme Anarquista e Punk de São Paulo, com a iniciativa dos projetos Do Morro Produções e Anarco-Filmes, duas pequenas produtoras de audiovisual anarquista, punk e periférico atuantes na cidade.
A ideia era simples: realizar uma mostra anual de filmes feitos por coletivos e indivíduos anarquistas com temáticas diversas, e também de filmes que de alguma forma estão relacionados às memórias e às lutas atuais em que nos envolvemos – feminista, antirracista e antifascista, movimentos sociais, indígenas, periféricos, e outras lutas igualmente importantes. Para construir um Festival com participação e envolvimento de mais pessoas, resolvemos abrir inscrições para envios e propostas. Já tínhamos conhecimento de alguns projetos de audiovisual com foco anarquista que eram levados adiante por companheirxs de outros estados do Brasil, e mesmo de alguns países da América Latina. Mas, quando abrimos inscrições para o envio de filmes, não imaginamos que teríamos uma resposta tão positiva: chegaram dezenas de filmes de várias partes, que por fim encaixamos em três dias de programação com duas salas de exibição simultâneas, além de debates, oficinas, exposições, apresentação musical, sarau, e outras atividades. No ano seguinte se repetiu o mesmo padrão: novamente muitos filmes inscritos, e, em sua maioria, de pessoas que não haviam inscrito filmes no ano anterior – o que foi importante para que o Festival não se resumisse à exibição de um círculo fechado de realizadorxs ou coletivos, ampliando a divulgação de outras iniciativas anarquistas nas lutas mundo afora.
Da segunda edição em diante, mais pessoas se aproximaram para apoiar a organização, e assim formamos um coletivo organizador que tem se reunido, discutido e conspirado ações durante todo o ano. Além desse coletivo organizador, sempre contamos com o apoio de companheirxs de outros coletivos, seja emprestando equipamentos, seja no apoio durante os dias nas projeções, banquinha de materiais, montagem, desmontagem e outras correrias. Chegamos esse ano na quarta edição, como sempre, organizada de forma horizontal, autogerida, por consenso, sem financiamentos e de forma totalmente faça-você-mesma. Nesse percurso também organizamos uma prévia em 2014 com uma seleção de documentários sobre a criminalização dos movimentos sociais, seguida de debate, e apoiamos a realização de uma mostra itinerante do Festival em Recife em 2015. Aos poucos, fomos criando laços também com outros festivais de filmes anarquistas pelo mundo, o que rendeu intercâmbios de filmes e bons contatos. Também virou costume que alguns coletivos anarquistas enviem propostas para estrear anualmente seus filmes no festival – o que cria um vínculo de apoio mútuo, tanto dos coletivos com a programação do festival, quanto do festival com as produções dos coletivos. Para 2016 estão sendo conspiradas novas mostras itinerantes em outros estados do Brasil, e também um ciclo de oficinas para discutir e incentivar as produções anarquistas e passar adiante os conhecimentos que fomos acumulando nos últimos anos com nossas próprias produções. E assim vamos seguindo…
Nos últimos tempos, a prática que veio da organização do Festival e da produção de nossos próprios filmes potencializou nossas reflexões coletivas sobre o audiovisual anarquista e tem rendido novas ideias e aprofundado algumas questões. Temos buscado cada vez mais trilhar um caminho de divulgação, apoio e incentivo ao uso do audiovisual como ferramenta nas lutas anarquistas – pensando no filme anarquista não como um gênero, mas como uma prática que deve estar inserida em um contexto de luta, e em sua produção como algo que deve ser pautado pelas necessidades específicas de cada um desses contextos: sendo assim, sem fórmulas ou regras. Cada vez mais coletivos anarquistas, anticapitalistas e antiautoritários têm se apropriado da linguagem do vídeo para apoiar suas lutas, e em cada contexto o vídeo tem assumido funções diversas, apoiando mídias independentes na ruptura da hegemonia midiática, denunciando questões sociais por meio de documentários, inspirando ou incentivando pessoas à reflexão e ação por meio de ficções, vídeos experimentais e outras formas de expressão audiovisual, usando a câmera como forma de constranger, registrar e denunciar a ação policial em manifestações, realizar coberturas de movimentações mundo afora, registrar as memórias e experiências de movimentos e iniciativas libertárias, e por aí vai. As potencialidades são muitas, e cada vez mais cada uma delas tem sido explorada. Nesse sentido, o Festival se propõe a ser um foco de exibição e divulgação de todas essas iniciativas, e, ao mesmo tempo, de incentivo às produções e ao debate sobre a importância dessa ferramenta, e de como podemos utilizá-la.
Aqui, ainda entram diversas reflexões sobre o processo de produção em si – que desafia a lógica hierárquica da grande indústria cinematográfica buscando formas horizontais de organização – sobre a relação entre quem realiza o filme e quem o assiste, entre quem filma e quem é filmadx, como integrar a cultura de segurança no processo de produção, questões estéticas, visões mais críticas quanto à desenfreada evolução tecnológica ditada pelos interesses capitalistas, meios de apropriação destas tecnologias que estejam de acordo com nossas propostas, questões relativas a direitos autorais, meios de interação dessas produções com as lutas, novas potencialidades para o vídeo, as exibições, os cineclubes e cinedebates, e por aí vai…
E a questão de gênero dentro disso tudo?
Quando pensamos na questão de gênero e no feminismo, novas reflexões vêm à mente. O machismo está presente amplamente em todas as esferas de nossa sociedade, e não seria diferente dentro dos movimentos sociais e, por que não, do movimento anarquista. Isso se reflete em nossas organizações mistas e nas dinâmicas coletivas dentro delas, nas relações interpessoais, e, como não poderia deixar de ser, acaba por se refletir também nos filmes que são produzidos.
Qual a visibilidade e poder de fala que as mulheres têm nestes filmes? Existe uma quantidade imensa de documentários que retratam o anarquismo no mundo em momentos históricos, localidades e contextos diversos, e tivemos a possibilidade de exibir muitos nestes quatro anos de Festival e em outros projetos de cineclube/cinedebate/exibição que integrantes do coletivo participaram. Algo que muitas vezes incomoda é a pequena presença de depoimentos de mulheres nestes documentários, em sua maioria protagonizados por militantes homens. Onde está a voz das mulheres, que sempre estiveram ativas nas frentes de luta e que por vezes permanecem invisibilizadas? Isso acontece porque as mulheres, tendo sido relegadas à ausência, ao silêncio e à marginalidade, também foram, até certo ponto, relegadas para a fímbria do discurso histórico, se não for para uma posição totalmente fora da história (e da cultura), que tem sido definida como a historia do homem (via de regra de classe média) branco. Não dá para negar que a mulher tenha uma história própria que pode, até certo ponto, ser redescoberta, mas para demonstrar que em termos da narrativa dominante do cinema, na sua forma clássica, as mulheres, do modo como têm sido representadas pelos homens nesse contexto, assumem uma imagem de um status “eterno” que se repete, em sua essência, através das décadas: superficialmente, a representação muda de acordo com a moda e o estilo – mas se arranhamos a superfície lá está o modelo conhecido.
As mulheres são parte da história e da atualidade, mas em muitas destas produções têm suas vozes silenciadas, como se a luta fosse levada adiante somente por homens – um apagamento histórico preocupante e perigoso. Por mais explicações que se possa dar caso a caso, o pouco espaço para nossas vozes é sintomático, e faz emergir a necessidade de que estas questões sejam levadas em consideração com mais cuidado durante o processo de produção dos filmes.
Apesar disso, a presença ativa de mulheres como realizadoras no audiovisual independente tem crescido, contemplando assim questões que somente as próprias poderiam discutir e apresentar. Nesses quatro anos pudemos exibir filmes sobre mulheres punks, mulheres anarquistas, a presença de mulheres em movimentos sociais, lutas políticas e culturais periféricas, documentários que problematizam a violência machista e sexista, entre outras questões de extrema importância dentro do debate feminista. E esta tem se tornado cada vez mais uma preocupação dentro do processo de curadoria dos filmes que recebemos e incluímos na programação. Ano passado uma das salas de exibição ganhou o nome da anarquista espanhola Anita Aldegheri (radicada no Guarujá, litoral de São Paulo, e que veio a falecer no começo de 2015). Este ano, optamos por nomear as duas salas de exibição com nomes de outras duas anarquistas, dando mais visibilidade a suas trajetórias de vida e luta: Lucy Parsons, (anarquista negra norte-americana) e Lucia Sanchéz Saornil (anarquista espanhola, uma das fundadoras do Mujeres Libres). Também houve duas sessões temáticas com filmes voltados exclusivamente para questões feministas, uma em cada dia, e uma exposição fotográfica de Elaine Campos (Mulheres Livres: Imagens Insurgentes), que retrata a presença das mulheres nas lutas sociais.
Retomando os filmes que exibimos nestas quatro edições, deixamos aqui uma pequena lista de alguns dos filmes onde a mulher vem sendo representada na contemporaneidade de forma a proclamar e enaltecer a sua luta contra as forças patriarcais e machistas, na tentativa de modificar os resquícios de pensamentos coloniais e romantizados, com os mais diversos pontos de vista. Para ver, refletir, repassar, exibir e debater!
• Indomables: Uma História de Mulheres Livres (63 min. | 2012 | ZerikuziA | Espanha). Mujeres Libres foi uma organização autônoma que chegou a reunir mais de 20 mil afiliadas, unindo o feminismo a suas raízes anarquistas, e objetivando preparar as mulheres para que pudessem participar em primeira pessoa da revolução libertária. Naquele momento, tiveram que lidar com elevadas taxas de analfabetismo entre as mulheres, uma cultura tradicional e católica, e, ainda, contra a indiferença de seus companheiros libertários. Este documentário tenta abordar os pensamentos, reflexões, visões políticas e formas com que desenvolviam seus projetos. Conta com entrevistas com Conchita Liaño, Sara Berenguer, dentre outras.
• From The Back of The Room (103 min. | 2011 | Amy Oden | EUA). Este documentário narra os últimos 30 anos de envolvimento das mulheres no punk DIY nos Estados Unidos, e conta com mais de 30 entrevistas que abordam temas como raça, gênero, sexualidade, maternidade, classe e ativismo, dando uma imagem mais completa de como essas mulheres participam da comunidade DIY, e como isso afeta suas vidas diárias.
• Mulheres em Cena na Quebrada (Documentário | 60 min. | Coletivo Periféricas | 2015 | SP). Documentário produzido recentemente pelo Coletivo Periféricas sobre a luta das mulheres na periferia de São Paulo.
• Anarca-feministas na Bolívia (Documentário | 15 min. | Sin(a)psis | 2010 | Bolívia). Produzido pela produtora anarquista chilena Sin(a)psis, este curta retrata as anarca-feministas da Bolívia, que falam sobre sua luta e as atualidades do movimento.
• Imagem Mulher (Documentário | 58 min. | 2012 | Maristela Bizarro | SP). Documentário que nasce da hipótese de que a idealização da mulher na mídia contribui para a violência contra a mulher. É um olhar que se debruça sobre a mídia e sobre a rotina de três mulheres, Ana Cláudia Martins, Norma Cubillos e Sandra Regina Alves, buscando estabelecer um paralelo. Se a hipótese inicial é válida? Compartilhamos as descobertas com o público.
• Mulheres da Esperança (Documentário | 16 min. | 2014 | Gabi Moncau | SP) A Ocupação Esperança resiste em Osasco desde 23 de agosto, com cerca de 500 famílias na luta por uma moradia digna. E, uns dois meses depois que os barracos foram postos de pé, já começaram a acontecer reuniões semanais das mulheres. Cansadas de violência, desigualdade política e de direitos, elas passaram a se organizar. O vídeo retrata um pouco das vidas e lutas dessas mulheres de e da Esperança.
• Asesinos, ¿dígame? (Ficção | 15 min. | 2013 | Rachel Dreams | Espanha). Um gesto ruim, um insulto, um grito, um empurrão, uma briga… e não acontece nada, é apenas o dia a dia. Um telefone toca e se ouve uma voz: ele, um jovem “carinhoso e amável”, ela, uma mulher que “só lhe dá problemas”. Eva e Nacho, ou quaisquer outros nomes, são os protagonistas. Vale a pena ver e pensar sobre como é comum a autovitimização, as justificativas, a culpabilização das sobreviventes, e toda uma rede de apoio a agressores machistas que assim seguem de forma sistemática com o comportamento agressor, totalmente amparados.
• 25 de julho: Feminismo Negro Contado em Primeira Pessoa (Documentário | 62 min.| 2013 | Do Morro Produções | São Paulo/SP). Por meio de entrevistas com mulheres negras moradoras da cidade de São Paulo, o documentário discute o significado do 25 de julho como Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha.
Elaine Campos é militante anarcofeminista e fotógrafa autônoma. Integrante do coletivo organizador do Festival do Filme Anarquista e Punk de SP e outras movidas libertárias.
Marina Knup é anarcopunk/feminista, tatuadora e realizadora de documentários anarquistas. Integrante do coletivo organizador do Festival do Filme Anarquista e Punk de SP, da editora Imprensa Marginal, Anarco-Filmes Produções e outras movidas libertárias.
Fotos: Elaine Campos
Fonte, mais fotos: http://revistageni.org/12/festival-do-filme-anarquista-e-punk-de-sp/
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Sob o sol poente –
Como não agradecer?
Paulo Franchetti
Tradução ruim para o título... No texto - se não nesse, no livro - ele faz uma distinção entre shit…
tmj compas! e que essa luta se reflita no bra$sil tbm!
Um puta exemplo! E que se foda o Estado espanhol e do mundo todo!
artes mais que necessári(A)!
Eu queria levar minha banquinha de materiais, esse semestre tudo que tenho é com a temática Edson Passeti - tenho…