• Juan Manuel Bustamante, também conhecido como Nahuel, passou grande parte do tempo em isolamento e nos módulos mais conflitivos de cinco prisões diferentes.
• “Havia prisioneiros do ETA que ficaram surpresos, houve pessoas que foram presas por 10 ou 15 anos e não haviam sido transferidas tanto quanto eu”.
• “Eu pensei que a prisão não tinha me afetado, mas é claro, eu percebi que sim, agora acho muito difícil socializar”.
por Marcos Pinheiro | 22/08/2018
Seu nome é Juan Manuel Bustamante mas todos o conhecem pelo nome de Nahuel. A polícia o prendeu em 5 de novembro de 2015, quando ele acabara de completar 25 anos, acusado de liderar um grupo terrorista inspirado no movimento Straight Edge. Quase três anos depois, a Audiência Nacional [um Tribunal Superior que se assemelha ao Superior Tribunal de Justiça no Brasil] encerrou o caso definitivamente depois de confirmar que não há vestígios de terrorismo em Nahuel ou nos outros cinco acusados, encerrando um processo sem uma sentença que o levou a 16 meses de prisão.
Durante esse período, ele foi submetido ao mais severo regime carcerário, com contínuas mudanças de cadeia e períodos isolados. Lá ele soube que os crimes daqueles que o acusavam somavam mais de 35 anos, e então permanecem em uma acusação de glorificar o terrorismo por twitters dos quais ele foi finalmente absolvido como o resto dos acusados. Entre os twitters, imagens com slogans como “Morte ao capital”, “Odiando a Espanha, odiando o tabaco” ou “Não dê a ninguém o poder de tirar sua liberdade. Você é o dono da sua vida, não é mais uma escrava”.
Agora Nahuel tenta recuperar sua vida, embora reconheça que não é fácil. Ele se recorda de como viveu seu período na prisão, no que normalizou a violência diária e as consequências que a prisão lhe deixou.
Você esperava a absolvição?
A verdade é que eu não esperava, esperava que houvesse uma condenação, só para justificar o tempo em que estive na prisão. A absolvição esperava na Europa, não aqui, foi uma surpresa. Uma boa surpresa, mas também misturada com outros sentimentos. Não sei como te dizer. Depois que eles te absolvem, que você passou todo esse tempo dizendo que não fez nada, que você não teve nada a ver… depois que você viu as pessoas pensarem que “algo terá feito” se ele está na cadeia. A absolvição não recompensa se você esteve na prisão.
A operação revelou o movimento Straight Edge e o coletivo que você formou em Madrid. O que é esse movimento?
Eu vivi no Peru em um bairro muito afetado pela pobreza e drogas, para mim esse movimento me serviu como uma rota de fuga. Eu o conheci nos shows de hardcore, onde a banda fazia parte do público e se retroalimentava, me afastando desse tipo de vida. Sempre fui muito relacionado à música, independentemente de ser abstêmio ou de outras coisas, sempre o Straight Edge tem que estar relacionado à música.
Quando foi organizado aqui foi porque conheci alguns caras que também faziam shows de hardcore. Curiosamente, eles também estavam abstêmios e interessados no movimento Straight Edge, então decidimos organizar isso com a ideia principal de montar um grupo. Essa foi a ideia, um grupo com letras reivindicativas e sendo claro que não iríamos permitir uma série de coisas como apoliticismo ou racismo. Mas sempre faltou um baixista ou um baterista, e então decidimos formar o coletivo e fazer outros tipos de atividades com o que tínhamos mais em comum.
A maioria de nós veio de sindicatos da Universidade ou algum tipo de ativismo, então nos dissemos que, uma vez que temos esse tipo de coisa em comum, já que estamos aqui, vamos fazer alguma coisa. Vamos mostrar que existem pessoas que têm outro tipo de modelo de vida que é contrário ao que se pensa do antifascismo, ou seja, estamos dentro dessa subcultura, mas com outro modelo de vida.
Que tipo de ações vocês realizaram?
Conseguimos formar a banda e estávamos fazendo shows livres de drogas. É uma questão que surgiu no julgamento, onde ficamos sabendo que um policial vinha nos seguindo há meses, mas sem detectar qualquer atividade criminosa, mas outras por exemplo os show, a organização de cantinas veganas ou eventos para assistir a documentários sobre direitos dos animais.
Apenas dois dias antes de sermos presos, tínhamos um show em que iríamos arrecadar fundos para organizar uma cantina para atrair as pessoas do bairro. Estivemos trabalhando com pessoas de Tetuán [um bairro no centro de Madrid], mas não apenas para lhes dar comida e é isso. Queríamos fazer uma cantina-oficina para que as pessoas aprendessem a fazer comida vegana, explicar que era inclusive mais barato e que você não morreria por falta de nutrientes. Que as pessoas aprendam e façam parte disso. Porque apesar de me dizerem que sou um anarquista vegano, para mim a luta sempre foi mais de classe.
O que você pensou quando os agentes invadiram suas casas para prendê-los?
Quando nos prenderam, pareceu surpreendente porque eu não sabia o que havíamos feito. Nós estávamos na casa da que era então minha namorada com um amigo, jogando videogame, estávamos de bobeira e não tínhamos nada para fazer. Cerca de 4 ou 5 da manhã a porta começa a soar muito alto e foi a polícia, que estava procurando por nós. Olhei pela janela e vi os agentes e pensei “e agora?”.
Bem, a polícia entrou, me colocou contra a parede, eles não sabiam onde me colocar. Eles nos disseram que nos prenderam por terrorismo e não entendia nada, eu conhecia as operações Piñata e Pandora, mas não sabia se estava relacionado. Eu também pensei que um dia nós organizamos um show onde eles disseram que essas pessoas se conheceram e que ainda nos relacionaram com elas, mas não fazia sentido, já que nos reuníamos onde quer que pudéssemos. Nos parques, restaurantes, na casa de alguém ou até no metrô. Eu não sabia nada sobre as acusações, depois descobri. Isso me atingiu muito.
Após a detenção, você passou um ano e quatro meses na prisão sob um regime penitenciário muito difícil.
Eu passei por cinco prisões. Havia prisioneiros do ETA, eu não podia ter contato com eles, mas acabei tendo contato com um, e todos ficaram surpresos. Havia pessoas que tinham sido presas por 10 ou 15 anos e elas não tinham sido transferidas tanto quanto eu, eu tinha passado por cinco prisões e elas estavam me perguntando o que eu tinha feito para que eles fizessem isso comigo. Uma das piores coisas, juntamente com o isolamento foram as transferências, porque eles colocam você em um pequeno cubículo onde você mal se encaixa e você fica ali por horas. A transferência dura vários dias, você passa por várias prisões… para mim foi horrível.
Eles explicaram porque você foi transferido tanto de cadeia?
Não. Foi engraçado porque no final, quando fui enviado de Sevilha a Aranjuez, um dos policiais me perguntou o que era o GAC – Grupos Anarquistas Coordenados – e eu disse que era uma editora que estava lançando livros e tal. E ele disse: “Ah, é que nos seus documentos parece que você é do GAC”. Sério? Eu comecei a rir. Para justificar essas medidas, eles têm que dizer que você é de um grupo terrorista, e eu estava esperando que colocasse o Straight Edge Madrid, mas disseram que era do GAC. E foi como… Eu não sou do GAC, não fui acusado disso em nenhum momento.
É um absurdo, mas eles nunca chegaram a justificar essas medidas. Sempre foi por motivos de segurança. Já em Soto del Real entrei diretamente no isolamento.
Quanto tempo você passou em isolamento?
Quase um ano, a maior parte do tempo que passei na prisão, fiquei por lá os últimos quatro ou cinco meses.
Em algum momento durante a sua estada na prisão, seus advogados lhe disseram que os crimes daqueles que te acusavam totalizavam penalidades superiores a 35 anos. Como você enfrentou isso?
Quando entrei pensei que não tinha feito nada, sabia que não tinha feito nada. Eu pensei que seria o que aconteceu com os da Operação Piñata, que seria um ou dois meses de prisão, porque era o máximo que eles sofreram. Então eu vou para casa e é isso, isso é como uma reprimenda, mas eu não fiz nada.
Das acusações descobri mais tarde, depois de dois ou três meses. Eu sabia que eles me acusavam de terrorismo, mas eu não sabia por que ou de que. Assustado no início, você fica impressionado com a magnitude dos anos que eles querem condenar você, mas afinal, eu sabia que não tinha feito nada. Claro, não haviam casos como o de Alsasua, então eu não fiquei com medo. A única experiência foi a de Alfon, que nem sequer tinha uma base mínima.
Quando ocorreu o julgamento, o promotor reduz todas essas acusações a uma única ofensa, a glorificação do terrorismo, punível por dois anos. Surpreendeu-te?
Sendo honesto, isso me deixou com raiva. Todos nós nos incomodamos porque passei um ano e meio na cadeia pelos outros crimes, pensamos “agora os justifique”. Durante muito tempo, meu advogado procurou todos os tipos de evidências que mostrassem que era impossível para mim ter a ver com esses crimes, provas que o juiz, o Ministério Público e a Polícia tinham acesso. Tudo mostrou que eu não tinha nenhuma relação, mas eles não viram. Eu me senti impotente.
Cheguei a enviar uma carta para a juíza. Senti que cada vez que pedia liberdade por meios legais, com recursos, ela não prestava atenção em nós, então eu lhe escrevi diretamente, contando todos os detalhes e mostrando que era impossível para mim ter alguma coisa a ver com isso. Curiosamente, depois do meu caso sair no [jornal] El País, a juíza que me negou não sei quantas vezes a libertação na prisão diz que podia enfim sair, sem mais.
Quando todas as provas caíram, senti raiva. As pessoas do PP sempre dizem que ninguém entrou na prisão pela Lei da Mordaça. Bem, eu estive na prisão por alguns twitters de merda, assim, e eles não podem negar isso. Eu estive na prisão por alguns twitters de merda sendo inocente.
E sem esperar por isso, um dia eles te libertam.
Chegou a me surpreender. Antes de sair, já estava convencido, Alsasua já havia passado, por isso pensei que seria dois anos mais, independentemente do que o julgamento fizesse. Percebi o que era a prisão realmente, não esperava nada. Da noite para o dia eles me dizem “saia, pega suas coisas e vá embora”. Eu não esperava, estava mentalizado. Eu saí apático. Todos estavam felizes, mas eu não sabia como reagir.
Eu estava em um ambiente totalmente diferente do que eu tinha antes de entrar na prisão. Lá eu nunca estava em um módulo de respeito ou de estudantes, mesmo que eu estivesse estudando direito na prisão. Porque não me deixavam, eu sempre tive que estar nos piores módulos, nos mais conflitantes.
Na prisão de Aranjuez eu estava em um módulo cheio de pessoas em que havia uma briga todos os dias ou a cada dois dias. E no momento de ir até as celas, eu vi do outro lado o módulo onde Carlos Fabra tinha estado – o ex-presidente da Diputación de Castellón – e era muito diferente. A sala de leitura do meu módulo estava fechada porque as pessoas lá entravam para se drogar ou brigar, já no seu módulo tinham dois andares e estava cheio de livros.
A revista mais lida na prisão é o Interviú, e eu vi uma reportagem sobre o Fabra com fotos tiradas na cadeia. Ele tinha dois colchões especiais para a coluna e uma cela para si. No meu a janela estava quebrada e eu tive que colocar um papelão para não morrer de frio nas noites de inverno. Meu colchão era uma espuma que era como não ter um colchão, e depois de um ano e meio com ele, junto com as transferências, minhas costas estavam fodidas. Eu continuo indo ao fisioterapeuta até agora. Eu estava pedindo por aquele maldito colchão e ninguém fez nada.
Depois da prisão e do processo judicial, você conseguiu recuperar a vida que tinha antes?
Eu pensei que minha vida poderia ser refeita. Quando você sai depois de um ano e meio, acha que as coisas são as mesmas, mas elas mudaram. E você não viu que elas mudaram.
Achei que a prisão não havia me afetado, mas claro, percebi que sim, tive uma série de problemas. Passei um ano em isolamento sem falar com ninguém. Passei dias sem dizer uma única palavra, apenas bom dia para os funcionários da prisão. E quando me juntei a outros prisioneiros fora do isolamento, também não tinha ninguém com quem conversar, porque eram pessoas muito violentas que falavam principalmente sobre drogas ou qualquer outra besteira. Ia de um lado para outro naquele micropátio. Quando saí, não sabia do que falar, era muito difícil para mim socializar.
Além disso, fui informado por um prisioneiro lá, seu limite de tolerância muda na prisão e eu não havia me dado conta. Eu pensei que seguia sendo normal, que ria e brincava com tudo. Foi assim antes da prisão, mas quando saí fiquei muito defensivo, em estado de alerta. Meus amigos me disseram. Porque na prisão ele tinha que ser assim, você não pode estar de outra maneira.
A violência nas prisões era muito normal. Em Sevilha houveram brigas todos os dias. Por exemplo, quando eu entrei me chocava que houvesse brigas, mas depois você as normaliza. Eu lembro que se outros prisioneiros começassem uma briga com bandejas de metal, minha única preocupação era comer rápido antes que eles nos colocassem na cela novamente.
Fonte: https://www.eldiario.es/politica/Nahuel-activista-Straight-Edge-encarcelado_0_806319758.html
Tradução > Liberto
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