Semelhança anárquica de alguns nomes, filhos do tempo rebelde no qual estes também eram anunciadores de um mundo novo.
Por Chema Álvarez Rodríguez | 09/02/2021
Era 1936 em Jerez dos Caballeros. María Bruguera Pérez e Francisco Torrado Navarro levavam o sol e o trigo dos campos no mundo novo de seus corações. Ela filha e neta de anarquistas: seu pai obreiro da fábrica de rolhas de cortiça na Sierra Sudoeste extremenha, vinda a menos, e seu avô catalão de Palafruguell, Gerona. Sua mãe, Elisa Pérez, bordadeira, tinha um pequeno negócio de alimentação no povoado de Jerez, província de Badajoz.
María e Francisco se amavam e amavam a liberdade. Ambos, junto ao irmão de María, Antonio Bruguera, haviam contribuído para fundar as Juventudes Libertárias em Jerez dos Caballeros em 1932. Uma coisa trouxe a outra e pouco depois fundaram também o grupo de teatro libertário “Ni Dios ni Amo”, com o qual percorriam os povoados ao redor.
María tinha 21 anos quando as colunas fascistas sob o mando de José Álvarez e Ildefonso Medina Mogollón entraram em Jerez, em 18 de setembro de 1936. Segundo historiou Francisco Espinosa, sua passagem deixou 60 cadáveres na rua, todos de esquerda. Afortunadamente, tanto María como o resto de sua família conseguiram fugir antes da chegada dos rebeldes.
O pai de María, Antonio Bruguera, passou à zona republicana junto a centenas de pessoas que fugiam do avanço franquista. O grupo formado por María, sua mãe Elisa Pérez, seu irmão Antonio e seu companheiro Francisco, não teve tanta sorte e ficou preso na terra queimada dos fascistas. Tentaram cruzar Portugal, sem nenhum êxito devido a que a fronteira estava fechada, ante a aglomeração de gente foragida desde as províncias de Huelva e Badajoz. Afortunadamente. A polícia, o exército e os paramilitares fascistas portugueses estavam entregando os foragidos às hostes de Franco.
O grupo familiar retrocedeu por terras de Badajoz e se refugiou muito perto de Jerez, na fazenda “La Media Nava”, onde os pais de Francisco Torrado tinham uma parcela. Nas choças daquela fazenda se refugiaram outros muitos foragidos, e em uma daquelas choças María e Francisco gestaram um menino que nasceria no mesmo lugar em 8 de junho de 1937, sendo María assistida no parto por sua mãe Elisa Pérez.
A poucos meses após nascer o bebê, em novembro de 1937, a Guarda Civil deu uma batida e encontrou as choças. Realizaram um massacre. Quase 20 pessoas foram executadas naquele dia, assassinadas, naquela fazenda de “La Media Nava”, entre elas o companheiro de María, Francisco Torrado, sua mãe, Elisa Pérez, e Bautista Méndez, secretário das Juventudes Libertárias de Jerez dos Caballeros. No total, entre 16 e 18. As crônicas, orais, não esclarecem. O irmão de María, Antonio Bruguera, pôde escapar antes que chegassem os guardas. María se salvou de ser assassinada porque o capitão dos civis se apiedou ao ver o bebê tão pequeno ou porque, simplesmente, não saberia o que fazer com ele se matassem a mãe, que foi detida e passou, desde então, um calvário de cárcere em cárcere. Passou 8 dias no cárcere de Jerez dos Caballeros, e dali foi ao de Badajoz, onde foi julgada em dezembro e sentenciada à morte. Três dias depois da sentença um advogado defensor lhe comunicou que haviam comutado a pena por 30 anos de reclusão.
Durante 8 anos e um mês percorreu os penais de Badajoz, Tarragona, Salamanca, Valladolid, Saturrarán e Madrid. Em 1946 saiu livre, mas mais convencida se possível de suas ideias e comprometida ainda na clandestinidade com a CNT e com Mujeres Libres, após conhecer no cárcere de Madrid as irmãs Lobo e María Carrión, antigas militantes desta organização. Pouco depois se casaria com Antonio Lobo, irmão de suas antigas companheiras no cárcere e também companheiro anarquista. Junto a ele, logo que saiu do cárcere, o primeiro que fez foi ir buscar seu filho, o fruto de sua união com Francisco Torrado e quem a salvara de morrer assassinada em novembro de 1937.
A María só permitiram ter seu filho junto a ela durante oito meses no cárcere de Badajoz, em 1938, dado que o menino era muito pequeno, tendo que o deixar depois aos cuidados de seus sogros, quando a transladaram ao Convento das Oblatas em Tarragona, cárcere de mulheres regido por monjas. Durante este tempo, enquanto estava em Badajoz, se inteirou de que seu pai, Antonio Bruguera, antigo presidente da Casa del Pueblo de Jerez dos Caballeros, havia sido capturado e fuzilado em 17 de novembro de 1939. Tudo isso pudemos saber porque María, com o fim do franquismo, foi uma das fundadoras de Mujeres Libertarias e da revista deste coletivo, de mesmo nome, que lhe dedicou uma monografia ao falecer, em Madrid, em 26 de dezembro de 1992.
Floreal é o oitavo mês do calendário republicano francês, o segundo mês da primavera, entre Germinal e Pradial. María Bruguera e Francisco Torrado puseram esse nome no filho que engendraram e tiveram nos campos jerezanos. Floreal. Como anarquistas praticantes que eram, cuja vida e ideias iam mais além de sua ação política, apelaram com este nome à proteção da Natureza, das flores que se abrem entre abril e maio, subtraindo assim à Igreja o poder onímodo que sempre havia demonstrado ter através da imposição de nomes cristãos.
Esta prática, a de pôr nomes não cristãos nem religiosos nos filhos e filhas, foi um costume entre as famílias de anarquistas principalmente, embora outros muitos militantes de esquerda (comunistas, socialistas, republicanos…) também o exerceram como um sinal de anticlericalismo e de início de um mundo novo.
Tudo isso como um costume herdado, em parte, da maçonaria e dos grupos maçônicos, onde os mesmos maçons mudavam o nome ou punham em seus filhos ou filhas aqueles que tinham que ver com o mundo clássico, como fez o maçom e republicano de Montijo (Badajoz) Juan Antonio Codes Rodríguez, membro primeiro da loja “Emerita Augusta” e depois da loja “Triángulo Montijano”. Codes batizou seus filhos com o nome de Lealtad, Virgilio e Sócrates.
Já “El Condenado”, jornal coletivista, defensor de “La Internacional”, em sua edição do domingo 20 de abril de 1873, reproduzia a ata de uma sessão celebrada por internacionalistas na noite de 26 de fevereiro de 1873 em Sanlúcar de Barrameda, na qual dois dos membros apresentavam à Associação seus filhos nascidos no dia anterior, com o fim de que esta lhes desse nomes, “com o que se diferenciarão entre os demais”, resultando como acordo da Associação chamar o filho de Antonio Aguilar e de Francisca Fernández “Paso al Progreso Humano”, e à filha de Agustín González e Encarnación Morantes “Europa Anárquica”.
A imprensa anarquista de finais do século XIX e de princípios do XX oferece testemunho abundante dos nomes anarquistas e das cerimônias que os acompanhavam, sem deixar de mencionar as reações que suscitavam nos poderes da época, tanto estatais ou municipais, como os eclesiásticos. Por não falar de “as boas pessoas”.
Nos povoados, a Igreja tinha como fonte de recurso os direitos paroquiais, um dinheiro que cobrava pelo batismo e pela inscrição em seus registros próprios dos recém-batizados. Os nomes não católicos subtraiam ao recém-nascido do registro eclesial, o qual ocasionava sérias perdas econômicas ao clero.
Como fonte de renda que era, a Igreja recomendava pôr ao recém nascido o nome do Santo do dia no qual tivesse vindo ao mundo. Em ocasiões ao nome da criança iam unidas diversas superstições. Uma pesquisa feita em 1900 nos informa que na Baja Extremadura se acreditava que os nomes de Melchor, Gaspar e Baltasar preservavam às crianças da epilepsia (Javier Marcos Arévalo, Nacer, vivir y morir en Extremadura. Creencias y prácticas en torno al ciclo de la vida a principios de siglo).
Os casais ou “casamentos” de anarquistas, simplesmente unidos mediante um vínculo de companheirismo ou mediante matrimônios civis, costumavam pôr em seus filhos e filhas nomes relacionados com os meses da revolução francesa (Germinal, Floreal, Pradial), a Natureza (Aurora, Sol, Amanecer), a história clássica (Sócrates, Horacio, Mario), a ciência (Progreso, Darwin, Universo), a Ideia anarquista (Acracio, Libertad, Liberto), intelectuais e ativistas (Bakunin, Ravachol, Voltairina), conceitos libertários (Digno, Paz, Ego), o anticlericalismo (Ateo, Caín, Luzbel), a revolução (Comunardo, Espartaco, Alba de Revolución). O costume era universal, como demonstra o fato de que o anarquista estadunidense Johan Most pôs em seu filho Lucifer, o anjo que se rebelou contra Deus todo poderoso.
Em setembro de 1907 os companheiros Fabiana Silva e Manuel Gil, de Olivenza (Badajoz), inscreveram no registro civil dessa localidade a uma filha chamada Electra Felicidad, e na aldeia de Santo Domingo, junto a Olivenza, os companheiros Paula Souza e Antonio Jorge, inscreveram a sua filha Dalia Joven (Tierra y Libertad, 19 de setembro de 1907). Pouco antes, também em Santo Domingo, se inscreveu com os nomes de Palmira Progreso a filha de Casilda Jorge e Antonio Dordio (Tierra y Libertad, 18 de abril de 1907). Em Valdeobispo (Cáceres), Elisa Iglesias e Sotero Alcón haviam inscrito a seu filho Progreso Libertador, o qual, segundo informava o Tierra y Libertad de 21 de março de 1907, “tirou do eixo o elemento fanático de Valdeobispo, do que nos alegramos muito”.
Não somente os curas gritavam aos céus ante estes patronímicos. Em 18 de abril de 1907 se inscreveu civilmente em Carmona o filho de Diego Molina Carrasco, com o nome de Helenio Themis Carmona. Segundo consta na notícia dada no Tierra y Libertad de 18 de abril deste ano, “O encarregado do Registro, que deve ser um zaragozano excelente, disse que tais nomes não figuravam no almanaque… que ele conhecia. E como cada professor tem seu livrinho, nosso companheiro tirou o seu e conseguiu vencer a obstinação do que a todo custo não queria ler mais que em seu livro, o livro dos oráculos e das profecias”.
O ato de tais inscrições civis estava acompanhado de uma cerimônia libertária, que nada tinha que ver com os batismos. No Tierra y Libertad de 28 de fevereiro de 1907 se noticia a inscrição no registro civil de Badalona de “um belo e robusto menino dos companheiros Magdalena Miralles e Francisco Belis, com os nomes de Niabel, Darwin e Germinal”. Se relata que “uma numerosa concorrência acompanhou até o tribunal os pais e testemunhas e ao chegar ao domicílio dos citados companheiros se improvisou um comício (…) Ao ato que se organizou, que foi uma verdadeira manifestação, participou também uma música que foi proibida (se) tocasse pela rua, por ordem governativa. Não obstante os trabalhos de sapa para proibir o ato, não puderam consegui-lo”.
O filósofo argentino Christian Ferrer escreveu e publicou um divertido opúsculo de apenas quatro páginas (Así no hay matrimonio que aguante, Urania, 2016) onde divagava com a hipótese de que alguns anarquistas se uniram impulsionados por seus nomes, como Perseguido (homem) com Libertad (mulher), ou Siberiano (homem) com España Libre (mulher), casos reais da nomenclatura natalícia argentina.
Ferrer menciona, também, a outros anarquistas argentinos, como Benigno Mancebo, tipógrafo e minervista, presidiário em Tierra del Fuego, logo deportado e fuzilado. E a outro anarquista que sacramentou a toda sua prole com nomes de pedras preciosas: Turquesa, Ágata, Esmeralda, Rubí, Topacio, Zafiro, Amatista e Aguamarina, sem esquecer o varão: Ópalo.
O franquismo nacional catolicista acabou com tudo aquilo. Quando María Bruguera deixou seu filho aos cuidados de seus sogros em 1938, se chamava Floreal, o nome que ela e Francisco Torrado haviam escolhido. Quando voltou a encontrá-lo e a recuperá-lo em 1946, se chamava Francisco, como seu pai assassinado pelos fascistas em uma fazenda junto a Jerez dos Caballeros.
O Governo de Franco publicou no Boletim Oficial do Estado de segunda-feira, 13 de março de 1939, III Ano Triunfal, Nº 72 (apenas quando faltava um mês para a ocupação total do país), a Ordem de 8 de março de 1939 sobre inscrições de nascimento, matrimônios civis, mortes e anotações de divórcio e adoção em zona vermelha. Todo ato administrativo realizado em tempo da República ficava abolido e era obrigatório revisá-lo, desde títulos acadêmicos até inscrições de nascimento, por não falar das uniões civis e os divórcios.
O franquismo só reconhecia como matrimônio legítimo o canônico, e obrigava para toda inscrição apresentar a fé batismal e certificado de batismo, o qual voltava a supor garantidos negócios para a Igreja, além do controle sobre a sociedade. Não só os que tinham nomes anarquistas foram obrigados a renunciar a eles e mudá-los por outros do santoral, mas também todos aqueles nomes próprios catalães, bascos, galegos, etc.: os Iñakis e Jordis foram obrigados a ser Íñigos e Jorges. Um dos casos mais conhecidos é o do anarquista Ramón Acín, assassinado, cujas filhas Katia e Sol foram obrigadas a se chamar Ana María e María Sol.
Aquela imposição foi mais além do meramente nominativo. Quem se chamasse Libertad ou Liberto teve uma vida muito difícil durante o franquismo, suspeitosa ou suspeitoso de ser de esquerda, prescindível na hora de conseguir um emprego ou ter acesso a alguma ajuda administrativa. Até bem entrada a democracia e as mudanças no registro civil, não era estranho encontrar-se com o típico funcionário ou funcionária do registro que se negava a pôr determinados nomes, e inclusive quem desde seu poder como funcionário público dizia o que queria a quem solicitava nomear a seus filhos e filhas como lhe desse vontade. Ainda hoje, a norma sobre inscrição no registro civil proíbe utilizar determinados nomes, atribuindo-se o Estado a capacidade de julgar se são dignos ou não, tais como, por exemplo, a proibição de nomear os filhos com determinadas cifras: um, dois, três…, ainda que não tenha nada que objetar se se nomeia com Primeiro, Segundo ou Terceiro.
A muito poucos quilômetros de onde escrevo há uma escola libertária, Paideia. Uma de suas fundadoras, Pepita Martín Luengo, conheceu María Bruguera Pérez e soube de suas penúrias, colaborando na monografia que sobre ela se fez em janeiro de 1993, com um artigo que se intitulava “Un mundo de Anarquía”. Nem Pepita nem María estão ainda conosco, mas no pátio desse colégio e em suas atividades ressoa hoje em dia a gritaria de uns meninos e meninas cujos nomes são, ou foram, Tristán, Ander, Iris, Aitor, Gorka, África, Unatx, Olmo, Natalia, Maitane, Urko, Araith, Uxue, Marco, Helio, Ura… e um Antonio que, por sinal, é de ascendência asiática.
Tradução > Sol de Abril
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