[Espanha] “Queridos filhos, me matam por ser bom e querer que não passem fome”

Por Henrique Mariño | 27/01/2021

As despedidas dos executados pelo franquismo são “o gênero literário que expressa com mais emoção o drama da guerra civil”, segundo Xesús Alonso Montero, que em seus 92 anos segue compilando as últimas cartas de presos galegos.

Um dia antes de que o executassem, Manuel Estévez Gómez enviou a sua família uma carta impressionante na qual explicava o motivo de sua morte nas mãos de “todos esses canalhas que se chamam representantes da justiça”. Datada em 28 de janeiro de 1937, se dirige a seus “queridos filhos” e em especial a Emilia, a maior: “Me matam por ser bom, por querer que vocês não passem fome e não andem descalços, em uma palavra, por defender um governo que estava constituído”.

Este pedreiro de Tui escreve com dificuldade, comete erros de ortografia e evidencia que não pode ir à escola, mas entende quem é e a que mundo pertence. “É a carta de um trabalhador que não sabe pontuar. Um homem pobre que sustenta seis filhos aos trinta e quatro anos. Um trabalhador que se filiou à CNT para que defendesse seus direitos laborais, ainda que talvez não tivesse maior vinculação com o sindicato, nem saberia quem era Kropotkin nem outros grandes teóricos do anarquismo”, explica o filólogo Xesús Alonso Montero.

Manuel era tão humilde que nem fotos tinha. Por isso, quando Benito Prieto Coussent o imortalizou no cárcere, se mostrou tão agradecido que lhe dedicou umas linhas no verso daquele rosto que franzia o rosto circunspecto e olhava sem temor à obscuridade: “Bendito sejas, pintor, / que tal retrato pintou / nos últimos momentos, / que à morte me condenaram. / Tão bom é seu coração / e é tanta sua bondade, / não permitiu que matassem / sem tal obra terminar”.

É o único pagamento que pode fazer a seu companheiro preso, que trabalhava como professor de desenho no instituto de Tui e pintaria outros vinte e três retratos de encarcerados. No entanto, sua pena desordenada esconde uma intenção poética, como percebeu Alonso Montero antes de burilar seu texto corrido para uma maior compreensão do leitor. “Provavelmente não conhecia a diferença entre poesia e prosa, mas deve ter pensado muito porque ao final está escrevendo versos. Não só comunica sua gratidão, mas o faz artisticamente”.

Assim, suas palavras em sequências rimadas de oito sílabas são um poema oculto que acompanha a dedicatória aos seus: “Retrato que dedico a minha esposa e seis filhos como recordação nos últimos momentos”. Sua única herança, além da pobreza, daí seu sincero agradecimento ao pintor. “Quando morre alguém da alta sociedade, lhe arrebatam o maior, mas seus filhos não vão passar fome. Manuel Estévez Gómez, em troca, é consciente de que os deixa na mais absoluta miséria”, argumenta o catedrático de Língua e Literatura.

Esse testamento literário em verso e, sobretudo, a emocionante carta à sua família impactou de tal modo o ex-presidente da Real Academia Galega que decidiu ilustrar com seu retrato o livro Cartas de republicanos galegos condenados a morte (1936-1948), publicado por Xerais. “Me matam por ser bom”, repete. “Uma expressão verdadeiramente estremecedora, porque em efeito era assim. O matavam por ser da CNT ou porque defendia que seus filhos não tinham por que andar descalços, nem passar fome nem frio?”.

Suas palavras, segundo ele, deveriam figurar nos livros de texto, do mesmo modo que Sarkozy ordenou que se lesse aos escolares a última vontade de Guy Môquet, um adolescente que lutou na resistência contra os nazis. “E isso que o ex-presidente francês não era precisamente comunista”, ironiza Alonso Montero, que sublinha em seu livro que Manuel “falava desde sua perspectiva de classe, desde sua condição de pobre, em um sistema, o da Segunda República da Frente Popular, não que tenha a obrigação de defender o Governo, legítimo, que está comprometido com essas aspirações”.

Um modesto pedreiro cuja maior preocupação ante seu iminente final é a precária situação na qual ficam os seus: “E eu, que não matei ninguém, respeitei todo o mundo, me condenam à pena de Morte pelos testemunhos que se prestaram a declarar contra mim falsamente. Não te digo quem são esses senhores porque creio que o sabes. E por esses canalhas os deixo na mais espantosa miséria […]. Se despede de todos vocês, de mãe e filhos, este que sempre os amou e não os vê mais”, escreve Manuel.

“Bastava saber quem éramos para nos matar”

Em seus 92 anos, Alonso Montero segue compilando as despedidas dos presos galegos executados pelo franquismo, ao tempo que se pergunta por que não saíram à luz mais compilações similares. Cartas de republicanos galegos condenados a morte (1936-1948) reunia 120 textos de 57 autores, aos quais somaria seis firmados por cinco réus quando reeditou o livro. “Segui coletando cartas, de modo que se Júpiter me dá vida publicarei uma terceira edição com umas quarenta mais”, prevê o ensaísta.

O conjunto das cartas é heterogêneo em todos os sentidos: político, ideológico, religioso… Algumas cartas têm um estimável valor literário, enquanto que outras simplesmente refletem as últimas vontades ou apenas um lacônico adeus. Há testamentos convencionais com linguagem pomposa ou que criticam as más ações das autoridades franquistas. Determinadas linhas abraçam a Deus, ainda que figurem exemplos de católicos que redigem diatribes anticlericais. Também destilam a esperança de que a Segunda República resistirá.

Muitas devem sua moderação e prudência ao convencimento de que uma prosa incisiva não passaria no crivo da censura, embora as enviadas clandestinamente são explícitas e denunciam a sublevação, assim como as torturas padecidas entre grades. São por isso de especial interesse as cartas dos comunistas, cujo destinatário último é a História, e as dos guerrilheiros, que enaltecem a luta antifranquista em um profuso epistolário que data de 1947 e 1948.

A crueza do relato de Segundo Vilaboy(“Camaradas: se dissesse tudo o que comigo fizeram e o que tenho que suportar, compreenderias por que a última hora não me assusta”) mereceu a resposta da Pasionaria, que considera a carta de um “simples militante” do PCE “o mandato eterno de um herói do povo”. Ademais, destacam as do chefe guerrilheiro Antonio Seoane e do secretário geral do PCE na Galícia, José Gómez Gayoso: “Tinha mil vezes razão Vilaboy quando dizia que estes não são seres humanos, que são feras”.

Não obstante, o autor deixa claro que o franquismo se enfureceu com simpatizantes de todas as formações, inclusive a moderada Esquerda Republicana. O ataque a todo sinal de republicanismo responde, na opinião do ensaísta, a uma “estratégia de terror” contra a Frente Popular em uma terra onde não houve guerra, mas repressão. “No conselho [de guerra] podemos comprovar como tudo vinha ordenado assim […]. Bastava saber quem éramos para nos matar”, escreveu o galeguista Víctor Casas. O pensamento mesmo era objeto de castigo.

As cartas resumem resignação, justiça, perdão, vingança e inocência, pois muitos não entendem por que serão condenados à morte ou crêem que os rebeldes serão derrotados no campo de batalha, ainda que talvez neste caso deveríamos falar de esperança. A conservou durante sua clausura, por exemplo, Josefa García Segret, que fingiu uma gravidez para evitar a pena de morte. É a única mulher presente em um livro que recolhe as últimas letras escritas em capilla, “o gênero literário que expressa com mais emoção o drama da guerra civil”.

Fonte: https://rebelion.org/queridos-hijos-me-matan-por-ser-bueno-y-querer-que-no-padezcais-hambre/

Tradução > Sol de Abril

agência de notícias anarquistas-ana

vermelho relâmpago
irrompe do capim seco:
a cobra coral.

Anibal Beça