Por Enrique Gómez Arnas
Talvez, apenas talvez, esteja ocorrendo um renascimento do movimento libertário na Espanha e no mundo. A democracia ocidental clássica, liberal, modelo pós-Segunda Guerra Mundial em grande parte do mundo, está dando sinais de esgotamento. Diante dessa situação, surgiram novos autoproclamados “libertários”, neoliberais de corte fascista, com características muito particulares que nada têm a ver com o verdadeiro libertarianismo anarquista, embora confundam parte da população. O verdadeiro libertarianismo é anarquista e anti-hierárquico; esses “libertários”, no entanto, querem se livrar da parte do Estado que os incomoda, odeiam impostos e regulamentações, assim como os benefícios sociais que eles geram.
É a lei da selva, o salve-se quem puder, mas com regras de mercado (que também não respeitam quando não lhes interessa: veja-se o intervencionismo governamental que praticam ou a recuperação econômica, após as crises capitalistas, com dinheiro público, que não desdenham).
O descontentamento social com a democracia burguesa ocorre quando a população percebe que, independentemente das cores dos governos, seus problemas cotidianos permanecem os mesmos ou pioram a cada legislatura.
Na Espanha, mesmo com a chegada da República em sua segunda edição, o movimento anarquista e anarcossindicalista sabia que esse fato político notável não traria mudanças revolucionárias. O militante anarquista tinha claro (vejam-se as afirmações de alguém tão pragmático como Ramón Acín) que a luta pela emancipação da Humanidade seria tão necessária quanto em épocas ainda mais autoritárias.
A mudança de posição ideológica em relação ao voto por parte da CNT em 1936, para evitar que a direita voltasse a vencer e para conseguir a anistia, foi determinante para o triunfo da Frente Popular. Os anarquistas pegaram em armas após julho daquele fatídico ano eleitoral, não tanto para defender uma república que havia decepcionado suas expectativas, mas para alcançar a revolução: era o espírito do 19 de julho.
A vida é o bem supremo, e melhorá-la é o objetivo de qualquer verdadeiro libertário, o que levou a grandes divergências com os frentepopulistas.
O Conselho de Aragão, assim como muitos outros experimentos coletivistas por toda a Espanha, mostrou ao mundo as possibilidades reais oferecidas pela aplicação e prática do assembleísmo e da autogestão. Seu próprio sucesso acabou com esses experimentos; alcançar um bom superávit produtivo para o “esforço de guerra”, respondendo ainda ao princípio de “a cada qual segundo suas necessidades e de cada um segundo suas possibilidades”, era uma equação perigosa tanto para o comunismo stalinista quanto para a democracia burguesa. Assim, decidiu-se acabar com as coletivizações, mesmo que isso significasse desviar forças do tão propalado “esforço de guerra”. Portanto, já durante a guerra, o movimento libertário viveu a repressão das próprias fileiras republicanas.
Uma organização férrea e hierarquizada controlaria, após a guerra, os esforços de resistência contra o franquismo e o fascismo europeu. Muitos anarquistas lutaram movidos por seu antifascismo nas fileiras da resistência, controladas principalmente, como digo, pelo Partido Comunista.
Quando surgiu a política de “reconciliação nacional”, defendida pelo PCE, alguns se desmobilizaram da luta armada, mas foram os anarquistas, a partir desse momento, que decidiram continuar na luta, desta vez na guerrilha urbana. Ou seja, o movimento libertário, apesar da maior facilidade de dispersão ao fugir e rejeitar estruturas hierarquizadas que propõem maior controle, continuava vivo e atuante, sendo responsável por muitas das tentativas de acabar com a vida do ditador.
Já no declínio do franquismo, as forças opositoras concordaram em grande parte com as do regime em criar uma democracia burguesa convencional e substituir o franquismo decadente, de modo que os movimentos revolucionários autênticos eram o inimigo a ser derrotado.
Com a chegada da Transição, tudo o que não fosse política parlamentar regulada e constitucional deveria ser eliminado. A maioria dos partidos revolucionários antifranquistas foi desaparecendo, enquanto muitos de seus membros e líderes passaram a integrar os quadros dos partidos institucionais… e também dos sindicatos fortalecidos pelos poderes públicos. Assim, surgiu o dilema de aceitar ou combater aqueles que não se conformariam com a maquiagem que a nova democracia parlamentar representava para a máquina exploradora do Estado.
Todos, como em 1937, concordaram em asfixiar economicamente, através da não devolução aos legítimos proprietários do patrimônio sindical anarcossindicalista, negando subsídios estatais (em clara discriminação frente aos sindicatos institucionalmente aceitos) e, além disso, realizando claras montagens policiais como o caso Scala e outros escândalos.
O espírito crítico, que só poderia permanecer entre aqueles que queriam não apenas uma reforma, mas ir além da frustrada ruptura, também serviu aos interesses desagregadores com uma concepção estreita da “pureza” ideológica que levou ao Congresso da divisão da CNT.
Mas o verdadeiro libertarianismo nunca esteve morto.
Após os eventos de 1968, havia uma clara concepção anarquista da vida e da política.
Após o 15M, havia desejos de autogestão e assembleísmo frente ao sistema tradicional de partidos.
Hoje, diante do cansaço com a inação dos partidos no governo, que se alternam sem que as pessoas notem melhoria em suas vidas cotidianas, existe uma alternativa que está se aproveitando da situação, e é uma alternativa perigosa.
O suposto “libertarianismo”, ao estilo anglo-saxão, copiado em muitas outras partes do mundo, oferece, como seus antecessores nos anos 20 e 30 do século passado, soluções fáceis para o povo menos instruído. É a mesma estratégia de sempre: oferecer um inimigo facilmente reconhecível, confrontar os últimos com os penúltimos, dentro das classes sociais, para que não vejam que seu inimigo está mais acima na escala econômica. Ontem eram os judeus e os comunistas, hoje são os imigrantes, os gays, os progressistas, as feministas, os ecologistas e, em geral, todos aqueles que confrontam o poder. O estabelecimento da “correção política” uniu-se, interessadamente, ao estabelecimento de uma democracia que continua decepcionando as classes mais desfavorecidas; portanto, sua falta de esperança une progressismo e democracia. Não é de surpreender que a esquerda se pergunte continuamente: “O que estamos fazendo de errado?” Devemos, nestes tempos de desinformação contínua, fazer mais esforços do que nunca para difundir a mensagem autenticamente libertária. O surgimento das “Redes Libertárias” foi como um raio de esperança em meio a tanta decrepitude e tanta apatia política. Ter o maior número possível de canais de comunicação com a sociedade deve ser uma tarefa fundamental para trazer à luz uma ideologia que nunca morreu, mas que estava em estado letárgico. A partir do movimento da Memória Histórica, abrem-se caminhos para falar sobre o que foi o verdadeiro libertarianismo (sem aspas) em nosso país.
Em Aragão, nos preocupamos muito e sempre tivemos o desejo de trazer ao conhecimento público os esquecidos entre os esquecidos: os anarquistas. Muitas exposições, palestras, homenagens e até monumentos foram impulsionados pela sensibilidade especial da Associação para a Recuperação da Memória Histórica de Aragão (ARMHA) em relação a esses temas.
Nesse contexto, não queríamos perder a oportunidade de começar a proposta de uma série de debates públicos sobre o anarquismo hoje. Assim, no dia 31 de janeiro, dentro das jornadas da “imagem da memória de 2025”, propusemos uma mesa-redonda que esperamos seja o início de muitas outras ao longo do ano, servindo também como plataforma para outras iniciativas a serem realizadas com organizações afins.
Esse mesmo desejo levou, nesta ocasião, a historiadora Laura Vicente a nos oferecer um resumo das atividades das Mulheres Libertárias em Aragão durante os anos 80; Antonio Capapé leu, e também acrescentou vivências pessoais, o texto que Paco Marcellán (que não pôde intervir presencialmente por motivos de saúde) preparou sobre uma pequena aproximação ao libertarianismo espanhol durante a Transição; finalmente, Javier Celma falou, mais concretamente, sobre a trajetória da CNT aragonesa ao longo desses anos.
O debate foi curto, devido a problemas de horário, que tentaremos corrigir nos próximos eventos que anunciarmos.
A seguir, destacarei algumas das intervenções de Laura Vicente e de Paco Marcellán, já que Javier Celma improvisou e não há nenhum escrito que ateste sua intervenção.
Laura falou sobre a história do movimento integrado na CNT local das Mulheres Libertárias, das quais destaco estes fragmentos:
“O contexto em que o grupo apareceu foi a etapa final da Transição, em 1980. O grupo surge em um cenário complexo e conflituoso, mas também esperançoso pelas possibilidades de mudanças importantes, cheio de atividade política e sindical, renovador e transformador da vida pessoal. Percebemos que a rebelião deveria ter uma dimensão ética que transformava a cultura e a educação em elementos fundamentais, focando nossa atenção em aspectos-chave da existência: alimentação, saúde, família, amor, sexualidade, relacionamento conjugal, respeito à natureza, etc.
Nada disso era novo, pois fazia parte do legado do anarquismo. Também nos tornamos conscientes da importância da defesa da liberdade coletiva, mas também individual. Dessa forma, buscamos a independência psicológica e a autoestima, valorizando a chamada ‘emancipação interna’ que Emma Goldman já defendia para que as mulheres se tornassem sujeitos de seu processo de liberação. As Mulheres Libertárias eram uma organização autônoma e libertária, aberta a todas as mulheres.
Era um grupo misto, um grupo de afinidade, em Zaragoza fazia parte da CNT, que era concebida como um organismo global até o X Congresso de 1987. Fazia parte das coordenadoras feministas a nível local e estadual; coordenação com os outros grupos de Mulheres Libertárias através de encontros… o tema principal foi o aborto, os anticoncepcionais e a maneira de entender a sexualidade, (assim como) muitos outros: trabalho, educação, antimilitarismo, violência, etc.
No grupo, logo percebemos que o feminismo não afetava apenas o político, o público, mas também o pessoal, ‘o pessoal é político’, embora houvesse muito debate sobre as carências ideológicas em relação ao alcance do anarquismo na opressão das mulheres, que eram óbvias na maioria do poder e da autoridade. Esses temas teriam exigido um estudo, debate e reflexão mais profundos, além da definição habitual do antiautoritarismo. A extinção do grupo, por múltiplas causas externas e internas, entre as quais mencionarei as duas mais destacadas: a primeira causa, o cansaço de um ativismo intenso (o mesmo que ocorreu dentro de outros movimentos e forças políticas e sindicais); a segunda, o X Congresso da CNT em 1987, no qual se rejeitou a organização global que havia sido construída em Zaragoza. Assim como não houve uma data de fundação precisa das Mulheres Libertárias de Zaragoza, também não houve uma data de extinção do grupo, mas ele desapareceu entre 1987 e 1988.”
Depois, Antonio Capapé, militante da CNT durante a Transição (tema sobre o qual versava esta mesa-redonda), leu uma intervenção de Paco Marcellán, de caráter mais geral, sobre os acontecimentos e fatos do sindicato naqueles momentos históricos:
(Antecedentes) “Estamos assistindo a uma rememoração dos últimos anos, que são qualificados como estertores da ditadura franquista, junto com outras leituras da chamada Transição democrática, na qual predominam os grandes personagens associados aos pactos/transações que evitaram uma ruptura ‘de baixo para cima’ e possibilitaram uma transação ‘de cima para baixo’.
A fragilidade do movimento libertário, após a derrota e a dura repressão pós-guerra, e o esquecimento das pessoas libertárias que continuaram lutando nas cidades e no maquis até meados dos anos 50, as dissensões tanto no exílio europeu quanto no americano, a escassa divulgação de materiais e experiências autogestionárias, tanto a nível espanhol quanto internacional, constituíram limitações para colocar em marcha uma confluência de pessoas que reivindicavam sua própria experiência antiautoritária. Um processo que iniciamos em 1972, com a participação de estudantes de grupos autônomos, professores que buscavam e promoviam uma pedagogia libertária, trabalhadores de setores como a construção, o têxtil e o metal que propunham métodos de ação direta.
(Inícios e expectativas) O coletivo zaragozano, estruturado em base a grupos de afinidade marcadamente setoriais ou de bairro, foi ganhando presença através de ações concretas. Pessoas entre 25 e 40 anos de idade colocaram em marcha um projeto que convergia com outros grupos semelhantes de Madri, Catalunha, Andaluzia, País Basco, Valência e Astúrias. Em maio de 1976, realizamos uma assembleia nos baixos da paróquia de Santa Mônica, no bairro de Romareda, que deu lugar à constituição da Regional do Vale do Ebro da CNT. A legalização da CNT na primavera de 1977, o desencanto na consecução de objetivos a curto e médio prazo, a crise dos meios de comunicação que apostavam em visões libertárias, o impacto reduzido de nossos meios de expressão, dificuldades para acessar os meios convencionais, pessoas, também do âmbito libertário, que foram se acomodando a uma situação na qual acreditavam poder desenvolver uma progressão pessoal, os conflitos no seio da CNT, acentuados ao longo de 1979, conduziram a um beco sem saída.
No entanto, aqueles que continuamos vinculados, de uma forma ou de outra, ao microcosmo libertário, acreditamos firmemente que valores como o apoio mútuo, a ação direta, a prática antiautoritária e anti-hierárquica em todos os âmbitos de nossa vida, e que aprendemos conscientemente e sem amarras durante aqueles anos frenéticos, constituem um elemento que pode servir para que explorados e exploradas por uma sociedade patriarcal, na qual os direitos são sistematicamente violados pelo capital e pelo Estado, despertem de um letargo e de uma servidão voluntária que o próprio sistema alimenta.
Esta intervenção em uma mesa-redonda sobre os libertários aragoneses na transição é uma demonstração de que aquelas lutas, experiências organizativas, continuam tendo relevância no presente, pois afetam nossa sensibilidade, e é preciso agir hoje. Sempre importa recordar o passado para saber como outras pessoas lutaram, por que e como.”
Conclusões:
Na política, como em tudo mais, a natureza tende a preencher os vazios. Diante do ceticismo muito justificado da Humanidade em relação a seus sistemas políticos, que perpetuam uma organização injusta da sociedade, a alternativa libertária sempre esteve presente, com muitas roupagens diferentes, próprias de cada época, mas presente.
A Humanidade tem milhares de anos. O que consideramos História e suas civilizações ocorreu nos últimos 4.000 anos, aproximadamente, o que significa que, existindo também dentro desse período considerado histórico uma infinidade de movimentos libertários, há também um período muito mais longo no qual os seres humanos viveram, se organizaram e sobreviveram, apoiando-se mutuamente, sem necessariamente responder a um sistema hierárquico que hoje parece não ter alternativa.
Houve muitos lampejos de luz ao longo da história humana que mostraram um caminho alternativo ao convencionalmente aceito pela esquerda e pela direita. Este momento de alternativas populistas, que não são tais, é também um momento em que as novas gerações estão sendo vendidas com o mesmo velho líquido intolerante e autoritário em garrafas aparentemente novas; para novas gerações que não sabem, porque ninguém as ensinou, o que o fascismo trouxe para a humanidade: morte e destruição em escala global; um momento em que os proletários mais lumpen são levados a acreditar que o inimigo é o diferente e não os ladrões de terno e gravata.
Em um momento em que as pessoas acreditam mais em influenciadores do que em filósofos. Elas acham que dar um “like” é fazer a revolução; nesse momento em que os princípios do machismo, da intolerância, do racismo, da homofobia, do antiprogressismo, do negacionismo etc., típicos dos comentários de botequim e da visceralidade perversa, estão refletidos no programa de alguns partidos políticos. É nesse momento, eu digo, que o movimento libertário deve fazer o maior esforço para dizer às pessoas que elas não devem permitir que esse vácuo desdenhoso seja preenchido por aqueles que querem nos escravizar e que existem alternativas. Que elas precisam assumir o controle de suas próprias vidas. Que existe o direito de viver bem e em harmonia em um planeta para todos. Que o desenvolvimento pessoal e a felicidade são possíveis com apoio mútuo, autogestão, reunião e ação direta. Pode ser a nossa hora e, de qualquer forma, nunca devemos ficar inativos e em silêncio, muito menos hoje. Temos que estar muito atentos e dar respostas alternativas, iludir o mundo iludindo a nós mesmos.
É uma tarefa árdua, mas precisamos estar lá.
Nota final: peço desculpas aos palestrantes pela seleção de seus textos, uma seleção obviamente arbitrária da qual eles podem discordar e que é de responsabilidade exclusiva do autor deste artigo.
Fonte: https://redeslibertarias.com/2025/02/28/debate-libertario-una-necesidad-actual/
Tradução > Liberto
agência de notícias anarquistas-ana
De seguir o viajante
pousou no telhado,
exausta, a lua.
Yeda Prates Bernis
Um resgate importante e preciso. Ainda não havia pensado dessa forma. Gratidão, compas.
Um grande camarada! Xs lutadores da liberdade irão lhe esquecer. Que a terra lhe seja leve!
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