Antidesenvolvimentismo

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[A seguir, reproduzimos o texto de Miguel Amorós, historiador, teórico e militante anarquista valenciano, proferido recentemente em duas palestras-debates: na “Jornada Antidesenvolvimentista” no Club Remanso Neptunia, em Montevidéu (Uruguay), em 22 de outubro de 2015; e na “Feira do Livro e Difusão Anarquista” de Buenos Aires (Argentina), em 08 de novembro de 2015.]

Ultimamente deixou-se de sentir a necessidade de um enfoque global da crise capitalista desde uma perspectiva libertária e antidesenvolvimentista, ou seja, contrária ao produtivismo e estatismo dos dirigentes, instalados ou aspirantes, tanto nas suas versões mais duras como nas alternativas. O novo planejamento não consiste num simples rechaço do neoliberalismo e do keynesianismo, do desenvolvimento “sustentável” e da economia “social” integrada, distintas fórmulas político-econômicas da implantação real e global do capitalismo. Aponta bem mais contra o modo de vida industrial que este impõe (consumista e urbano), contra suas vias de penetração e expansão, contra a política institucional e contra o Estado.

A ideia de desenvolvimento é um reflexo degradado da ideia burguesa de progresso. Na linguagem política, seu uso é relativamente recente e poucas vezes têm sido em oposição à de “subdesenvolvimento” ou dificuldade de engendrar “riqueza” e repartir “bem estar”, ou seja, problemas na hora de acumular capitais e gerar uma determinada capacidade aquisitiva. O desenvolvimento não se justificava em si mesmo, senão por seu contrário, supostamente indesejável. Dessa maneira, não oferecia possibilidade alguma de escolha: era como um “trem em marcha” ao que obrigatoriamente teria que subir. Ao término da Segunda Guerra Mundial, o crescimento econômico – o desenvolvimento – passou a ser não apenas o principal objetivo da política, senão a solução capitalista a todos os problemas políticos e sociais. Na nova etapa desenvolvimentista, o proletariado deixava de ser um obstáculo, pois a partir de em certo grau de bem estar, seu potencial revolucionário desaparecia. E mas, à medida que devenia uma força instruída e consumista, à medida que se afastava da penúria e devenia “capital humano”, contribuía à estabilização do regime. Graças a uma conjuntura favorável de fatores históricos de índole diversa, o capital havia superado uma etapa de domínio formal, estritamente econômico, e estava se apoderando de qualquer atividade humana. Em tanto que relação social mediatizada por mercadorias absorvia qualquer aspecto da vida íntima ou pública. O setor terciário aumentou em detrimento da indústria e onde antes havia classes logo houve massas, suma de indivíduos isolados, sem memória e sem vínculos, incapazes de relações intensas e compromissos duradouros, entregues a seus interesses particulares, fáceis de atemorizar e aptos a serem manipulados.

Evidentemente, as mudanças não ocorreram sem contratempos nem retrocessos, pois a resistência operária foi tenaz e a negativa das novas gerações de viver submetidas aos imperativos do consumo deu lugar a episódios gloriosos de rebeldia como a revolta americana dos anos sessenta, o Maio Francês de 68, a rebelião checoslovaca de 1969, o Movimento da Autonomia Italiana de 77, o movimento assembleário hispânico ou a irrupção do Solidarnosc na Polônia. Por outra parte, a própria casta política vencedora era relutante a um uso moderado de seus privilégios e a sacrificar a sua ampla clientela em aras das exigências dos mercados, pelo que a frequentemente tratou de salvaguardar seus interesses corporativos recorrendo ao nacionalismo e populismo em um afã de retardar a fusão do Estado e do Mercado. Sem embargo, a fusão era consequência lógica de um desenvolvimentismo que unificava a política com a economia, as finanças com a vida e a urbe com o território. A partir de então, o anticapitalismo será também antidesenvolvimentismo e antiestatismo, crítica da política e da industrialização do viver, luta antiurbana e defesa do território.

As últimas crises imobiliárias, creditícias e financeiras colocaram em suspeita a capacidade do sistema para aumentar a “demanda interna”, mas não bloquearam seu desenvolvimento. Simplesmente demonstraram que as contradições que travam o crescimento da economia são cada vez maiores, mas no momento, possíveis de superar, por exemplo, com o impulsionamento dos mercados “emergentes”, ainda que ao preço de reproduzi-las a escala ampliada. Isso quer dizer que na última etapa do capitalismo, o crescimento global depende cada vez mais da demanda mundial de tecnologia, matérias primas e alimentos, ou seja, da logística, das multinacionais e das zonas onde, graças a uma reserva enorme de mão de obra, todavia é possível a expansão. Sem embargo, a crise interna, estrutural, não é a única que ameaça em paralisar o funcionamento do sistema. A privatização e exploração intensiva de recursos conduz rapidamente ao seu esgotamento, dando lugar a uma deriva demencial, tal como ilustram os projetos empresariais e as guerras surgidas após despontar a crise energética. Assim, pois, a fase extrativista que caracteriza o atual momento econômico, somada às consequências ambientais de dois séculos de atividade industrial e ao extraordinário auge das infraestruturas, sobretudo de transporte, incuba um novo tipo de crise que atua desde fora e se manifesta na forma de ruína ambiental, fealdade, contaminação, buraco na camada de ozônio, mudança climática, pandemias, urbanização generalizada, destruição do território, etc. O sistema tenta reproduzir-se e desenvolver-se, convertendo, com a ajuda de tecnologia, essa crise externa no mercado, de acordo com os postulados da “sustentabilidade”, mas sem poder evitar que as condições de vida sob o sistema capitalista sejam cada vez mais física e mentalmente insuportáveis.

A crise ainda concebe a urgência de uma resposta de massas, não desemboca necessariamente em uma mobilização geral que reclame mudanças drásticas e pugne por elas. Predomina nas massas afetadas uma atitude contrária, possibilista, já que a submissão é inevitável em sociedades anônimas. Fenômenos como a precarização da mão de obra, o empobrecimento e a exclusão não provocaram conflitos sociais de importância, contrariamente ao que tivesse passado há apenas umas décadas. No terreno laboral, a comunidade de interesses é extremamente difícil. A natureza do trabalho assalariado chegou a ser tão antinatural que ninguém em sua sã consciência pode considerar seriamente a autogestão. Em contrapartida, dita comunidade resulta fácil nas lutas de defesa do território. Estas puderam levar mais longe a oposição ao desenvolvimentismo, posto que o nível de americanização e artificialização da vida é menor nos aglomerados urbanos. Além do mais, o território é o eixo sobre o qual circunda atualmente a produção e circulação de mercadorias, e portanto, o elo principal da cadeia. Entretanto, tais lutas, quase nunca sobrepassaram o horizonte reivindicativo local, nem tampouco, conseguiram se estender o suficiente, salvo ali onde existiam sólidas comunidades campesinas. Para um setor importante da população não é tão desejável a eliminação das contradições do sistema mediante uma mudança social radical, e se pronuncia pelo voto cidadanista. As crises não sobrepassaram situações financeiras limite, senão em contados casos e portanto, não empurraram com força as massas, fundamentalmente urbanas, há soluções drásticas e imaginativas. Signo de que a enfermidade mortal do sistema não entrou em sua fase terminal, é mais, este se adapta a ela até incorporá-la como um componente mais. Isto explica que as alternativas autônomas surgidas à margem do capital puderam ser recuperadas em grande parte e seus promotores cooptados pelo estado (abundam os exemplos no Brasil, Argentina, Grécia…). O domínio real do capital em sua etapa atual se manifesta como um processo de quebra controlada e rentável.

O mercado da tecnologia tropeçou com limites insalváveis, e consequentemente, a inovação tecnológica não pode seguir atuando de motor econômico. As dificuldades crescentes de desenvolvimento capitalista, que evidencia a caída do consumo nas conurbações tem orientado o sistema à exploração dos recursos naturais: bosques, água, minerais, gás de tracking, paisagem, terra (…). Mais adiante, o crescimento econômico se mantém principalmente sobre o espólio territorial. Consequentemente, o desenvolvimento social capitalista se mostra acima de tudo como crise do território, causa de múltiplas resistências e experiências autônomas capazes de pôr em pé de uma comunidade de combate, ou, se se quer, um sujeito consciente. A questão territorial se converte então em questão social: os conflitos do território não são meio ambientais nem tampouco simplesmente econômicos, são eminentemente sociais. A construção de uma força social consciente de si mesma e de seus objetivos em um momento essencialmente defensivo pode dar-se de modo paulatino, já que vai ligada à conflitividade, se mantém principalmente desencadeada por processos de descomposição urbana, responsáveis de proporcionar a luta da maioria de efetivos. Mas para a reaparição do sujeito histórico não basta uma defesa do emprego, um protesto “nimby” ou uma moeda “social”. Haveria que reduzir o interesse privado à proporção justa e reproduzir ao mesmo tempo um espírito comunitário para sair do capitalismo mantendo-se longe das instituições. A emergência do sujeito da história dependerá, tanto do grau de segregação do capitalismo que a comunidade que luta seja capaz de alcançar, como da intensidade de seus enfrentamentos com o Estado, mas por cima de tudo, dependerá de que haja sabido se reapropriar de uma perspectiva histórica, condição sine qua nonde um pensamento estratégico. Desde logo, uma situação crítica excepcional que arroje à rua e ao campo a contingentes numerosos pode favorecer a constituição de uma nova classe proletária universal, mas só se o ponto de vista histórico se fizer presente. Pode  incluso brindar a ocasião de uma ofensiva com tal de que os proletários de novo cunho consigam organizar-se sem chefes, elaborar uma estratégia de luta e dotar-se de instrumentos de ataque adequados. A crítica antidesenvolvimentista quer aportar seu grão de areia na clarificação necessária que precede a qualquer batalha.

O combate antidesenvolvimentista se inscreve em um processo múltiplo de desglobalização, desurbanização, desindustrialização e desestatização aproximado ao objetivo de uma sociedade descentralizada e autogovernada, antipatriarcal, organizada horizontalmente, equilibrada com a natureza e capaz de defender-se sem necessidade de recorrer a exércitos nem a prisões. Uma sociedade livre não tem nada a ver com fundamentalismos naturalistas, nem com proclamas anticivilizatórias, posto que a liberdade não consiste em um retorno à natureza primigênia, nem em uma erradicação da história e da cultura humanas. Consiste bem mais, em que os indivíduos sejam os protagonistas diretos de sua própria história. O grande êxito da dominação tem sido privar de perspectiva histórica aos oprimidos. Sem os conhecimentos históricos suficientes não há consciência revolucionária nem sujeito possível, algo que devem saber todos os rebeldes e em primeiro lugar os libertários se não querem se ver como uma força de choque destinada a desvanecer após os primeiros embates.

Miguel Amorós

agência de noticias anarquistas-ana

na blusa velha,
muitas borboletas –
ele adora tocá-las…

Rosa Clement