Dezenas de venezuelanos passam o dia em meio ao lixo de riachos da capital, em busca de algo de valor que possa lhes ajudar a sobreviver
Jorge segue um meticuloso sistema de mineração. Acompanhado pelo irmão e outros dois amigos, inicia o processo de busca pelos metais preciosos recolhendo resíduos do leito do rio. Conhecidos como “garimpeiros dos esgotos”, esse caraquenhos, em geral homens, passam o dia a buscar restos de metais preciosos das joias que se perdem nos banheiros das áreas mais ricas da cidade.
“Aqui há de tudo, ouro, prata, cobre, às vezes achamos até joias inteiras”, conta Jorge Muñoz, de 22 anos, um jovem da periferia de Caracas que passa boa parte de seu tempo no rio Guaire, a poucos quilômetros do Palácio Miraflores, sede do governo venezuelano e de onde o presidente Nicolás Maduro despacha diariamente.
São quilos e quilos de um material escuro, que reúne desde simples pedaços de garrafas plásticas, borracha, pedras e até elementos orgânicos que ele prefere não saber exatamente do que se trata. “Na época de poucas chuvas podemos ter companhias mal cheirosas aqui, é nojento, mas faz parte desse trabalho”, conta.
O triste espetáculo de dezenas, às vezes centenas, de pessoas tateando o fundo dos riachos que recebem o esgoto em natura da cidade em busca de algo de valor soma-se agora às cenas de famílias inteiras buscando comida em lixeiras ou amontoados de dejetos nas ruas de Caracas.
Desesperados diante de uma crise econômica sem precedentes, os venezuelanos estão buscando no lixo e no esgoto saídas para sobreviver a uma escassez crescente de alimentos e a uma hiperinflação que rompeu a barreira dos 2000% no último ano.
O Guaire é o principal rio de Caracas e corta a cidade de ponta a ponta. Nele deságua não só estrutura de captação das águas fluviais, assim como o arcaico sistema de esgoto da cidade, em sua maior parte sem tratamento. Praticamente tudo que desce pelos ralos, pias e, o pior, vasos sanitários desta cidade de quase dois milhões de pessoas vai dar no Guaire.
Sujo e fétido na maior parte do tempo, o riacho mais se parece com um canal de esgoto ao ar livre cortando a capital da Venezuela. Promessas de sua revitalização e da implantação de um sistema de captação e tratamento dos dejetos vêm se repetindo governo a governo. É exatamente por conta da filtragem quase nula do esgoto que tanta gente passa os dias a buscar algo de valor em seu leito.
Javier Muñoz, de 17 anos, que acompanha o irmão Jorge no garimpo, diz que ali, perto do Miraflores, é possível encontrar de tudo. O mais comum são pedaços de joias que se partiram na longa viagem entre o banheiro de uma casa de classe média até o leito do riacho. Mas, às vezes, diz ele, vem a sorte grande.
“Esse ano mesmo nós encontramos pelo menos umas três alianças de ouro maciço. Ganhamos um dinheirão”, conta o jovem, que não concluiu o segundo grau e não pensa em largar a vida de garimpeiro do esgoto tão cedo. “Olha, o soldo mínimo nesse país está 750 mil bolívares (algo como US$ 3 no câmbio de 29 de janeiro). Em uma semana normal eu faço sozinho três vezes isso ou mais”, diz ele, explicando a razão porque tanta gente se arrisca nas águas sujas do riacho todos os dias.
A moeda nacional venezuelana, o Bolívar, passa por um processo de desvalorização absolutamente sem controle. Só neste ano já perdeu 56% de seu valor diante do dólar. No acumulado dos últimos 12 meses, desvalorizou quase 99%. Com tamanha fragilidade, a única maneira de não perder dinheiro é investindo em ativos menos voláteis, como dólar e ouro. Como o comércio de moeda americana no país é monopólio do Estado, há escassez de dólar no mercado. Com isso, o mercado de ouro se mantém continuamente aquecido.
Nem Javier, nem Jorge ou qualquer outro garimpeiro do esgoto tem dificuldades em vender qualquer mínima peça que encontre. “Nós compramos até um décimo de grama, tanto de ouro quanto de prata”, diz Pedro Ortega, sócio de uma das centenas de casas de compra e venda de ouro em Caracas. “O mercado está aquecido porque muita gente está se desfazendo de suas joias, a situação está muito difícil para todos”, conta ele. “Por outro lado, quem consegue dinheiro quer se desfazer o mais rápido possível dos bolívares, ninguém quer ficar com eles com uma inflação como essa”.
Além do cheiro e da sujeira, o Guaire também é um depósito de bactérias, parasitas e outros potenciais riscos à saúde humana. De acordo com infectologistas venezuelanos da Universidade Central de Caracas, autora de um estudo sobre as condições do rio, há grandes chances de contaminação por leptospirose, hepatite e outras enfermidades graves. Jorge e Javier garantem jamais terem ficado doentes por passar o dia enfiados no Guaire.
O único problema, dizem eles, é quando se machucam com algum pedaço de vidro ou metal. “Aí realmente demora a ficar bom, fica infeccionado, mas nosso corpo já está acostumado, somos fortes”, diz Jorge, pouco antes de enfiar a cabeça dentro das águas fedorentas do Guaire em busca de algum pedaço de metal vindo do banheiro de algum vizinho do presidente Maduro.
Fonte: agências de notícias
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